“Soul” e
a missão
libertadora
O final do conturbado 2020 nos presenteou com a estreia
no streaming de uma pérola da animação. O filme
“Soul” (Peter Docter/2020) que, como o filme do mesmo
estúdio (Pixar), “Viva, a vida é uma festa” (Adrian
Molina, Lee Unkrich/2017), explora questões
transcendentais e filosóficas, tão caras a nós,
espíritas. Sobre esse filme escrevi algumas linhas, que
serão melhores aproveitadas na reflexão por quem
assistiu ao mesmo. Se não o fez, faça-o agora. É
imperdível.
Sem me deter no roteiro do filme especificamente, vou
pular diretamente para sua mensagem principal: a de que
não existe uma missão na Terra. Não no sentido
pragmático, de se ter um objetivo sociotécnico, do tipo
“eu encarnei para ser músico”, como se isso fosse um
determinismo sem o qual a nossa jornada não se
completaria, um argumento que serve de desculpas ou
muletas para ações obcecadas, egoísticas, nos chamados
sonhos disfarçados de ambição desenfreada, que, por
vezes, nos hipnotizam e cegam.
Essa ideia do filme, de matriz filosófica
existencialista, dialoga com a visão espírita de
reencarnação, e com proposições que vemos na prática, de
almas gêmeas, ou de missões estritamente determinadas
antes da encarnação, fazendo da existência um jogo já
combinado de deuses, ao estilo do antigo Olimpo, e não
uma construção na qual aproveitamos oportunidades que se
descortinam, de acordo com as nossas necessidades
evolutivas, e traçamos jornadas, com pessoas da nossa
rede, mas com outras também, passando por novos temas e
por novas aprendizagens, ressignificando o conceito de
evolução.
Nessa visão, a reencarnação perde aquela concepção
estrita de cumprir um roteiro rígido e predeterminado,
para ser um caminho de experienciação evolutiva, na qual
o aprendizado e a entrega aos que nos cercam tem um
grande sentido, e somos convidados a nos superar,
fazendo a lógica da prova se sobrepor a das expiações.
Então, a vida deixa de ser vista como um sofrimento
pesaroso – em que devemos pagar pela nossa desobediência
a um poder tirano – para ser uma oportunidade de
reinício e de reconstrução, de um pai amoroso que nos
oportuniza.
Essa narrativa é bem trabalhada no filme, trazendo uma
nova leitura para a pergunta 132, de “O Livro dos
Espíritos”: Qual o objetivo da encarnação dos Espíritos?
“Deus lhes impõe a encarnação com o fim de fazê-los
chegar à perfeição. Para uns, é expiação; para outros,
missão. Mas, para alcançarem essa perfeição, têm que
sofrer todas as vicissitudes da existência corporal:
nisso é que está a expiação. Visa ainda a outro fim a
encarnação: o de pôr o Espírito em condições de suportar
a parte que lhe toca na obra da criação. Para executá-la
é que, em cada mundo, toma o Espírito um instrumento em
harmonia com a matéria essencial desse mundo, a fim de
aí cumprir, daquele ponto de vista, as ordens de Deus. É
assim que, concorrendo para a obra geral, ele próprio se
adianta”.
Note, estimado leitor, que a ideia de pagar por coisas,
ou ainda, de colocações determinísticas na vida social,
não tem espaço nessa definição trazida pela nossa obra
primeira. Seria um reducionismo fazer de nossa
existência uma peça teatral de um diretor radical, na
qual nos caberia ser, apenas, coisas ao seu gosto. O que
se propõe é que a vida se faz maior quando a
vivenciamos, e de que forma passamos por essa
experiência, e que frutos colhemos na cesta do espírito
que levaremos para as outras vidas.
Uma visão libertadora que, para aqueles que sofrem ao
lado de pessoas, por entenderem ali estar o seu
compromisso, ou pelos que perseguem, obcecados,
carreiras de renome, justificando ali a sua tara por
conta de questões reencarnacionistas, traz uma visão de
que a reparação, parte essencial da evolução, precisa de
interações mais profundas, e que não nascemos para ser
coisas, mas para vivenciar situações que nos trazem
crescimento espiritual. E que se descortinam; algumas
planejadas, outras não.
A encarnação é uma nova oportunidade de aprendizado da
escola da existência. Um espaço aberto de possibilidades
que nos atendam como espírito, construindo opções e
caminhos e fazendo a diferença – para os que nos cercam
e para nós mesmos. Se a vida tivesse o seu ápice quando
chegamos ao sucesso em algum aspecto profissional, como
é discutido no filme, desprezaríamos o seu papel
experiencial, de viver esse e outros papéis, importantes
na jornada até lá, mas, também, pelo viver o após e o
transversal a isso tudo.
Olhamos pessoas de destaque e pensamos que elas nasceram
assim, e esquecemos que aquela condição é a construção
de várias existências e que tem o potencial de
aprendizado, mas também de derrocada. Justificar apenas
pela missão espiritual e diminuir o potencial de uma
oportunidade de crescimento no caudaloso rio da vida
que, consoante ao dito por Jesus, é regido por um Pai
que faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e faz chover
sobre justos e injustos.