Vigilância e o canto das sereias
A palavra vigilância tem origem no latim vigilare e
significa estar atento, em vigília, de prontidão. A
vigilância permite que o soldado não seja ‘pego de
surpresa’, por exemplo. Ou ainda, com vigilância em seus
atos, pensamentos e ações que não realizem algo contra
si mesmo. Com isso, o ato de vigilância precisa ser
distinguido entre a cautela e precaução com terceiros e
contra seus próprios hábitos antigos.
Para tanto, é favorável rememorar a façanha do herói
Ulisses, do poeta grego Homero. Em sua Odisseia, na
viagem de volta para a ilha de Ítaca, o herói foi
advertido do perigo iminente das sereias. Estas eram
seres mitológicos que encantavam as pessoas com sua
beleza e canto, mas as levavam para a perdição. Todavia,
Ulisses conseguiu superar tal prova devido ao
reconhecimento inicial da sua fraqueza. Ele se conhecia
bem. Assim, pediu para que os seus marujos o amarrassem
ao mastro do navio para evitar sucumbir ao canto e
encanto das sereias: “Mas ao longo do mastro em rijas
cordas. E se pedir me desateis, vós outros. De pés e
mãos ligai-me com mais força[1]”.
Ulisses sabia do poder das sereias, seduções estas que
fizeram tombar tantos outros grandes navegadores. São as
ilusões do mundo, as tentações da matéria, as paixões e
fascinações da carne que atraem e conseguem dissipar
boas oportunidades de realizações. Seja pela perda de
energia e tempo, seja pelas direções e recursos. Por
isso, a vigilância constante é algo tão importante
quanto à disciplina. É evitar as portas largas das
paixões no mundo, pois “o espírito está pronto, mas a
carne é fraca[2]”.
Das lições de Ulisses, observa-se a coerência dos
ensinamentos do apóstolo Marcos[3]:
“olhai, vigiai, orai”. Olhai inicialmente para dentro de
si.
O autoconhecimento. Observe seus pontos fortes e fracos.
Crie um projeto de renovação e melhorias. Naquilo que se
tem baixa probabilidade de sucesso, reforce ainda mais a
vigilância. Tal como fez Ulisses ao ser amarrado no
navio. É o cuidado com o “calcanhar de Aquiles”, nossas
dívidas mais relevantes ou falhas morais que ainda
necessitam de atenção. As aquisições mais valiosas são
justamente aquelas que retificam nosso “calcanhar de
Aquiles”. Vitórias que vêm por meio de esforços
hercúleos e sacrifícios, pois certamente tivemos quedas
em muitos outros momentos de nossa história e passagens
pela Terra. São as sombras internas, nossas áreas ainda
pouco iluminadas que precisam ser reconhecidas e
confrontadas, tal como na passagem do herói grego. Os
equívocos, enganos e erros do pretérito sempre vão
requisitar a liquidação no momento oportuno.
Mais do que um simples poema, a Odisseia é a vitória do
ser sobre suas próprias inclinações e tendências. É a
iluminação do ser pelo conhecimento, vigilância e
trabalho. Nas palavras de Emmanuel[4]:
“se a própria pedra deve sofrer o burilamento para
refletir a luz, que dizer de nós mesmos, chamados, desde
agora, a exteriorizar os recursos divinos?”. Todavia,
poucos se aventuram sobre suas más inclinações, pois
indubitavelmente são mares bravios. É
necessário adentrar esse mar, este deserto interior e se
fortalecer por meio da aquisição de novos conhecimentos
edificantes e do trabalho para o bem. Apenas com
o trabalho no bem, a aproximação com Jesus e a renovação
interior é possível contar com a boa providência e a
esperança da paz interior, de forma ampla e irrestrita.
É se fortalecer para não sentir o balanço do mar.
Todavia, não é possível esperar a transformação sem
passar novamente pela provação das sereias. É preciso
vigilância constante, mas sem temor. Na complementação
dos versos de Marcos[5]:
“Olhai, vigiai e orai; porque não sabeis quando chegará
o tempo”.
Outro ponto de destaque é a necessidade de bons amigos e
pessoas que complementam a realização da tarefa.
Ulisses, caso estivesse sozinho e não contasse com
valiosos companheiros, provavelmente não teria tido o
mesmo sucesso em relação ao desafio. É preciso saber
cultivar as boas amizades como prova de vigilância
também. Nas palavras dos Provérbios: “Aquele que anda
com os sábios será cada vez mais sábio, mas o
companheiro dos tolos acabará mal[6]”.
Ou ainda, pelas observações do apóstolo dos Gentios: “as
más companhias corrompem os bons costumes[7]”.
Autoconhecimento, fortalecimento dos pontos fortes,
aproximação com Jesus, vigilância ao “calcanhar de
Aquiles”, boas companhias são alguns pontos de destaque
da vigilância. Mais do que simples lições de atenção, a
vigilância se transforma em incontestável programa de
renovação interior e de progresso. Se há mares bravios,
sejamos como o continente de sabedoria e amor que
percebe as ondas, mas as abraça com paciência e
generosidade. Por meio das vitórias sobre as sereias do
mundo, conquistaremos as estrelas do céu.8
1.
Odisseia, Homero, Livro XII: 120.
4. Fonte Viva. Cap. 54 - Procuremos com zelo.
5.
Marcos 13:33.
7. 1
Coríntios 15:33.
Este texto foi escrito em homenagem à minha mãe.
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