Empatia e insegurança alimentar
Era o dia 7 de janeiro, bem me recordo. Aproveitei que
estava de férias do trabalho para ir à Cidade
Maravilhosa visitar algumas agências e mostrar meu
portfólio. Estava em busca de uma nova colocação na área
de publicidade, colocação que eu conseguiria tempos
depois (eu ainda não cursava jornalismo). Eu havia
marcado visita em quatro agências, todas na Zona Sul
carioca. Acordei cedo, tomei café da manhã e embarquei
no ônibus rumo ao Rio de Janeiro.
Fui a duas agências de publicidade no período da manhã e
a duas na parte da tarde. Tempo corrido, cidade grande,
trânsito intenso. Acabei não almoçando para poupar
tempo. Entre uma visita e outra, eu lanchava. Brioche,
coxinha, suco, sanduíche natural, misto quente,
refrigerante, pão de queijo. Tudo muito rápido. Comia em
pé mesmo, naquelas lanchonetes de balcão. Confesso que,
apesar de ter comido o dia inteiro, não me senti
alimentado.
Cheguei a Petrópolis no início da noite e fui direto
para a casa do amigo Sandro Rodrigues. Era aniversário
dele; por isso, não esqueço a data. Na casa de Sandro, a
quem tive o prazer de evangelizar na mocidade, comi e
bebi os quitutes típicos da festa: salgadinhos,
docinhos, bolo, guaraná etc. Na hora de ir embora, virei
para Viviana, que eu também havia evangelizado, e
comentei que comera besteira o dia inteiro e ficara com
fome de comida de verdade. A sensação de vazio no
estômago me incomodava. Faltara algo com mais sustança,
como diziam os antigos. No dia seguinte, já em casa, só
me dei por satisfeito quando almocei em família. Aí,
sim, eu estava nutrido!
Tempos depois, Martha, minha dentista e amiga de longa
data, comentava comigo acerca dessas fomes que
eventualmente nos assaltam, mas que sabemos que serão
saciadas. Vamos supor, disse ela, que eu acorde em cima
da hora de vir para o consultório e não tome café da
manhã. Eu começo a trabalhar em jejum, mas sei que, em
dado momento, farei uma pausa para tomar um café com
leite, pão com manteiga, suco de laranja... Mesmo que eu
não consiga, há a inevitável pausa para o almoço. Aí,
sentarei com calma à mesa e me alimentarei. Martha,
então, refletiu comigo como deveria ser difícil a vida
de quem acorda e pergunta a si mesmo se, naquele dia,
conseguirá comer algo. Mais ainda: o que vier a comer
saciará a fome, ou o estômago se sentirá incompleto?
Imaginemos, agora, a situação pela qual eu passei e o
exemplo dado pela minha dentista sendo vividos por muita
gente todos os dias. Aquela fome que nunca passa, apesar
de a pessoa comer uma coisinha aqui e ali. Isso, caso
ela seja bem-sucedida. E mesmo que almoce e fique
saciada, a incerteza continua. Afinal, há a fome do
lanche da tarde, do jantar, do café da manhã do dia
seguinte... Isso me faz lembrar o que meu saudoso amigo
Célio Volgari ouviu certa vez de um garotinho
socialmente carente, cuja família era atendida pelo
centro espírita do qual fazemos parte. Disse o menino,
com aquela empolgação inocente de quem marcou dois gols
no futebol com os amigos: “Tio Célio, esta semana, eu
consegui almoçar quatro vezes!”.
Há um termo que define a situação na qual as pessoas não
conseguem comer todos os dias, se veem obrigadas a pular
refeições ou se alimentam de forma insatisfatória:
insegurança alimentar.
De acordo com um estudo realizado no final de 2020 por
pesquisadores da Universidade Livre de Berlim
(Alemanha), em parceria com a Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG) e a Universidade de Brasília (UnB),
59,4% dos lares brasileiros haviam passado por situação
de insegurança alimentar no último trimestre do referido
ano. Considerando que a falta de alimentação adequada
traz uma série de impactos para a saúde (enfraquecimento
do corpo, prejuízos no desenvolvimento físico e mental,
aumento da probabilidade de doenças etc.), temos um
quadro que fere o Artigo 6º da nossa Constituição
Federal (CF). Ele estipula a alimentação como um dos
direitos sociais, juntamente com educação, saúde,
trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança,
previdência social, proteção à maternidade e à infância
e assistência aos desamparados. A pesquisa evidenciou
também que 44% dos brasileiros reduziram o consumo de
carnes e, 41%, o de frutas. É o resultado da trágica
combinação entre instabilidade socioeconômica, histórica
injustiça social e pandemia. Contribuíram para o
agravamento desse quadro as extinções do Ministério do
Desenvolvimento Agrário, em 2016, e do Conselho Estadual
de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável, em
2019.
Consta no título desta crônica a palavra empatia, que
vem sendo muito utilizada atualmente. Ela significa a
capacidade de se colocar no lugar do outro para melhor
entendê-lo e atendê-lo. Identificação seria um bom
sinônimo. A empatia é diferente da simpatia, que
significa tratar alguém com cordialidade. Só que o
simpático nem sempre é empático. Se, por exemplo, um
amigo me diz que está sem dinheiro para pagar a conta da
luz e eu digo para que ele tenha fé, pois tudo irá
melhorar, e que eu orarei por ele, estou sendo
simpático. Mas se o problema dele doer em mim e eu me
mobilizar a ponto de conseguir uma forma de ajudá-lo a
pagar a conta (seja lhe dando o dinheiro ou fazendo uma
vaquinha com amigos em comum), eu estou sendo empático.
Relato nesta crônica uma situação de ligeira insegurança
alimentar vivida por mim num dia agitado. E ressalto a
questão da empatia porque volta e meia somos abordados
por gente pedindo dinheiro para comprar comida ou para
que paguemos um lanche ou similar. Comigo, ocorre várias
vezes. Quando isso acontecer, sempre é bom que a empatia
dê a tônica da nossa reação, seja para o trivial ou para
algum acepipe ou guloseima que todos apreciam, inclusive
os que passam fome.
Quando eu trabalhava no Rio de Janeiro, fui abordado,
certa vez, no caixa de uma pizzaria por uma senhora. Ela
pediu que eu pagasse um pedaço de pizza para ela. Quando
eu ia pagar, ela pediu um copo de refrigerante também.
Aleguei que só pagaria a fatia de pizza. Dias depois,
comentei o acontecido na reunião da mocidade da qual eu
fazia parte. A meu ver, a senhora havia exagerado ao
pedir a bebida. Foi quando Consuelo, grande amiga minha,
indagou, com extrema lucidez, por que eu podia comer
pizza com refrigerante enquanto aquela senhora tinha de
comer a fatia a seco. Foi uma bofetada moral que recebi,
mas confesso que foi muito bom. Consuelo estava coberta
de razão. Isso me faz lembrar uma situação vivida por
Ondina, uma conhecida que foi abordada por um menino
numa padaria. Ele estava com vontade de comer um mil
folhas de chocolate, aquele doce feito com várias
camadas de massa folhada. Ela, contudo, lhe pagou um
café com pão. Volto à questão brilhantemente levantada
por Consuelo: por que um menino pedinte não pode ter
vontade de saborear um mil folhas? Só porque ele está em
situação vulnerável, está fadado a tomar uma média com
pão e manteiga toda vez que pedir por algo numa
padaria?
Vem à minha mente também uma conversa que tive com o Sr.
Juvenal, antigo motorista de táxi da minha vizinhança.
Católico praticante, ele me contou um fato ocorrido
quando ele fazia compras com um dos filhos e aproveitou
para pegar os itens da cesta básica que sua paróquia
distribui todos os meses. Juvenal pediu para que o filho
pegasse 2kg de feijão: um para eles e outro para os
necessitados. Quando o menino pegou um feijão de
qualidade inferior para compor a cesta, o pai interveio:
– Não, meu filho! Tem de ser o mesmo feijão de boa
qualidade para nós e para eles! Não é porque são pobres
que irão comer um feijão ruim. O que é bom para nós tem
de ser bom para eles também!
Todos esses episódios ocorreram na mesma época. Desde
então, passei a ficar mais atento quando alguém me pede
para pagar ou comprar algum item alimentício. Há poucos
dias mesmo, fui abordado, na porta do supermercado, por
uma senhora. Ela perguntou se eu poderia comprar para
ela um pacote de café da marca XYZ. Pedi que ela
aguardasse até a minha saída e comprei o café por ela
solicitado. Nem reparei se era o mais caro ou mais
barato de todos, mas foi o café que ela pediu. Quando
entreguei o pacote, ela foi embora, feliz e agradecida.
Crianças adoram doces, não importa se estão bem vestidas
ou maltrapilhas. Se o menino quer um doce, sejamos
empáticos e compremos o doce que ele pediu. Se um homem
faminto nos abordou, sejamos empáticos, pensemos o
quanto deve ser duro viver na insegurança alimentar,
providenciemos uma refeição decente e nos mobilizemos,
como muitos já fazem, para que todas as pessoas tenham
acesso a três refeições por dia. Há muitas entidades
voltadas para esse fim. Basta pesquisar.
Nos artigos que compõem esta série sobre fome e
alimentação, já falei sobre o sistema econômico
excludente no qual estamos inseridos. Sistema que nega a
muitos o acesso à comida boa, farta e de qualidade. Sei
que pagar uma refeição, uma fatia de pizza com
refrigerante, um mil folhas ou providenciar uma cesta
básica com produtos top de linha não resolverão a
complexa questão chamada insegurança alimentar. Mas
ajudar pessoas a comer com dignidade, principalmente em
tempos de pandemia, já demonstra o quão empáticos
podemos ser. Isso talvez seja um dos primeiros grandes
passos que teremos de dar para que todos tenham pleno
acesso a uma alimentação de qualidade.
E por falar em alimentação, o item 24 do capítulo XI de
“A Gênese”, quinto livro escrito por Allan Kardec, diz
que a obrigação que o homem tem de prover a si próprio o
força a empregar a própria inteligência para investigar
formas de exercitar e desenvolver os atributos que
possui. Ao fazer isso, auxilia o progresso material de
si mesmo e também ajuda o planeta a ir mudando para
melhor. É, segundo Kardec, uma forma de colaborar com a
obra do Criador.
Esse dever que todos os homens e mulheres encarnados no
planeta possuem diz respeito não somente à evolução
individual. Passa pelo coletivo também. Afinal, ajudar
no progresso material do globo tem a ver com administrar
de forma equânime e justa os alimentos que o planeta
possui e garantir que eles cheguem à mesa de todos. Isso
é utilizar a inteligência para investigar como
desenvolver o atributo da empatia. Não é o que estamos
acostumados a ver, infelizmente. Falta, portanto,
empatia. Quando todos nós soubermos praticar essa tão
badalada virtude, o progresso correrá solto, com
segurança de mesa farta e abundante para todos e sem
gente perambulando pelas ruas pedindo auxílio para
comer.
Bibliografia:
1- Faculdade
de Medicina – Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) – Insegurança alimentar cresce no país e aumenta
vulnerabilidade à Covid-19. Para acessar clique em link-1
2- Kardec,
Allan – A Gênese, 34ª edição, 1991, Brasília, DF.
3- Pellegrini,
Aline – Qual o quadro de insegurança alimentar no Brasil
da pandemia. Para acessar clique em link-2
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