Ainda
sobre a
ação
social
espírita
Volta e meia alguns temas são reexaminados e
rediscutidos no movimento espírita. Um deles é a ação
social espírita.
Houve tempo em que a atividade espírita em prol dos
socialmente necessitados consistia unicamente em uma
ajuda material: cestas básicas, remédios, roupas,
enxovais, natal dos pobres etc. Posteriormente, a essa
ação de cunho material associou-se um pequeno suporte
espiritual, com passes, água fluidificada e palestras.
Recentemente, alguns confrades vêm questionando a
validade da ação de dupla natureza, sob a justificativa
de que pode constituir-se em obstáculo à liberdade de
consciência do indivíduo, além de ser uma forma de
proselitismo. Segundo eles, o centro deve oferecer o
socorro material sem que o necessitado seja obrigado a
assistir as palestras, ou coisas equivalentes. Acreditam
que realizar qualquer tipo de troca quando o assunto é a
emancipação das consciências não parece ser a melhor
atitude.
Outros confrades, assumindo posicionamento diverso,
questionam a tradicional ação espírita de socorro à
pobreza, afirmando que não é função das casas espíritas
conduzir atividades socioassistenciais, mas apresentar
as sementes do pensamento espírita, único capaz de
libertar as consciências de todo sofrimento.
Contribuindo nessa reflexão, trouxemos o pensamento de
Deolindo Amorim. Personagem marcante do Espiritismo no
século passado, Deolindo era formado em Sociologia,
jornalista conceituado e um dos fundadores do Instituto
de cultura espírita do Brasil (ICEB), no Rio de
Janeiro, uma das primeiras instituições a oferecer os
cursos regulares de Espiritismo. Isso por volta de 1957.
As ideias que apresento abaixo foram extraídas do livro O
Espiritismo e os problemas humanos, escrito em 1948
e reescrito em 1984. A obra encontra-se disponível
gratuitamente na internet.
O movimento espírita não pode ficar alheio aos problemas
sociais, cumprindo-lhe por isso, interferir na solução
desses problemas; devemos desenvolver e aprimorar cada
vez mais a consciência de participação na vida social,
em harmonia com o legítimo pensamento da Doutrina, que
não quer o espírita fora do mundo, mas dentro do mundo,
ajudando a transformá-lo.
***
É verdade que a Doutrina se preocupa, acima de tudo, com
o lado espiritual da vida, mas nem por isso devemos
desconhecer as omissões da sociedade, que é culpada de
muitos dramas e conflitos por causa de sua indiferença
diante de injustiças de toda ordem. E a sociedade somos
todos nós, logo, também nos cabe uma parte de
responsabilidade. [...] Não se compreende tamanha
desigualdade sob o céu de uma civilização cristã.
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A solução espírita é muito mais humanista do que as
soluções de interesse simplesmente político, pois não
basta oferecer o necessário à subsistência, que é dever
elementar, nem promover ascensões violentas, porque é
preciso educar, preparar o homem, melhorar também o
sistema que o envolve e remover hábitos, ideias e
processos defeituosos ou viciados de sua formação e do
ambiente de origem. A solução é global, não pode ser
parcial, nem momentânea.
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Quando Jesus recomenda vestir os nus e dar pão a quem
tem fome, implicitamente está ensinando ação social, que
é uma forma prática de aplicar o Evangelho. O movimento
espírita, neste particular, já está em campo há muito
tempo. Mas a solução proposta pela Doutrina Espírita não
é unilateral, é diferente de outras soluções. Antes de
tudo, precisamos ter em vista, sempre e sempre, a
premissa básica do Espiritismo: a ação social é um meio,
e um meio necessário, mas não o fim último de nossa
realização.
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Não se melhora o homem, profundamente, apenas pela
comida e pela roupa. Temos de ir mais longe. Se é
verdade que nos cumpre matar a fome física como dever
inadiável, também é verdade que não podemos deixar em
segundo plano as necessidades de ordem espiritual, pois
no ser humano coexistem a fome do corpo e a fome do
espírito. Dentro desta concepção, naturalmente a ação
social do Espiritismo não poderia reduzir-se ao
suprimento exclusivo das carências materiais. Seria uma
assistência incompleta, conquanto benéfica e de caráter
premente. Quem está faminto e abandonado cria "alma
nova", como se diz, quando recebe um prato de comida,
mas o resultado do benefício, que é, aliás, um dever
elementar, pode ser apenas momentâneo ou passageiro, se
não houver uma palavra de orientação e reerguimento
espiritual.
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Se o indivíduo volta ao que era, depois de alimentado,
retornando à trilha do vício e do crime, sem o menor
indício de transformação, evidentemente o trabalho de
assistência ficou na superfície, porque não penetrou na
alma. Justamente por isso, a visão espírita do problema
é diferente: a assistência deve corresponder também às
necessidades do espírito, pois é preciso despertar o
homem, mostrar-lhe a vida por outro prisma, levá-lo a
formar uma consciência de responsabilidade perante o seu
próximo e perante as leis divinas.
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Já se sabe que. diante de um quadro pungente ou
desesperador de miséria, onde há revolta e lágrimas por
causa da fome, não é com um discurso nem um sermão que
se abranda uma criatura que já não pode fazer uso da
razão, já perdeu a fé em si mesma, nos homens, em tudo,
afinal. A solução, no caso, terá de ser prática,
imediata. Dê-se-lhe o alimento, antes de quaisquer
observações teóricas. Quem chega a esse ponto,
naturalmente sente a mensagem do Cristo cada vez mais
distante. Não basta, porém, alimentar e deixar como
está. E como falar da mensagem do Cristo, como dizer que
ela não está distante sem ajudar, sem conversar, sem
instruir? É o outro aspecto da assistência preconizada
pelo ensino espírita.
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O programa espírita no campo social não está, portanto,
fora da realidade humana, tanto assim que a Doutrina
desaprova o procedimento dos que "fogem" do mundo ou
ficam à parte, pois não se pode recomendar a observância
de princípios superiores sem conhecer o mundo, sem
sentir os problemas de perto, tal como Paulo, pois é
pelo trabalho junto às necessidades do corpo e do
espírito que se desenvolve a ação social do Espiritismo.
E se o Espiritismo significa, para nós, a restauração do
Cristianismo em sua expressão mais viva, sem roupagens
de culto externo e sem instituições hierarquizadas,
portanto, o trabalho espírita de assistência é uma
afirmação do Cristianismo, porque leva mensagem de amor
sem nenhuma discriminação religiosa e sem o mínimo
intuito de proselitismo.
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Nesta linha de procedimento, consequentemente, não se
pode perder de vista a necessidade da reforma do homem,
por mais relevante ou imperiosa que seja a assistência
material. Dar o alimento, a roupa, o remédio e o abrigo,
segundo a natureza dos casos, é um recurso imediato, a
bem dizer imposto pelo dever de solidariedade humana,
quando se tem a consciência desse nobilitante dever.
Muitas vezes se observa, na vida prática, o impulso
generoso de um descrente ou apontado como ateu, com
verdadeiro espírito de sacrifício pelo seu semelhante,
ao passo que muitos crentes, entre os que vivem de
Evangelho na mão e não faltam às cerimônias do templo,
ficam indiferentes aos apelos da dor e aos quadros
deprimentes da pobreza desamparadas, porque preferem a
comodidade e as grandezas de seu mundo de egoísmo.
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A visão espírita de assistência abrange o homem na
totalidade, justamente porque, além do plano biológico,
onde se localizam as necessidades básicas do mecanismo
orgânico, existem direitos e aspirações que dizem
respeito à destinação superior do homem. Cumpre, pois,
ajudar o homem a melhorar-se nos três planos - material,
intelectual e espiritual - não importa o grupo étnico a
que pertença ou o meio social de onde provenha. É o ser
humano, antes de tudo, em sua conceituação global. Não
podemos, entretanto, pensar em melhorá-lo sem que lhe
ofereçamos instrumentos que o ajudem a reerguer-se,
compenetrando-se conscientemente de seu papel no mundo.
Por isso mesmo, repetimos que a comida e a roupa têm
muito valor em seu momento mas é indispensável
libertá-lo da ignorância e reintegrá-lo na dignidade da
vida pelo conhecimento e pela reeducação. Não podemos
certamente alimentar ilusões com programas que vejam
somente a solução material. Seria como que um retorno à
época do "pão e circo".
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Como seria possível uma ordem social realmente justa sem
atenção à pessoa humana, sem liberdade, sem amor, mas
amor na acepção elevada de respeito e solidariedade sem
discriminação? [...] Para os espíritas, finalmente, o
Cristianismo não é apático. Se, na realidade, o cristão
ficasse apenas na fé, rezando e contemplando o mundo a
grande distância, sem participar do trabalho de
transformação do homem e da sociedade, jamais a palavra
do Cristo teria influência ponderável. O verdadeiro
cristão, o que tem o Evangelho dentro de si, e não o que
apenas repete versículos e sentenças, não pode cruzar os
braços dentro de um mundo arruinado e poluído pelos
vícios, pela imoralidade e pelo egoísmo.