O aparelho
Nicholas havia comprado um som novinho, modelo “Trend
sound machine”. Um espetáculo! Som límpido, toca
mp3, fita k7 e até os velhos bolachões que ele ainda
tinha em casa, das coleções de seu pai. Nicholas, todo
orgulhoso, ouvia em alto volume diariamente o seu novo
mimo. E a casa, de tabela, se embalava naquele som
escolhido por Nicholas, e seus gostos pessoais.
Mas essa paixão não parou por aí. No clube, na
Universidade, nas festinhas ou na casa da namorada. Lá
estava Nicholas e o seu som inseparável. Era a alegria
da rapaziada. Todos se juntavam para curtir um sonzinho
naquela máquina musical, como se fosse uma fogueira de
outrora, e o som de Nicholas era requisitado para todos
os eventos.
As pessoas, aos poucos, ficaram dependentes daquela
traquitana. Iam à porta de Nicholas pedi-lo em
empréstimo, e se ele chegava em um lugar desacompanhado
(sem o som), mandavam-no de volta para buscar o
aparelho. Não existia mais o Nicholas sem o seu sonzaço.
Perdera a identidade o nosso protagonista para aquele
aparelho tecnológico.
Essa singela historieta ilustra um pouco a nossa relação
e do nosso entorno com a chamada mediunidade ostensiva.
Tratada como um grande barato, uma novidade, esta se
sobrepõe à nossa identidade, para que o médium seja
visto como um aparelho mediúnico apenas, e a sua
identidade, sua dimensão humana, de falhas e
necessidades, seja esquecida, diante de seu novo papel,
prisioneiro das demandas de outros, como as pitonisas de
outrora.
Essa reflexão nos faz pensar que a mediunidade, como
faculdade, precisa de uma percepção mais aprofundada,
que fuja da visão circense de pedir mais um fenômeno
para alegrar o pessoal, ou ainda, da devoção
santificadora, que vê no médium um emissário divino para
atender os nossos caprichos. Faz-se necessário que essa
faculdade seja vista como algo natural, e que traz
responsabilidades àquele que a possui, mas também aos
que com ela convivem.
O processo de tratar o médium como se um medalhão fosse
nos remete a paradigmas antigos, estranhos à visão
espírita, nos quais buscamos gurus ou mestres que nos
substituam nos difíceis processos da encarnação. Claro,
os Espíritos nos orientam sempre que possível, e não
precisam de um “Trend sound machine”, podendo
fazê-lo pelo sonho, pela intuição ou de formas mais
sutis. Pelo contrário, essa pressão por desempenho
termina por ser uma porta para a obsessão e para o
animismo, na busca do médium, envolto em grande
expectativa de agradar o seu seleto público.
Certa vez conheci uma pessoa católica que conhecia do
ambiente de trabalho um desses médiuns medalhões que
temos por aí, e foi muito interessante ouvir dela um
relato da pessoa “X” (o médium), como um excelente
colega de trabalho, dado que para ela não fazia sentido
aquela aura mágica que a mediunidade lhe conferia entre
os espíritas. Talvez nos falte olhar essas pessoas como
pessoas normais que elas são, e não como aparelhos de
última geração.
Se você é médium ostensivo, ou convive com um, busque
normalizar as suas relações com este que já tem suas
dificuldades naturais dessa percepção expandida, olhando
para o Nicholas que é dono do som, primeiramente, para
que o seu convívio não se torne um fardo para todos os
envolvidos nessa relação. Como diziam sabiamente os
Espíritos, médium somos todos nós. Como em todas as
potencialidades, temos os que se destacam, mas todo esse
poder também traz fardos provacionais. E não seremos nós
a complicar mais ainda isso.
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