Sofrimento não é
infelicidade
Independentemente do
nosso credo ou
convicções religiosas,
se é que temos alguma, é
impossível negar que o
sofrimento humano abunda
em nosso mundo. Para
qualquer lado ou ângulo
que fixarmos a nossa
visão, nos depararemos
com tragédias pungentes
a nos chocar. É inegável
que indivíduos,
coletividades e mesmo
nações inteiras carregam
a sua quota de dores e
aflições diárias. Assim
é a nossa vida! Assim é
ainda a experiência
vivencial na Terra. Mas
diante de tão comovente
quadro poder-se-ia
perguntar: será que o
sofrimento existe apenas
para a punição das
criaturas?
Absolutamente não.
Ademais, é preciso
entender o significado
da sua presença em
nossas existências.
Posto isto, o sofrimento
como mecanismo depurador
de natureza
transcendental faz parte
de algo maior, que nos
compete igualmente
assimilar. Afinal de
contas, não foi Jesus
que afirmou
peremptoriamente ao
homem rico: “toma a
cruz, e segue-me”
(Marcos 10:21)? Para
aquele indivíduo, a
propósito, abdicar dos
seus bens e da vida
nababesca que desfrutava
significava se curvar a
um sofrimento
inconcebível. Abraçar
uma vida inteiramente
despojada não o seduzia,
apesar da simpatia que o
Mestre lhe inspirava. No
entanto, metaforicamente
falando, o convite
divino continua ecoando
para toda a humanidade,
que ainda se mantém
presa aos seus
interesses imediatos,
nem sempre devidamente
ajuizados.
Desse modo, pode-se
afirmar que sofrimento é
algo relativo, pois
enquanto uns aceitam de
boa vontade certos
sacrifícios ou
imposições da vida,
outros, em
contrapartida, os
enxergam como autênticos
suplícios. Por exemplo,
há pessoas que aceitam a
pobreza extrema, com
resignação e sem
revolta. Tal condição
não é por elas vista
como algo perturbador ou
causa de infortúnio.
Desse modo, elas apenas
vivem “carregando”, com
elegância, as
suas cruzes individuais.
Olhamos para elas e nem
imaginamos os dolorosos
padecimentos que
enfrentam...
Coisas como viver em
moradias simples em
locais afastados,
desfrutar de alimentação
escassa e tomar condução
lotada, para elas, não
constituem fontes de
dor. Convivem
naturalmente com as
privações que a
existência lhes impõe,
já que não há muito o
que fazer para reverter
o quadro. O que é
interessante notar é que
muitas não são e nem se
consideram pessoas
infelizes, não obstante
as agruras às quais
estão submetidas.
Quando fazem as suas
comemorações, exalam
alegria apesar da mesa
modesta. Não lhes
importa a falta do
caviar ou do champanhe
francês. Na verdade,
elas têm pleno
entendimento das suas
necessidades e
“horizontes de
progresso”, mas não são
almas rebeldes. Ao
contrário. São capazes
de repartir o pouco que
têm de bom grado. Quando
adoecem buscam os
recursos da rede
pública, e aceitam o
atendimento oferecido –
que é, quase sempre
precário - com
humildade.
De modo geral, o
sofrimento continua
sendo parte integrante
da paisagem terrestre.
As criaturas humanas
ainda necessitam passar
por experiências
redentoras e
indispensáveis à sua
evolução. No entanto,
devemos compreender que
o sofrimento não é, per
se, causa de
infelicidade. Explico
melhor. Há alguns dias
atrás, ao caminhar por
determinada rua do
bairro onde vivo,
chamou-me a atenção um
som seco de pancada
contínua que vinha da
calçada oposta. Ao olhar
mais detidamente notei
uma jovem mulher
acompanhada de um
cachorro, que, com a
pata engessada, produzia
o ruído.
Movido por uma
curiosidade natural,
atravessei a rua e
iniciei um diálogo.
Indaguei a causa da
“fratura”, e a moça
respondeu-me que a
cachorrinha, uma
autêntica SRD (sem raça
definida), nascera com
problemas nas duas
pernas. A da direita, de
onde vinha o som, tinha
sido parcialmente
cortada e o animal
usava, na verdade, uma
prótese. A da esquerda,
por sua vez, que eu
ainda não havia
observado, era também
defeituosa (torta), já
que era muito voltada
para esse lado, formando
um ângulo de quase 90º.
Paramos por uns
instantes e fiquei a
observar, quase
perplexo, os limites
físicos daquele animal.
Conjecturei que não há
criatura livre de
sofrimento nesse mundo,
inclusive os bichos. Em
meus rápidos pensamentos
descartei de imediato
qualquer alusão ao
carma, já que os animais
não estão sujeitos a
essa condição. Cogitava
ainda da provável
infelicidade daquela
pobre cachorrinha,
quando a moça, como a
captar os meus
pensamentos, subitamente
declarou: “Mas ela é
feliz...”.
Sorri concordando.
Afinal, o animal estava
tranquilo, não denotando
qualquer laivo de dor,
angústia ou coisa
parecida. Cumprimentei-a
pela iniciativa de
cuidar daquele animal
tão limitado
fisicamente, e segui o
meu caminho pensativo.
Concluí que o sofrimento
ainda deverá perdurar
por bom tempo na Terra
pelas mais variadas
razões. A principal
delas talvez seja porque
estamos manietados em
maior ou menor grau a
situações constritivas.
A maioria de nós sofre,
cumpre recordar, não por
atos sacrificiais pelo
bem da humanidade ou
coisas do gênero.
Definitivamente, não é
esse o caso. Mas se
altas dosagens de
sofrimento são ainda
vitais à conquista da
sanidade e lucidez
espiritual dos humanos,
nem por isso estamos
condenados a viver uma
existência infeliz.
Aliás, muitos atestam
eloquentemente tal
possibilidade ao aceitar
sem queixas e com muita
humildade as
dificuldades e problemas
que os afligem.
Como bem observa o
Espírito Joanna de
Ângelis, na obra Leis
Morais (psicografia
de Divaldo Pereira
Franco), “Sofrimento não
é desdita. Esta somente
surge quando o homem se
torna causa e razão de
infortúnio para o seu
próximo”.