Correio mediúnico

Espírito: Hilário Silva

O lar das crianças


I


Amigos espirituais diversos, estávamos a postos. E os companheiros encarnados iam chegando. Seriam discutidos os estatutos para a fundação do lar de crianças, junto a grande organização espírita.

Mesa-redonda.

Cada qual poderia expender francamente seus pontos de vista. Desabafo. Franqueza. Antes, porém, o cafezinho. E, ao cafezinho, Augusto Franco, conselheiro da casa e dos mais experientes, argumentava:

- Se Deus não se compadece da Humanidade, estaremos perdidos. O campo social é manicômio sem portas. Todos brincam de viver. Há por toda parte soberano desprezo ao trabalho, e o vício e a criminalidade vão crescendo. Abusos no cinema. Preguiça delituosa. Todas as bebidas liberadas. Maconha. Máquinas e empregados para todos os misteres. Residências superluxuosas. Festas inoportunas. Há domicílios com bilhares, bar interno, cinema próprio, salões de baile e piscinas, quando temos milhares de companheiros a quem falta o estritamente necessário. Altas rodas passam a noite no pif-paf. Pais e mães abandonam meninos a criaturas mercenárias que, muitas vezes, lhes administram entorpecentes para estarem, durante a noite, mais à vontade. E, em consequência, temos a granel quadrilhas juvenis, tragédias passionais, crianças delinquentes e vagabundos inveterados.

E alongou-se a crônica verbal.

O ponderado orientador da casa, tantas vezes esteio firme da instituição, registrou com acerto todos os desacertos do mundo.

A pequena assembleia ouvia, ouvia... Nisso, porém, o horário avançou além do tempo previsto.

- E a nossa reunião? - perguntou Franco, percebendo que retardara.

Os companheiros, todavia, pareciam desenxabidos... Todos monossilábicos.

- Creio seja melhor adiar... - disse Cunha, o presidente da casa.

E Leivas, o tesoureiro, aderiu, aprovando com a cabeça.

- Outro dia...- acrescentou D. Ricardina, a secretária.

E todos os demais, à uma, pronunciaram a palavra "depois". Franco, porém, não concordou. Sentia-se culpado e pedia escusas. Exigia. Que o perdoassem pela comprida conversação, mas vivia espantado com os desastres morais.


II


Não houve outro recurso senão atendê-lo. O prestimoso conselheiro instava com tanta humildade que Felício Cunha buscou a papelada e, como de outras vezes, pronunciou a prece de abertura, rogando a inspiração de Jesus.

Foram iniciados os estudos para o lançamento da obra, e, porque todos os amigos gaguejassem, como se estivessem receosos de expor o pensamento, Cunha foi claro.

- Augusto - falou, corajoso -, creio que todos nós, sem prévia combinação, preferiríamos o entendimento para outra hora, a fim de não contrariarmos a você mesmo.

- Ora essa! Como assim?

E Cunha, abrindo um relatório:

- Você é o autor da maior parte de nossos planos. Veja bem. Você quer uma casa complexa. Esperamo-la simples. Você quer um monumento. Aspiramos a um lar. Você pede a construção de trinta e dois aposentos. Pretendemos apenas quinze, e olhe lá que vão abrigar muitas crianças. Você solicita um salão de festas. Não queremos qualquer ruído inútil. Você reclama empregados pagos. Não tencionamos remunerar cooperador algum. Você julga que as crianças devem ser mantidas sem trabalho. Consideramos que todas devem estudar e servir, segundo a vocação e a capacidade delas, fazendo-se úteis o mais cedo possível. Você espera um parque de brincar, adornado com uma fonte luminosa. Nós tememos semelhante aquisição, que viria favorecer a irresponsabilidade infantil. Você planeja a compra de noventa globos e dez lustres para luzes elétricas. Estamos satisfeitos com quarenta lâmpadas simples. Você propõe a compra de muitos metros quadrados de ladrilhos brancos e azuis. Não contamos com material dessa espécie, crendo que os ladrilhos singelos nada deixam a desejar. Você indica várias peças de mármore. Escolhemos apenas cimento. Você diz que precisaremos de quarenta colchões de mola. Teremos colchões vulgares. Você especifica um número exagerado de pias e banheiros, tapetes e móveis. Sonhamos uma casa confortável, sem ser suntuosa, simples sem ser miserável, onde as crianças não sejam bibelôs para os nossos caprichos e, sim, nossos próprios filhos. E como suspiramos por nossos filhos libertos dos prejuízos morais que vergastam a Terra, admitimos seja nosso dever não enganar a nós próprios, abraçando a realidade sem os perigos da fantasia, porque realmente, meu caro, o futuro vem aí...

Augusto Franco, apanhado de surpresa, mastigou em seco, tossiu, pigarreou e disse desapontado:

- É... é..., de fato vocês têm razão. .

E depois de um instante em silêncio, como se estivesse falando para dentro de si:

- Meu Deus, é muita coisa sobrando!

Lima, contudo, o vice-presidente da casa, pediu que fosse adiado o debate geral do assunto, e Cunha, com aquiescência de todos, orou, calmo, encerrando a reunião.

 

Do livro A Vida Escreve, obra psicografada pelos médiuns Francisco Cândido Xavier e Waldo Vieira.


 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita