Os atributos de Deus e as
Leis morais seriam abordagens didáticas de Allan Kardec?
(Análise das questões 13,
647 e 648 de “O Livro dos Espíritos”)
A leitura e a interpretação de conceitos doutrinários,
em nosso movimento espírita, têm sofrido, pelo menos em
alguns setores, de uma excessiva literalidade. De fato,
muitas vezes as citações das obras de Allan Kardec
lembram debates religiosos sobre a Bíblia, os quais
podem ser observados em diferentes denominações
religiosas.
A menção às passagens kardequianas, frequentemente, tem
lembrado as citações de versículos bíblicos, o que pode
limitar a compreensão da abrangência das implicações de
determinado texto da Codificação.
Nesse sentido, os “atributos de Deus”, os quais são
estudados no início da primeira parte de “O Livro dos
Espíritos” (OLE) e as “Leis Morais”, que são debatidas
na terceira parte de OLE, são textos que merecem
especial atenção.
Na discussão sobre Deus, nota-se que Allan Kardec
forneceu ao tema uma grande relevância filosófica, a
ponto de iniciar as questões de OLE justamente por esse
tema. Trata-se, portanto, de um conceito doutrinário mui
importante dentro do arcabouço de princípios da própria
Doutrina Espírita. Por outro lado, Allan Kardec não
abordou exaustivamente esse tema. Longe disso.
O Codificador do Espiritismo percebeu pelas suas
próprias reflexões e pela orientação da Falange do
Espírito de Verdade que pouco poderia ser avançado, em
termos de maiores detalhamentos, no que se refere ao
tema Deus. Sendo assim, o debate entre os Espíritos e
Allan Kardec, concernente a esse relevante princípio,
restringe-se ao mínimo necessário, como base conceitual
para outros princípios fundamentais.
Com isso, Allan Kardec demonstrou, como de praxe, a sua
lucidez intelectual, especialmente em se tratando de
temas religiosos complexos. Kardec evitou fazer uma
“teologia espírita” precipitada e inconsequente, o que
seria uma repetição de erros constantes de textos de
religiosos, filósofos e autointitulados “teólogos” de
todos os tempos na Terra. De fato, como se costuma dizer
frequentemente, a teologia precipitada gera
“antropologias” de validade limitada, muito distantes de
produzir um mais profundo conhecimento acerca de Deus.
Curiosamente, em vez do Mestre de Lyon ser reconhecido
por esse escrúpulo inteligente, Allan Kardec já chegou a
ser criticado por esse cuidado. Neófitos arvorados em
reformadores têm buscado uma “teologia mais profunda”,
mesmo correndo sérios riscos de gerar erros pueris.
A análise da questão 13 não dá muita margem à dúvida e
reforça a percepção de que os chamados “atributos de
Deus” constituem uma abordagem inicial, adequada, porém
limitada, à nossa compreensão ainda reduzida sobre tema
tão vasto e transcendente.
Avaliemos a questão 13 de OLE:
13. Quando dizemos que Deus é eterno, infinito,
imutável, imaterial, único, onipotente, soberanamente
justo e bom, temos ideia completa de seus atributos?
R. Do vosso ponto de vista, sim, porque credes
abranger tudo. Sabei, porém, que há coisas que estão
acima da inteligência do homem mais inteligente, as
quais a vossa linguagem, restrita a vossas ideias e
sensações, não tem meio de exprimir. A razão com
efeito, vos diz que Deus deve possuir em grau supremo
essas perfeições, porquanto, se uma lhe faltasse, ou não
fosse infinita, já Ele não seria superior a tudo, não
seria, por conseguinte, Deus. Para estar acima de todas
as coisas, Deus tem que se achar isento de qualquer
vicissitude e de qualquer das imperfeições que a
imaginação possa conceber. (Grifos
meus)
Discussão semelhante pode ser desenvolvida sobre as
chamadas “Leis Morais”, ou seja, as Leis que constituem
a terceira parte de OLE.
No primeiro capítulo da terceira parte de OLE, Kardec e
a Falange do Espírito de Verdade analisam a chamada “Lei
Divina” ou “Lei Natural”.
Na questão 647, fica evidente que o “Amor ao Próximo” é
central na “Lei Divina ou Natural”, mas que existem
aspectos que transcendem esse princípio. Ademais, os
Espíritos frisam que princípios muito gerais
frequentemente são mal compreendidos, necessitando ser
mais bem especificados para cada situação e contexto de
vida a fim de que possamos ter diretrizes mais claras de
comportamento.
647. A Lei de Deus se acha contida toda no preceito do
amor ao próximo ensinado por Jesus?
R. Certamente. Esse preceito encerra todos os deveres
dos homens uns para com os outros. Cumpre, porém, se
lhes mostre a aplicação que comporta, do contrário
deixarão de cumpri-lo, como o fazem presentemente. Ademais,
a lei natural abrange todas as circunstâncias da vida e
esse preceito compreende só uma parte da lei. Aos
homens são necessárias regras precisas; os preceitos
gerais e muito vagos deixam grande número de portas
abertas à interpretação. (Grifos
meus)
Assim sendo, Kardec na questão 648 propõe dez (10)
subdivisões da “Lei Natural ou Divina” e interroga os
Espíritos se essa abordagem seria apropriada. Os
Espíritos respondem que sim, mas que não era para
considerar tal subdivisão uma classificação “absoluta”.
Portanto, salvo melhor juízo, as subdivisões da “Lei
Natural ou Divina”, assim como os “atributos de Deus”,
foram propostas elaboradas por Allan Kardec e submetidas
à avaliação dos Espíritos como recursos didáticos,
sujeitos a certas limitações.
Vejamos o que os Espíritos esclarecem...
648. Que pensais da divisão da lei natural em dez
partes, compreendendo as leis de adoração, trabalho,
reprodução, conservação, destruição, sociedade,
progresso, igualdade, liberdade e, por fim, a de
justiça, amor e caridade?
R. Essa divisão da Lei de Deus em dez partes é a de
Moisés e de natureza a abranger todas as circunstâncias
da vida, o que é essencial. Podes, pois, adotá-la,
sem que, por isso, tenha qualquer coisa de absoluta,
como não o tem nenhum dos outros sistemas de
classificação, que todos dependem do prisma pelo qual se
considere o que quer que seja. A última lei é
a mais importante, por ser a que faculta ao homem
adiantar-se mais na vida espiritual visto que resume
todas as outras. (Grifos
meus)
Poderíamos supor que, atendendo a fins didáticos,
poderiam existir outros subitens da “Lei Divina ou
Natural”, não necessariamente apenas dez (10), ou, pelo
menos, que cada um desses dez (10) itens poderiam ser
decompostos em um variado número de subtópicos.
Também é interessante frisar que os Espíritos colocam
claramente a “Lei de Justiça, Amor e Caridade” como
superior às demais, ou seja, estabelecem uma espécie de
hierarquia de prioridades espirituais. Eles (a Falange
do Espírito de Verdade) explicam que essa Lei constitui
um resumo das outras Leis (o que poderia igualmente ser
considerada uma discussão a respeito de abordagens
didáticas da “Lei Natural ou Divina”) e que a “Lei de
Justiça, Amor e Caridade” seria aquela que mais
efetivamente levaria à evolução espiritual.
A compreensão dessa realidade, muito mais do que dar
maior destaque à genialidade didática de Allan Kardec,
demonstraria como a estrutura doutrinária do Espiritismo
é sólida, mas ao mesmo tempo flexível, ou seja,
apresenta as bases fundamentais muito bem consistentes
científica e filosoficamente falando, mas sem excluir
espaços para o crescimento doutrinário do futuro. Esse
tipo de percepção favoreceria o entendimento do caráter
progressivo do Espiritismo e a contribuição que as
chamadas “obras subsidiárias” podem fornecer para o
desenvolvimento de nossa maturidade doutrinária e
espiritual.
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