Pela janela da minha casa
Acordei com um barulhinho de chuva leve. Ainda
sonolento, abri a janela e dei de cara com um céu azul
esplendoroso. O vizinho da frente esguichava água sobre
o carro, fiquei feliz que fosse isso. O sol estava à
toda, e nem era assim tão tarde.
Arrastei uma poltrona junto à janela e fiquei ali, com
preguiça, recebendo na cara uma brisa fresca e
aliciadora.
A pandemia me obriga a trabalhar de casa, e eu decidi
seguir à risca os protocolos de saúde da OMS, quando vi
que a coisa era séria. Ficar em casa para mim não é
tortura, ao contrário, tem suas compensações. Ouço gente
dizer que odeia ficar em casa, sem ter o que fazer.
Confesso que não compreendo isso. Mas acho que esse
desgosto se resolve com uma pergunta: você tem uma casa
ou um lar?
Se não fosse a parada obrigatória imposta pelo Covid-19,
não teria acompanhado o pequeno drama do meu filho às
voltas com o seu dentinho, cai não cai. Foi delicioso
poder compartilhar o seu alívio ao ver o dente, depois
de umas gentis sacudidelas, exposto na palma da sua mão.
Adorei essa experiência.
O vizinho assobiava, duas moças desceram a rua falando e
rindo. Mesmo lembrando que tinha que começar o meu dia,
me deixei ficar mais um pouco na janela, com aquele
ventinho gostoso no rosto. Um homem passou com sacolas
de supermercado, uma máscara pendurada no pescoço. Dois
carros subiram.
Aquele movimento numa rua tão pacata me fez pensar no
isolamento social que as autoridades sanitárias tanto
pedem. Embora desagrade à maioria, essa medida é
essencial na contenção do vírus. Mesmo resmungando,
muitos aceitaram as restrições. Mas só no começo, pois
acho que logo se cansaram.
Alguém ligou o rádio. O Ataíde trouxe o seu menino para
ficar com os avós que moram no 96. O vizinho da frente
agora enxuga o automóvel e parece satisfeito. As duas
moças estão voltando, rindo mais alto e gesticulando.
Uma delas veste um short bem ousado.
Percebo uma espécie de normalidade em tudo, até no
barulho abafado do trânsito na avenida aqui perto. O
noticiário mostra uma realidade de dor e morte que
parece não sensibilizar a muitas pessoas. Tenho a
impressão de que pouco se importam se a sorte se voltar
contra elas e obrigá-las a ir parar num hospital cheio.
Diante dessa situação opressiva, é preciso tentar
compreender as motivações de cada um, sem desesperar.
Mas creio que a superação dos problemas esteja na
capacidade de enfrentar as dificuldades sem romper com o
razoável, expondo-se o menos possível ao perigo do
vírus.
Penso que essa percepção de “normal” que muitos estão
tendo esconde ingenuidade e medo, o que os leva a
desafiar. E só se darão conta dos exageros que cometem
quando forem obrigados a parar. Enquanto isso, o
bombardeio de informações e alertas sobre a gravidade
desse momento precisa continuar. Sempre haverá alguém
disposto a escutar.
Passou o carro do gás, acho que era do gás. E lá vem
gritando o bananeiro. Fatalmente baterá no meu portão,
“Vai querer banana, hoje, patrão?”. O vizinho saiu com o
carro brilhando, o som do rádio aumentou, bem na música
que definitivamente não faz o meu gênero.
Puxo a cortina e uns pardais voam do telhado da garagem.
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