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por Marcelo Teixeira

 

O ‘irmão’ que fez a diferença


Começo este artigo dizendo algo que talvez chateie a muitos espíritas: detesto que me chamem de irmão! Acho piegas, meloso, ultrapassado. Por mais que sejamos irmãos em humanidade, não julgo necessário utilizarmos a palavra ‘irmão’ para nos referirmos uns aos outros. Já passei por situações que me deixaram sem graça por causa desse hábito.

Há alguns anos, cheguei a um centro espírita que me convidara para palestrar. Lá chegando, a moça designada para me receber, disse, toda solícita e com uma atitude um tanto servil, diga-se de passagem:

– Boa noite, irmão! Seja bem-vindo à nossa casa! Se o irmão quiser algo, é só pedir! Está bem, irmão?

Como sou alto (1,86m) e a moça era baixa, a situação soou ainda mais constrangedora. Parecia que ela me reverenciava. Ela insistiu no tom servil:

– Quer alguma coisa, irmão?

Eu então, respondi, em tom cordial e bem informal:

– Quero, sim. Não me chame de irmão. Meu nome é Marcelo. Pode me chamar somente de Marcelo.

Ela, entre surpresa e ao mesmo tempo agradecida por tê-la livrado da armadura da reverência, aquiesceu:

– Ok, sem problema. Só Marcelo, então.

Em outra ocasião, também num centro espírita que me convidara para proferir uma palestra, uma senhora, durante o lanche após a preleção, me chamou o tempo inteiro de irmão Marcelo. E como ela tinha uma voz fininha que exagerava na segunda sílaba, a coisa ficou pior. Era um tal de “Irmão Marceeelo, quer bolo?”, “Irmão Marceeelo, quer café ou chá?”, “Irmão, Marceeelo, tem pão de queijo também!”. Como havia muita gente em volta, nada disse; fiquei na minha. No entanto, dei graças a Deus quando fui embora.

Chamar o companheiro de ideal de irmão causa também um inconveniente linguístico que soa mal aos meus ouvidos: dirigir-se ao interlocutor na terceira pessoa do singular. Geralmente, utilizamos o tom coloquial. Exemplo: – José, você assistiu à palestra?

Já quando optamos pelo termo ‘irmão’ ou similar, me dirijo a José como se ele fosse outra pessoa: – O irmão assistiu à palestra? – Seria o caso de José responder: – O irmão eu não sei se assistiu, mas eu assisti. Preferir o discurso direto é bem mais informal e prático. Não precisamos empolar o discurso, apelando para o termo ‘irmão’ para soarmos fraternais.

Algo que já notei é que alguns espíritas abusam do termo, utilizando-o, às vezes, para camuflar preconceitos ou mesquinharias. Foi o caso de um indivíduo daqui de Petrópolis (RJ), onde vivo, que se referiu a uma amiga minha de movimento espírita como “aquela negrinha”. Diante da censura minha e de mais dois amigos à forma preconceituosa por ele utilizada, o sujeito saiu com a seguinte pérola: – Ah, meus irmãos! Mas ela é de fato uma negrinha, não é, meus irmãos!

 Confesso que me segurei para não desancar o “irmão” que só se acha irmão de quem é cara-pálida feito ele.

Mas vamos fazer jus ao título desta crônica. Houve uma vez em que me enchi de contentamento por ter sido chamado de irmão. E foi poucos dias antes de eu escrever estas linhas.

Eu me exercito numa academia de ginástica em que boa parte dos alunos e professores é negra. Um evidente e saudável sinal de como as políticas de cotas universitárias e inclusão foram e continuarão a ser benéficas para a nossa sociedade. Felizmente, sou de fácil trato e sempre me enturmo com todas as pessoas. Uma delas, a quem chamarei de Gérson, um rapaz negro e musculoso, sempre vinha conversar comigo sobre política, música, religião... Como ele disse que era filho de Ogum com Iansã, eu falei para ele que a cantora Clara Nunes, que ele não chegou a conhecer, também era. Contei, então, alguns episódios da vida de Clara e fomos desenvolvendo uma relação cordial.

Já faz um tempo que não vejo Gérson na academia. Até que, ao entrar num supermercado próximo, notei alguém, na fila de um dos caixas, vindo me cumprimentar. Um rapaz alto, negro e corpulento. Ele me estendeu a mão de forma simpática e efusiva. Confesso que tenho tido dificuldade em conhecer algumas pessoas por causa das máscaras. Aquele brilho no olhar, no entanto, não me enganou. Era Gérson! Perguntei, então, por que ele estava afastado da malhação. Ele respondeu que está trabalhando no Rio de Janeiro e os horários, por isso, andam confusos, mas voltará assim que possível. Disse a ele que também já trabalhei na Cidade Maravilhosa e que, em pouco tempo, ele iria se organizar e voltar a malhar. Como ele estava saindo e eu, chegando, nos despedimos. Foi quando ele disse, ainda com os olhos brilhando, a frase que me engrandeceu: – Valeu, irmão! Fica na paz!

Não foi um ‘irmão’ piegas ou meloso, como costumo atestar no meio espírita. Aquele ‘irmão’ dito cheio de carinho por um homem negro teve um peso especial para mim. Era um ‘irmão’ de quem me enxerga como irmão em humanidade e de raça, mesmo eu sendo branco. Um ‘irmão’ de quem notou que, comigo, não existe preconceito. Um ‘irmão’ de quem percebeu que eu luto por inclusão, respeito à diversidade de raça, crença, orientação sexual... Um ‘irmão’ que me deu aquela verdadeira sensação de irmandade, cumplicidade, empatia... Um ‘irmão’ que me puxou para dentro do clã dele e me impactou.

Pela primeira vez, ao ser chamado de irmão, me senti integrante de uma irmandade. E quando falo irmandade, não me refiro a irmandades religiosas, políticas, esportivas, culturais ou similares, mas sim o que essa palavra possui de mais profundo e humano que de fato nos faz irmãos e membros de uma mesma raça chamada humana: amor! Sim, foi um ‘irmão’ impregnado com alta carga de amor!

Por meio de vários artigos, poemas e palestras, venho demonstrando tristeza e revolta pela sociedade racista e escravagista em que ainda vivemos. O Brasil, bem o sabemos, foi sendo moldado à base da exploração dos nossos irmãos vindos da África. Aí sim, faço questão de utilizar o termo ‘irmão’. Exploração esta que, ainda hoje, presenciamos por meio do desprezo e da violência com que as ditas elites e outros segmentos sociais tratam os negros e também os pobres. Por ser uma voz indignada contra esse preconceito secular, já fui até chamado para representar o movimento espírita local em eventos promovidos pelo poder público municipal acerca da questão racial.

Gérson não faz ideia de que sou um jornalista empenhado em denunciar a hipocrisia dos que dizem não haver racismo no Brasil. Tampouco que, no movimento espírita, sou uma das vozes que traz o assunto à baila. Mas o amor com que ele me chamou de irmão soou como uma resposta que a providência divina me enviou no intuito de mostrar que é preciso prosseguir na luta contra o racismo, seja dentro ou fora do movimento espírita.

Obrigado, Gérson! O teu ‘irmão’ fez a diferença! 


  

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita