Gente feliz não perturba ninguém!
Certa vez, publiquei nas redes sociais uma crônica sobre
cenas que havia testemunhado ao longo de uma semana.
Tudo começou quando, numa tarde de sábado, no centro
espírita do qual faço parte – União Municipal Espírita
de Petrópolis (Umep) – observei, no meio do salão
lotado, um casal feliz. Ambos abraçados e aconchegados,
comentando carinhosamente um com o outro o que estavam
achando da palestra a que assistiam. A moça era negra; o
rapaz, branco. Fitava ambos com satisfação. Ver gente
que passa por cima de preconceitos para ser feliz é
sempre um presente.
Dias depois, tive de ir à Cidade Maravilhosa resolver um
assunto profissional. No ônibus no qual viajei na ida,
sentado próximo a mim, um casal gay. Dois rapazes de
mãos dadas, serenos, felizes por se gostarem, apreciando
a paisagem e sem serem molestados ou censurados. Outra
felicidade bonita de se ver.
No meio da semana, circulava eu pela Av. Köeler, uma das
mais bonitas de Petrópolis, quando outro casal feliz
passou por mim. Um rapaz negro e uma moça loira. Ambos
também de mãos dadas e conversando alegremente. Em dado
momento, ele disse algo engraçado, ela riu e os dois se
abraçaram sorridentes, enquanto caminhavam.
Quando publiquei as três histórias, Cláudia Ribeiro,
então minha colega de trabalho, postou um comentário com
uma frase que nunca mais esqueci: – Gente
feliz não perturba ninguém!
Por isso, resolvi voltar ao assunto, inclusive para
atestar que Claudinha tem razão.
A doutrina espírita esclarece que a felicidade absoluta
é impossível em nosso mundo. Por quê? Porque é um mundo
imperfeito. Estamos às voltas com nossas próprias
limitações e também com problemas que dificultam o
bem-estar coletivo. O orgulho, o egoísmo e a ganância
fazem surgir violência, exploração de mão de obra,
repressão, miséria, devastação ambiental, entre outros
males de uma lista extensa, bem o sabemos.
No entanto, podemos ser felizes dentro das nossas
limitações. É o que esclarecem as questões 920 e 921 de
“O Livro dos Espíritos”, de Allan Kardec:
920. Pode o homem gozar de completa felicidade na Terra?
Não, pois a vida lhe foi dada como prova ou expiação.
Dele, porém, depende a suavização de seus males e o ser
tão feliz quanto possível na Terra.
921. Concebe-se que o homem será feliz na Terra,
quando a humanidade estiver transformada. Mas enquanto
isso não se verifica, poderá conseguir uma felicidade
relativa?
O homem é quase sempre o obreiro da sua própria
infelicidade. Pela prática da lei de Deus, a muitos
males pode forrar-se, proporcionando a si mesmo
felicidade tão grande quanto comporte a sua existência
grosseira.
A vida, diz a obra, nos foi dada como prova ou expiação.
Estamos aqui para provarmos a nós mesmos que somos
capazes de dar conta de corpo físico, profissão,
família, orientação sexual etc. E também para saldarmos
eventuais débitos de vidas passadas, desenvolvermos
potencialidades, aprimorarmos talentos... Tudo isso para
que venha à tona aquilo que temos de melhor e nem sempre
percebemos pelo fato de sermos envolvidos pelo turbilhão
dessa vida agitada e cheia de contrastes que vivemos.
Mesmo assim, dá para sermos felizes dentro das
possibilidades que o mundo oferece. Podemos suavizar
nossa passagem por aqui e sermos tão felizes quanto
possível. Afinal, se praticarmos a lei de Deus,
evitaremos muitos males e seremos relativamente felizes.
Se o ser humano não desse vazão a tantos preconceitos,
por exemplo, poderíamos ser bem mais felizes, embora não
totalmente. Digo isso tendo como ponto de partida o
episódio envolvendo o príncipe britânico Harry, neto da
Rainha Elizabeth, e sua esposa, a americana Megan
Markle. O casal se afastou da Inglaterra e foi morar nos
Estados Unidos. O motivo seria racismo, já que Megan,
para os padrões da realeza britânica, não é branca,
tampouco Archie, o filho do casal.
Se o assunto causou espanto em algumas partes do mundo,
provavelmente, aqui no Brasil, ele soou como velho
conhecido. É comum, em terras tupiniquins, casais em que
um dos elementos é negro (ou menos negro), ouvir coisas
do tipo “Vai nascer clarinho?”, “Será que vai escurecer
depois que nascer?”, “Você vai clarear a família dele”
(do marido negro) etc. O preconceito racial ainda é
latente e foco de tensão entre as famílias do Brasil, um
país que ainda carrega no DNA a herança escravagista,
que o faz enxergar o povo negro como inferior.
Só que – gostemos ou não, aceitemos ou não –, estamos
num país multirracial. Ainda por cima, um país que,
apesar de uma minoria escravagista, classista e
reacionária ainda insistir em manter tudo no atraso, vê
muita gente, antes discriminada, agora em faculdades,
andando de avião etc. Somos, portanto, uma nação que
verá cada vez mais casamentos entre pessoas negras e
brancas.
Além da saudável e bem-vinda mistura entre raças,
testemunharemos muitos relacionamentos amorosos entre
pessoas do mesmo sexo. Isso significa ver casais gays
passeando abraçados ou de mãos dadas, se casando de
papel passado e criando filhos.
Em suma: veremos gente sem medo de ser feliz. Gente que,
em tempos idos, só encontrou desamor, exclusão social,
solidão, discriminação... Agora, os dias atuais querem
ver esse povo feliz, dentro das possiblidades de
felicidade que nosso mundo oferece.
Quando pensamos em falta de felicidade, geralmente nos
vêm à mente pessoas lacrimosas, sorumbáticas,
cabisbaixas, desesperançadas e afins. Não nos passa pela
cabeça que a falta de felicidade pode estar na
agressividade com que julgamos nossos concidadãos de
jornada terrestre, no olhar enviesado que dirigimos às
pessoas que julgamos inferiores só por serem diferentes,
nas perguntas indiscretas que ferem e invadem a
intimidade alheia... A lista é longa e demonstra como há
gente infeliz por aí. E sem se dar conta de que a
felicidade também reside em deixarmos as pessoas viverem
suas próprias vidas.
A “Revista Espírita” de 1860, em mensagem psicografada
no início de fevereiro pela médium Srta. Eugénie, diz:
“Se Deus pôs em nossos corações essa necessidade tão
grande de felicidade, é que ela deve existir em algum
lugar. Sim, confiai nele, mas sabei que tudo quanto Deus
promete deve ser divino como ele, e que a felicidade que
buscais não pode ser material”.
Esse “algum lugar” que “não pode ser material” está
dentro de nós. Por isso, se o que sai de dentro de nós é
o desrespeito às escolhas alheias, então não somos
felizes.
Você se refere a pessoas da raça negra como “aquela
pretinha”, “aquele neguinho” e afins, mesmo que sejam
companheiros de ideal espírita? Então você é infeliz.
Você faz comentários jocosos em relação aos homossexuais
e acredita que os gays, lésbicas, transgêneros e
similares, inclusive os que atuam no movimento espírita,
são inferiores a você ou obsidiados? Lamento informar,
mas você é uma pessoa infeliz.
Se um amigo ou amiga namora alguém da raça negra, você
fica imaginando como seria bom se o namoro não desse
certo e que ela ou ele voltasse a namorar alguém branco?
Sinto muito, mas você deve ser muito infeliz.
Você toma conta da vida dos vizinhos e colegas de
trabalho para saber quem trai o cônjuge, quem é gay ou
se separou? Infelicidade sua, lamento.
Você é daquelas pessoas que ficam perguntando por que
aquele rapaz não tem namorada? Se ele tem, você fica
querendo saber se haverá casamento? Quando virá o
primeiro filho? Se haverá outros filhos? Ou então, fica
de marcação cerrada para saber se o rapaz é gay? Se ele
é gay e tem namorado, você pergunta se ele mora com o
namorado e se ele dorme com o namorado? Pode parecer
surreal, mas conheço, dentro do movimento espírita,
gente que desfere esse tipo de pergunta. Quanta
infelicidade na forma de indiscrição!
Ou então – suprema ausência de felicidade – você ofende,
discrimina, persegue e agride negros e homossexuais?
Muito triste a sua infelicidade, que é sinônimo de
orgulho, arrogância, falta de educação e também de
inveja, despeito, frustração e por aí vai.
A felicidade, como evidencia o texto da “Revista
Espírita”, deve existir em algum lugar. Um bom começo
para que esse lugar de felicidade germine e floresça
dentro é tomarmos conta da nossa vida, tentarmos ser
melhores e deixarmos os outros em paz com suas escolhas.
E lembre-se: – Gente feliz não perturba ninguém!
Bibliografia:
1- ____________
– Revista Espírita 1860, Federação Espírita Brasileira,
4ª edição, 2019, Brasília, DF.
2- GERALDO,
Nathália – “Vai nascer clarinho?": como Meghan, mães
negras já ouviram essa pergunta. Publicado em 10/03/21.
Disponível em LINK-1
3- KARDEC,
Allan – O Livro dos Espíritos, Federação Espírita
Brasileira, 60ª edição, 1984, Brasília, DF.
4- PICHETA,
Rob – Família real britânica mergulha em crise após
acusações de Harry e Meghan. Publicado em 09/03/21.
Disponível em LINK-2
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