O ‘irmão’
que fez a diferença
Começo este artigo
dizendo algo que talvez
chateie a muitos
espíritas: detesto que
me chamem de irmão! Acho
piegas, meloso,
ultrapassado. Por mais
que sejamos irmãos em
humanidade, não julgo
necessário utilizarmos a
palavra ‘irmão’ para nos
referirmos uns aos
outros. Já passei por
situações que me
deixaram sem graça por
causa desse hábito.
Há alguns anos, cheguei
a um centro espírita que
me convidara para
palestrar. Lá chegando,
a moça designada para me
receber, disse, toda
solícita e com uma
atitude um tanto servil,
diga-se de passagem:
– Boa noite, irmão! Seja
bem-vindo à nossa casa!
Se o irmão quiser algo,
é só pedir! Está bem,
irmão?
Como sou alto (1,86m) e
a moça era baixa, a
situação soou ainda mais
constrangedora. Parecia
que ela me reverenciava.
Ela insistiu no tom
servil:
– Quer alguma coisa,
irmão?
Eu então, respondi, em
tom cordial e bem
informal:
– Quero, sim. Não me
chame de irmão. Meu nome
é Marcelo. Pode me
chamar somente de
Marcelo.
Ela, entre surpresa e ao
mesmo tempo agradecida
por tê-la livrado da
armadura da reverência,
aquiesceu:
– Ok, sem problema. Só
Marcelo, então.
Em outra ocasião, também
num centro espírita que
me convidara para
proferir uma palestra,
uma senhora, durante o
lanche após a preleção,
me chamou o tempo
inteiro de irmão
Marcelo. E como ela
tinha uma voz fininha
que exagerava na segunda
sílaba, a coisa ficou
pior. Era um tal de
“Irmão Marceeelo, quer
bolo?”, “Irmão
Marceeelo, quer café ou
chá?”, “Irmão,
Marceeelo, tem pão de
queijo também!”. Como
havia muita gente em
volta, nada disse;
fiquei na minha. No
entanto, dei graças a
Deus quando fui embora.
Chamar o companheiro de
ideal de irmão causa
também um inconveniente
linguístico que soa mal
aos meus ouvidos:
dirigir-se ao
interlocutor na terceira
pessoa do singular.
Geralmente, utilizamos o
tom coloquial. Exemplo:
– José, você assistiu à
palestra?
Já quando optamos pelo
termo ‘irmão’ ou
similar, me dirijo a
José como se ele fosse
outra pessoa: – O irmão
assistiu à palestra? –
Seria o caso de José
responder: – O irmão eu
não sei se assistiu, mas
eu assisti. Preferir o
discurso direto é bem
mais informal e prático.
Não precisamos empolar o
discurso, apelando para
o termo ‘irmão’ para
soarmos fraternais.
Algo que já notei é que
alguns espíritas abusam
do termo, utilizando-o,
às vezes, para camuflar
preconceitos ou
mesquinharias. Foi o
caso de um indivíduo
daqui de Petrópolis
(RJ), onde vivo, que se
referiu a uma amiga
minha de movimento
espírita como “aquela
negrinha”. Diante da
censura minha e de mais
dois amigos à forma
preconceituosa por ele
utilizada, o sujeito
saiu com a seguinte
pérola: – Ah, meus
irmãos! Mas ela é de
fato uma negrinha, não
é, meus irmãos!
Confesso que me segurei
para não desancar o
“irmão” que só se acha
irmão de quem é
cara-pálida feito ele.
Mas vamos fazer jus ao
título desta crônica.
Houve uma vez em que me
enchi de contentamento
por ter sido chamado de
irmão. E foi poucos dias
antes de eu escrever
estas linhas.
Eu me exercito numa
academia de ginástica em
que boa parte dos alunos
e professores é negra.
Um evidente e saudável
sinal de como as
políticas de cotas
universitárias e
inclusão foram e
continuarão a ser
benéficas para a nossa
sociedade. Felizmente,
sou de fácil trato e
sempre me enturmo com
todas as pessoas. Uma
delas, a quem chamarei
de Gérson, um rapaz
negro e musculoso,
sempre vinha conversar
comigo sobre política,
música, religião... Como
ele disse que era filho
de Ogum com Iansã, eu
falei para ele que a
cantora Clara Nunes, que
ele não chegou a
conhecer, também era.
Contei, então, alguns
episódios da vida de
Clara e fomos
desenvolvendo uma
relação cordial.
Já faz um tempo que não
vejo Gérson na academia.
Até que, ao entrar num
supermercado próximo,
notei alguém, na fila de
um dos caixas, vindo me
cumprimentar. Um rapaz
alto, negro e
corpulento. Ele me
estendeu a mão de forma
simpática e efusiva.
Confesso que tenho tido
dificuldade em conhecer
algumas pessoas por
causa das máscaras.
Aquele brilho no olhar,
no entanto, não me
enganou. Era Gérson!
Perguntei, então, por
que ele estava afastado
da malhação. Ele
respondeu que está
trabalhando no Rio de
Janeiro e os horários,
por isso, andam
confusos, mas voltará
assim que possível.
Disse a ele que também
já trabalhei na Cidade
Maravilhosa e que, em
pouco tempo, ele iria se
organizar e voltar a
malhar. Como ele estava
saindo e eu, chegando,
nos despedimos. Foi
quando ele disse, ainda
com os olhos brilhando,
a frase que me
engrandeceu: – Valeu,
irmão! Fica na paz!
Não foi um ‘irmão’
piegas ou meloso, como
costumo atestar no meio
espírita. Aquele ‘irmão’
dito cheio de carinho
por um homem negro teve
um peso especial para
mim. Era um ‘irmão’ de
quem me enxerga como
irmão em humanidade e de
raça, mesmo eu sendo
branco. Um ‘irmão’ de
quem notou que, comigo,
não existe preconceito.
Um ‘irmão’ de quem
percebeu que eu luto por
inclusão, respeito à
diversidade de raça,
crença, orientação
sexual... Um ‘irmão’ que
me deu aquela verdadeira
sensação de irmandade,
cumplicidade, empatia...
Um ‘irmão’ que me puxou
para dentro do clã dele
e me impactou.
Pela primeira vez, ao
ser chamado de irmão, me
senti integrante de uma
irmandade. E quando falo
irmandade, não me refiro
a irmandades religiosas,
políticas, esportivas,
culturais ou similares,
mas sim o que essa
palavra possui de mais
profundo e humano que de
fato nos faz irmãos e
membros de uma mesma
raça chamada humana:
amor! Sim, foi um
‘irmão’ impregnado com
alta carga de amor!
Por meio de vários
artigos, poemas e
palestras, venho
demonstrando tristeza e
revolta pela sociedade
racista e escravagista
em que ainda vivemos. O
Brasil, bem o sabemos,
foi sendo moldado à base
da exploração dos nossos
irmãos vindos da África.
Aí sim, faço questão de
utilizar o termo
‘irmão’. Exploração esta
que, ainda hoje,
presenciamos por meio do
desprezo e da violência
com que as ditas elites
e outros segmentos
sociais tratam os negros
e também os pobres. Por
ser uma voz indignada
contra esse preconceito
secular, já fui até
chamado para representar
o movimento espírita
local em eventos
promovidos pelo poder
público municipal acerca
da questão racial.
Gérson não faz ideia de
que sou um jornalista
empenhado em denunciar a
hipocrisia dos que dizem
não haver racismo no
Brasil. Tampouco que, no
movimento espírita, sou
uma das vozes que traz o
assunto à baila. Mas o
amor com que ele me
chamou de irmão soou
como uma resposta que a
providência divina me
enviou no intuito de
mostrar que é preciso
prosseguir na luta
contra o racismo, seja
dentro ou fora do
movimento espírita.
Obrigado, Gérson! O teu
‘irmão’ fez a diferença!