Tempo de isolamento, tempo de reflexão
Momentos oportunos para refletir é coisa que não tem
faltado, nos últimos tempos, na nossa vida, minha e de
todos nós, segundo creio.
Encontrando-me, pela segunda vez neste ano letivo, em
isolamento profilático, desta vez por ter tido contato
com um aluno positivo, a acrescer a um grande período de
ensino a distância, on-line, neste e no ano letivo
anterior, dou por mim a interrogar-me com preocupação
sobre o rumo que as relações humanas podem vir a tomar,
se não formos suficientemente precavidos. Este
sentimento de impotencialidade que mais ou menos
acentuadamente nos vai invadindo a todos, cavando túneis
escuros nas profundezas da alma, vai conduzindo, aos
poucos, a outros sentimentos que importa analisemos e
combatamos a todo o custo. Podemos apontar, de entre
outros, o medo de nos relacionarmos, de nos chegarmos
aos outros, o medo do toque, do beijo, do abraço, do
simples aperto de mão, gestos tão humanos e tão
imprescindíveis para que sintamos o calor do afeto que
nos une.
Na escola, nomeadamente, entre as crianças, quer quando
imersas nas suas brincadeiras, quer no trabalho de
cooperação, entreajuda, partilha, que tanto vimos
incentivando no quotidiano escolar, não conseguimos
imaginar uma educação de sucesso sem que os
relacionamentos sejam profundos e repletos de momentos
presenciais e sem distanciamentos. O afeto está na raiz
da educação e da preparação da criança e do jovem para a
plena realização da sua cidadania livre, consciente e
solidária. São estes os valores que eu, como os
educadores em geral, temo que sejam, paulatinamente
desvalorizados. Passo a redundância, mas acho necessária
para realçar a preocupação que nos assalta.
São grandes os recursos tecnológicos de que dispomos
atualmente, na maioria dos países desenvolvidos, ou até
em desenvolvimento, fato pelo qual nos devemos sentir
reconhecidos. Noutros tempos, noutras situações
similares à que hoje vivemos, os isolamentos eram muito
mais solitários, quando as escolas fechavam, paravam as
aulas, não havia formas de comunicação avançadas, as
pessoas ficavam distantes e sós. Hoje estamos on-line
com o mundo, mas queixamo-nos, como nunca, de solidão.
Hoje estamos sós dentro de nós mesmos.
Por isso mesmo, importa aproveitar este tempo tão
especial, em que vimos as nossas vidas transformadas de
uma forma que nunca julgaríamos possível, em tempo de
reflexão, em tempo de busca de um sentido para tudo o
que nos está a acontecer. Não é o Covid-19, certamente,
o único problema que assola este nosso mundo, onde o
sofrimento e a dor não faltam. Continua o nosso planeta
a ser avassalado por catástrofes de toda a ordem, quer
de cariz social e humano, quer da ordem dos fenômenos
naturais. Mas, sem qualquer dúvida, a pandemia
ofereceu-nos este tempo de paragem obrigatória de que
necessitávamos para refletirmos sobre o que temos estado
a fazer da nossa vida. Diz-se no meu país, Portugal,
“deitar contas à vida”. Diria eu “Deitar contas às
nossas vidas” porque, apesar de não termos memória
nítida sobre o acervo de experiências que temos
vivenciado ao longo das inúmeras existências, elas estão
fortemente interligadas e, mais não temos andado do que
a colher constantemente os frutos das sementeiras
pregressas. E a semear para continuar a colher. Mas… o
que temos aprendido com todo este semear e colher
incessantes? Valerá a pena continuar no mesmo rumo?
Haverá mudanças prementes a encetar?
Continuando na mesma linha de preocupações, iniciada
acima, quais os valores que temos cultivado até hoje?
Serão os que nos aproximam dos outros? Ou serão os que
nos afastam até de nós mesmos e dos nossos objetivos de
felicidade? Que objetivos temos andado a delinear? Serão
os certos? Estarão a dar os resultados pretendidos?
Estas são questões que um gestor faz constantemente para
bem gerir a sua empresa. Teremos nós menos cuidado na
gestão da nossa existência? Não será cada vida que Deus
nos concede como oportunidade de aprendizagem a maior
empresa que temos em mãos?
Agora que nos vemos forçados a parar e a viver alguns
momentos “breves” de isolamento, em que nos sentimos
acossados pela solidão, talvez seja ocasião de
aprendermos a valorizar os momentos em que poderíamos
estar juntos mas apenas demos importância aos assuntos
materiais, à diversão, ao personalismo, ao
individualismo, que, no fundo, agora, de pouco nos
servem. Se os valores que cultivamos são mais materiais
do que espirituais, quiçá quase exclusivamente materiais
e quase nada espirituais, quando chegam os momentos
difíceis que, com ou sem pandemia, são comuns à
caminhada de todos nós, faltam-nos as reservas de afeto,
a nossa resistência moral é quase nula, vem o desânimo,
a tristeza, a depressão.
Quero com isto dizer que não nos é legítimo sentir
tristeza por toda a situação que estamos a atravessar?
Que não devemos sentir dor pela ausência ou
distanciamento daqueles que amamos? Que não devemos
sofrer com a dor que avassala o mundo? Evidentemente que
não se trata disso. Trata-se de, como espíritas, com
alguma compreensão acerca dos mecanismos de ação e
reação presentes nas Leis Divinas, e com o dever de um
sentir mais profundo acerca da necessidade de pautar a
vida por valores maiores que nos conduzam ao crescimento
espiritual, não nos deixarmos abater e encontrar na Fé,
no Conhecimento, a força de que carecemos para seguir
adiante. Trata-se de, como espíritas, sermos uma das
forças motrizes que poderá içar o mundo para tempos mais
felizes, em que os relacionamentos humanos sejam vivos,
profundos, solidários, altruístas, presentes.
Pensemos: Será que o vírus veio realmente separar-nos?
Ou estaríamos já, desde há muito, separados, e nem
parávamos para nos darmos conta de tão triste fato?
Talvez tenha o vírus chegado para que nos apercebêssemos
da solidão em que temos andado a “viver”. Pensemos
ainda: Se nada acontece por acaso… Se Deus a tudo provê…
Se temos a Espiritualidade com os olhos postos em nós,
trabalhando incansavelmente para nos fazer avançar e
evoluir, quer a nível pessoal, quer ao nosso mundo…
façamo-nos merecedores de toda a ajuda que recebemos,
demos graças ao Pai pelos recursos que temos no tempo
que nos é dado viver, e pela oportunidade de aqui estar
agora, neste exato momento, que é indubitavelmente o
tempo certo e adequado às nossas necessidades. E… não
desperdicemos o ensejo de refletir e crescer.
E, quanto às nossas crianças, como educadores
empenhados, sejamos professores ou pais, aproveitemos
também para as ajudarmos a refletir, na medida das
capacidades inerentes à sua idade, de modo a que, desde
cedo, valorizem o que é realmente importante, e não
descurem os afetos, sem os quais a vida tem tão pouco
sentido. Ajudemo-las a cultivar a sua espiritualidade e
a fazer da vida uma caminhada com os outros.
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