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por Anselmo Ferreira Vasconcelos

 

Sofrimento não é infelicidade


Independentemente do nosso credo ou convicções religiosas, se é que temos alguma, é impossível negar que o sofrimento humano abunda em nosso mundo. Para qualquer lado ou ângulo que fixarmos a nossa visão, nos depararemos com tragédias pungentes a nos chocar. É inegável que indivíduos, coletividades e mesmo nações inteiras carregam a sua quota de dores e aflições diárias. Assim é a nossa vida! Assim é ainda a experiência vivencial na Terra. Mas diante de tão comovente quadro poder-se-ia perguntar: será que o sofrimento existe apenas para a punição das criaturas?

Absolutamente não. Ademais, é preciso entender o significado da sua presença em nossas existências. Posto isto, o sofrimento como mecanismo depurador de natureza transcendental faz parte de algo maior, que nos compete igualmente assimilar. Afinal de contas, não foi Jesus que afirmou peremptoriamente ao homem rico: “toma a cruz, e segue-me” (Marcos 10:21)? Para aquele indivíduo, a propósito, abdicar dos seus bens e da vida nababesca que desfrutava significava se curvar a um sofrimento inconcebível. Abraçar uma vida inteiramente despojada não o seduzia, apesar da simpatia que o Mestre lhe inspirava. No entanto, metaforicamente falando, o convite divino continua ecoando para toda a humanidade, que ainda se mantém presa aos seus interesses imediatos, nem sempre devidamente ajuizados.

Desse modo, pode-se afirmar que sofrimento é algo relativo, pois enquanto uns aceitam de boa vontade certos sacrifícios ou imposições da vida, outros, em contrapartida, os enxergam como autênticos suplícios. Por exemplo, há pessoas que aceitam a pobreza extrema, com resignação e sem revolta. Tal condição não é por elas vista como algo perturbador ou causa de infortúnio. Desse modo, elas apenas vivem “carregando”, com elegância, as suas cruzes individuais. Olhamos para elas e nem imaginamos os dolorosos padecimentos que enfrentam...

Coisas como viver em moradias simples em locais afastados, desfrutar de alimentação escassa e tomar condução lotada, para elas, não constituem fontes de dor. Convivem naturalmente com as privações que a existência lhes impõe, já que não há muito o que fazer para reverter o quadro. O que é interessante notar é que muitas não são e nem se consideram pessoas infelizes, não obstante as agruras às quais estão submetidas.

Quando fazem as suas comemorações, exalam alegria apesar da mesa modesta. Não lhes importa a falta do caviar ou do champanhe francês. Na verdade, elas têm pleno entendimento das suas necessidades e “horizontes de progresso”, mas não são almas rebeldes. Ao contrário. São capazes de repartir o pouco que têm de bom grado. Quando adoecem buscam os recursos da rede pública, e aceitam o atendimento oferecido – que é, quase sempre precário - com humildade.

De modo geral, o sofrimento continua sendo parte integrante da paisagem terrestre. As criaturas humanas ainda necessitam passar por experiências redentoras e indispensáveis à sua evolução. No entanto, devemos compreender que o sofrimento não é, per se, causa de infelicidade. Explico melhor. Há alguns dias atrás, ao caminhar por determinada rua do bairro onde vivo, chamou-me a atenção um som seco de pancada contínua que vinha da calçada oposta. Ao olhar mais detidamente notei uma jovem mulher acompanhada de um cachorro, que, com a pata engessada, produzia o ruído.

Movido por uma curiosidade natural, atravessei a rua e iniciei um diálogo. Indaguei a causa da “fratura”, e a moça respondeu-me que a cachorrinha, uma autêntica SRD (sem raça definida), nascera com problemas nas duas pernas. A da direita, de onde vinha o som, tinha sido parcialmente cortada e o animal usava, na verdade, uma prótese. A da esquerda, por sua vez, que eu ainda não havia observado, era também defeituosa (torta), já que era muito voltada para esse lado, formando um ângulo de quase 90º. Paramos por uns instantes e fiquei a observar, quase perplexo, os limites físicos daquele animal.

Conjecturei que não há criatura livre de sofrimento nesse mundo, inclusive os bichos. Em meus rápidos pensamentos descartei de imediato qualquer alusão ao carma, já que os animais não estão sujeitos a essa condição. Cogitava ainda da provável infelicidade daquela pobre cachorrinha, quando a moça, como a captar os meus pensamentos, subitamente declarou: “Mas ela é feliz...”.

Sorri concordando. Afinal, o animal estava tranquilo, não denotando qualquer laivo de dor, angústia ou coisa parecida. Cumprimentei-a pela iniciativa de cuidar daquele animal tão limitado fisicamente, e segui o meu caminho pensativo. Concluí que o sofrimento ainda deverá perdurar por bom tempo na Terra pelas mais variadas razões. A principal delas talvez seja porque estamos manietados em maior ou menor grau a situações constritivas.

A maioria de nós sofre, cumpre recordar, não por atos sacrificiais pelo bem da humanidade ou coisas do gênero. Definitivamente, não é esse o caso. Mas se altas dosagens de sofrimento são ainda vitais à conquista da sanidade e lucidez espiritual dos humanos, nem por isso estamos condenados a viver uma existência infeliz. Aliás, muitos atestam eloquentemente tal possibilidade ao aceitar sem queixas e com muita humildade as dificuldades e problemas que os afligem.

Como bem observa o Espírito Joanna de Ângelis, na obra Leis Morais (psicografia de Divaldo Pereira Franco), “Sofrimento não é desdita. Esta somente surge quando o homem se torna causa e razão de infortúnio para o seu próximo”.


  

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita