Artigos

por Leonardo Marmo Moreira

 

Os atributos de Deus e as Leis morais seriam abordagens didáticas de Allan Kardec?

 

(Análise das questões 13, 647 e 648 de “O Livro dos Espíritos”)

 

A leitura e a interpretação de conceitos doutrinários, em nosso movimento espírita, têm sofrido, pelo menos em alguns setores, de uma excessiva literalidade. De fato, muitas vezes as citações das obras de Allan Kardec lembram debates religiosos sobre a Bíblia, os quais podem ser observados em diferentes denominações religiosas.

A menção às passagens kardequianas, frequentemente, tem lembrado as citações de versículos bíblicos, o que pode limitar a compreensão da abrangência das implicações de determinado texto da Codificação.

Nesse sentido, os “atributos de Deus”, os quais são estudados no início da primeira parte de “O Livro dos Espíritos” (OLE) e as “Leis Morais”, que são debatidas na terceira parte de OLE, são textos que merecem especial atenção.

Na discussão sobre Deus, nota-se que Allan Kardec forneceu ao tema uma grande relevância filosófica, a ponto de iniciar as questões de OLE justamente por esse tema. Trata-se, portanto, de um conceito doutrinário mui importante dentro do arcabouço de princípios da própria Doutrina Espírita. Por outro lado, Allan Kardec não abordou exaustivamente esse tema. Longe disso.

O Codificador do Espiritismo percebeu pelas suas próprias reflexões e pela orientação da Falange do Espírito de Verdade que pouco poderia ser avançado, em termos de maiores detalhamentos, no que se refere ao tema Deus. Sendo assim, o debate entre os Espíritos e Allan Kardec, concernente a esse relevante princípio, restringe-se ao mínimo necessário, como base conceitual para outros princípios fundamentais.

Com isso, Allan Kardec demonstrou, como de praxe, a sua lucidez intelectual, especialmente em se tratando de temas religiosos complexos. Kardec evitou fazer uma “teologia espírita” precipitada e inconsequente, o que seria uma repetição de erros constantes de textos de religiosos, filósofos e autointitulados “teólogos” de todos os tempos na Terra. De fato, como se costuma dizer frequentemente, a teologia precipitada gera “antropologias” de validade limitada, muito distantes de produzir um mais profundo conhecimento acerca de Deus.

Curiosamente, em vez do Mestre de Lyon ser reconhecido por esse escrúpulo inteligente, Allan Kardec já chegou a ser criticado por esse cuidado. Neófitos arvorados em reformadores têm buscado uma “teologia mais profunda”, mesmo correndo sérios riscos de gerar erros pueris.

A análise da questão 13 não dá muita margem à dúvida e reforça a percepção de que os chamados “atributos de Deus” constituem uma abordagem inicial, adequada, porém limitada, à nossa compreensão ainda reduzida sobre tema tão vasto e transcendente.

Avaliemos a questão 13 de OLE:

13. Quando dizemos que Deus é eterno, infinito, imutável, imaterial, único, onipotente, soberanamente justo e bom, temos ideia completa de seus atributos?

R. Do vosso ponto de vista, sim, porque credes abranger tudo. Sabei, porém, que há coisas que estão acima da inteligência do homem mais inteligente, as quais a vossa linguagem, restrita a vossas ideias e sensações, não tem meio de exprimir. A razão com efeito, vos diz que Deus deve possuir em grau supremo essas perfeições, porquanto, se uma lhe faltasse, ou não fosse infinita, já Ele não seria superior a tudo, não seria, por conseguinte, Deus. Para estar acima de todas as coisas, Deus tem que se achar isento de qualquer vicissitude e de qualquer das imperfeições que a imaginação possa conceber. (Grifos meus)

Discussão semelhante pode ser desenvolvida sobre as chamadas “Leis Morais”, ou seja, as Leis que constituem a terceira parte de OLE.

No primeiro capítulo da terceira parte de OLE, Kardec e a Falange do Espírito de Verdade analisam a chamada “Lei Divina” ou “Lei Natural”.

Na questão 647, fica evidente que o “Amor ao Próximo” é central na “Lei Divina ou Natural”, mas que existem aspectos que transcendem esse princípio. Ademais, os Espíritos frisam que princípios muito gerais frequentemente são mal compreendidos, necessitando ser mais bem especificados para cada situação e contexto de vida a fim de que possamos ter diretrizes mais claras de comportamento.

647. A Lei de Deus se acha contida toda no preceito do amor ao próximo ensinado por Jesus?

R. Certamente. Esse preceito encerra todos os deveres dos homens uns para com os outros. Cumpre, porém, se lhes mostre a aplicação que comporta, do contrário deixarão de cumpri-lo, como o fazem presentemente. Ademais, a lei natural abrange todas as circunstâncias da vida e esse preceito compreende só uma parte da lei. Aos homens são necessárias regras precisas; os preceitos gerais e muito vagos deixam grande número de portas abertas à interpretação(Grifos meus)

Assim sendo, Kardec na questão 648 propõe dez (10) subdivisões da “Lei Natural ou Divina” e interroga os Espíritos se essa abordagem seria apropriada. Os Espíritos respondem que sim, mas que não era para considerar tal subdivisão uma classificação “absoluta”.

Portanto, salvo melhor juízo, as subdivisões da “Lei Natural ou Divina”, assim como os “atributos de Deus”, foram propostas elaboradas por Allan Kardec e submetidas à avaliação dos Espíritos como recursos didáticos, sujeitos a certas limitações.

Vejamos o que os Espíritos esclarecem...

648. Que pensais da divisão da lei natural em dez partes, compreendendo as leis de adoração, trabalho, reprodução, conservação, destruição, sociedade, progresso, igualdade, liberdade e, por fim, a de justiça, amor e caridade?

R. Essa divisão da Lei de Deus em dez partes é a de Moisés e de natureza a abranger todas as circunstâncias da vida, o que é essencialPodes, pois, adotá-la, sem que, por isso, tenha qualquer coisa de absoluta, como não o tem nenhum dos outros sistemas de classificação, que todos dependem do prisma pelo qual se considere o que quer que seja. A última lei é a mais importante, por ser a que faculta ao homem adiantar-se mais na vida espiritual visto que resume todas as outras. (Grifos meus)

Poderíamos supor que, atendendo a fins didáticos, poderiam existir outros subitens da “Lei Divina ou Natural”, não necessariamente apenas dez (10), ou, pelo menos, que cada um desses dez (10) itens poderiam ser decompostos em um variado número de subtópicos.

Também é interessante frisar que os Espíritos colocam claramente a “Lei de Justiça, Amor e Caridade” como superior às demais, ou seja, estabelecem uma espécie de hierarquia de prioridades espirituais. Eles (a Falange do Espírito de Verdade) explicam que essa Lei constitui um resumo das outras Leis (o que poderia igualmente ser considerada uma discussão a respeito de abordagens didáticas da “Lei Natural ou Divina”) e que a “Lei de Justiça, Amor e Caridade” seria aquela que mais efetivamente levaria à evolução espiritual.

A compreensão dessa realidade, muito mais do que dar maior destaque à genialidade didática de Allan Kardec, demonstraria como a estrutura doutrinária do Espiritismo é sólida, mas ao mesmo tempo flexível, ou seja, apresenta as bases fundamentais muito bem consistentes científica e filosoficamente falando, mas sem excluir espaços para o crescimento doutrinário do futuro. Esse tipo de percepção favoreceria o entendimento do caráter progressivo do Espiritismo e a contribuição que as chamadas “obras subsidiárias” podem fornecer para o desenvolvimento de nossa maturidade doutrinária e espiritual.

 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita