A comida
é revolucionária e
regeneradora
Creio que muitas
pessoas, ao se depararem
com a palavra
‘revolução’, repelem-na
por imediatamente
pensarem que fazer uma
revolução seria sinônimo
de pegar em armas,
depredar o patrimônio
público, quebrar
vidraças de agências
bancárias, saquear
supermercados, tomar o
poder à força etc.
O termo revolução é
originário do latim “revolutio”,
significa dar voltas, e
era utilizado até meados
do Século XVII, apenas
no campo da astronomia
para designar as voltas
que a Terra dava em
torno do sol. É o que
hoje denominamos
translação. Com a
sequência de
transformações sociais,
políticas e econômicas
que passaram a ocorrer
em várias nações
europeias a partir da
segunda metade do
referido século, o termo
se tornou mais
abrangente. Passou a
significar ruptura e
continuidade de
transformações. Essa
definição ganhou mais
força principalmente a
partir da Revolução
Francesa, em 1789, ou
seja, já no Século
XVIII.
A revolução como nós a
entendemos não precisa,
no entanto, acontecer de
forma truculenta ou
sanguinária. Jesus, por
exemplo, fez uma
revolução baseada no
amor ao próximo e na
justiça social. Uma
revolução cujo sentido
ainda não assimilamos
totalmente. Sim, pode
haver revoluções – e
haverá – tendo o amor
incondicional ao próximo
como principal
estandarte. E isso
ocorrerá sem a
necessidade de apelar
para força física,
armamentos, intimidações
e afins.
Jesus revolucionou a
história da humanidade
de diversas maneiras.
Por meio da comida,
inclusive. E
partilhando-a. Falo
sobre o ocorrido na
derradeira ceia com os
apóstolos e também no
episódio da partilha do
pão com dois discípulos
que desciam a estrada de
Emaús, dias após a
crucificação. Para mais
detalhes, recomendo o
artigo ‘Sem partilha,
não há futuro’, de minha
autoria.
A partilha que quero
abordar neste artigo é a
ocorrida no emblemático
acontecimento da
multiplicação dos pães e
peixes. Confesso que
nunca havia estudado
essa parte do Novo
Testamento com os olhos
da razão até me deparar
com uma análise contida
na enciclopédia virtual
Wikipedia. Ela é baseada
em obras de vários
pesquisadores britânicos
que seguem duas linhas
de interpretação: a
literal, que é a
considerada pelas
religiões tradicionais,
ou seja, Jesus realizou
o milagre de multiplicar
o alimento; e a
simbólica (ou histórica)
que é a que me chamou
atenção por desvendar
facetas bem
interessantes da
referida multiplicação,
que está contida,
inclusive, nos quatro
evangelhos canônicos:
Mateus, Lucas, Marcos e
João.
Segundo essa linha
simbólica ou histórica,
por não haver, à época,
lanchonetes de beira de
estrada, seria pouco
provável a multidão que
seguia Jesus estar
desprovida de alimentos.
Afinal, como só se
viajava a pé ou no lombo
de animais e pelo fato
de as viagens durarem
dias, era comum as
pessoas levarem comida.
Os relatos evangélicos
dizem que o povo se
comportava como um bando
de ovelhas sem pastor,
isto é, desorganizado,
batendo cabeça. Por
isso, o Nazareno se
compadeceu deles. E como
provavelmente a provisão
de alimentos de alguns
já estivesse no fim, a
desorientação se tornava
ainda mais evidente pelo
fato de o povo não
perceber que, para que
todos se aquietassem,
era preciso que a comida
que todos possuíam fosse
irmãmente dividida. Em
suma: faltava
solidariedade. Traçando
um paralelo com tudo que
já escrevi a respeito de
fome e alimentação até
aqui, depreende-se que,
em matéria de estômago
vazio no mundo, ainda
nos portamos como uma
horda de desorientados
que quer seguir os
preceitos cristãos sem
perceber que, para
tanto, bastaria sabermos
exercer o nobre ato de
partilhar.
Foi o que Jesus ordenou
aos discípulos, que
perguntaram se haveria
necessidade de
despacharem as pessoas
para que fossem a algum
vilarejo próximo comprar
comida: “Dá-lhes de
comer”, foi a resposta
do Mestre. Traduzindo:
juntem-se às pessoas,
dividam-nas em grupos,
façam um levantamento da
comida que todos trazem
e repartam-na. Dessa
forma, haverá alimento
para todos. Moral da
história: quando
deixamos de pensar
somente em nós mesmos e
passamos a nos pautar
pelo coletivo e exercer
a partilha, ninguém fica
desguarnecido.
Por fim, os textos
sagrados relatam que
todos se fartaram e
ainda sobraram 12 cestos
com pães e peixes. Doze
é o número de tribos de
Israel (Ruben,
Simeão, Judá, Zebulão,
Isacar, Asher, Neftali,
Efraim, Manassés, Gad, Benjamim e
Levi). Isso quer dizer
que sobrou um cesto para
cada uma das tribos.
Simbolicamente,
portanto, nenhum filho
de Israel ficou sem pão
e jamais ficará quando
os homens forem
solidários. Basta
deixarmos de ser
individualistas e
praticarmos o milagre
moral de sermos
empáticos para com a
carência alheia. Eis aí,
segundo a interpretação
simbólica (ou
histórica), o que Jesus
quis nos ensinar no
episódio da
multiplicação dos pães e
peixes. Se fosse no
Brasil dos dias de hoje,
estaria escrito que
sobraram 27 cestos,
correspondentes às
nossas unidades
federativas (26 estados
mais o Distrito
Federal).
Muitos que me leem
talvez questionem essa
interpretação por nunca
a terem visto em livros
espíritas. Argumento
que, em “A Gênese”,
quinta obra publicada
por Allan Kardec, é
dito, no item 10 do
capítulo IV: “Somente as
religiões estacionárias
podem temer as
descobertas da ciência,
as quais, funestas, só o
são as que se deixam
distanciar das ideias
progressistas,
imobilizando-se no
absolutismo de suas
crenças”. Kardec deixa
claro que o Espiritismo,
por ser uma doutrina de
progresso, sempre
avaliza o que a ciência
vai descobrindo e
revelando. E como o
Espiritismo é
primeiramente ciência
antes de ser filosofia e
religião, são o
pensamento e a pesquisa
científica que abrem as
portas do conhecimento à
luz da imortalidade da
alma. Mas onde está a
ciência nessa
interpretação de
historiadores do Reino
Unido? Geralmente,
ficamos limitados a
pensar que ciência se
restringe a: astronomia,
física, química e
biologia. Devemos ter em
mente, porém, que
história, sociologia,
antropologia e
arqueologia, por
exemplo, também são
ciências. E a própria
filosofia, segundo
pressuposto da doutrina,
também o é. E quando
filosofamos em torno dos
ditos e feitos de Jesus,
muitas verdades são
reveladas.
Nos artigos anteriores,
falamos sobre
insegurança alimentar,
fome e capitalismo,
desperdício de
alimentos, egoísmo e
ganância quando o
assunto é comida,
distribuição de cestas
básicas, trabalho
escravo para a produção
de alimentos, falta de
empatia ante a fome
alheia, entre outros
tópicos. Imaginemos a
revolução que será
quando não houver mais
gente faminta ou vítima
de alimentação irregular
e pouco saudável.
Imaginemos como será bom
vermos todas as crianças
bem nutridas; aptas, por
conseguinte, a ter um
melhor rendimento
escolar. Imaginemos
todas as pessoas
adquirindo os alimentos
que bem entenderem, sem
necessidade de
dependerem da caridade
alheia. Imaginemos a
certeza de que a
produção diária de
alimentos será
devidamente escoada e
chegará à mesa de todos,
sem exceção. Imaginemos
ainda toda a comida
sendo aproveitada, nunca
mais desperdiçada. Por
fim, imaginemos as
pessoas tendo o prazer
de cozinharem umas para
as outras, assegurando,
assim, a certeza de
alimentos frescos e
saudáveis nas nossas
mesas todos os dias!
Utopia de um faminto por
justiça social? Talvez
não! Como espíritas,
sabemos que o próximo
estágio evolutivo que
aguarda a humanidade
está pautado na
regeneração, ou seja,
reestruturação, reforma,
reorganização,
renovação. Muito –
talvez tudo – do que
conhecemos da atual
organização social irá
deixar de existir para
que sobrevenham formas
mais justas, equânimes e
solidárias de
convivência. A forma de
lidarmos com produção,
distribuição,
armazenagem e consumo de
alimentos faz parte do
pacote regenerativo,
portanto.
A Mídia Ninja, rede de
mídia alternativa
atuante em todas as
redes sociais, promoveu,
em 17 de abril, no
Instagram, um bate-papo
entre a chef Paola
Carosella e o filósofo,
psicanalista e político
Guilherme Boulos. Em
pauta, entre outros
assuntos, duas
iniciativas que podem
fazer muito para
amenizar a carência de
inúmeros brasileiros por
comida de qualidade e
revolucionar a forma com
a qual lidamos com as
refeições de cada dia:
cozinhas solidárias e
hortas urbanas.
Vou começar pelas hortas
urbanas, aquelas
cultivadas em espaços
coletivos ou domésticos
nas cidades. O objetivo
é facilitar a
distribuição de
alimentos, a fim de que
eles cheguem às mãos do
cliente de forma mais
rápida e também mais
barata. O fato de a
produção ser próxima
garante comida fresca e
barateia os custos com
transporte. Além disso,
os produtos são
orgânicos, ou seja,
livre de agrotóxicos.
Tudo somado, temos,
ainda, um saudável ganho
ambiental. Afinal, áreas
antes degradadas se
transformam em terra
fértil, tornam o
ambiente mais bonito e
agradável, ajudam a
limpar o ar e influem na
saúde física e mental
dos habitantes.
As hortas urbanas podem
ocupar pequenos ou
grandes espaços
horizontais (terrenos) e
também verticais
(prédios) devido ao
emprego de materiais
como garrafas plásticas,
vasos de planta, canos e
latas. Como podem ser
criadas em terrenos
abandonados, são muito
bem-vindas em
comunidades carentes,
que terão acesso a
legumes e verduras
saudáveis por um custo
baixo. Isso tem alto
impacto na vida dessa
população, que pode,
ainda, se beneficiar com
a criação de empregos,
visto que tais hortas
necessitam de manutenção
constante.
Como o país já conta com
várias hortas
comunitárias, torcemos
para que elas se
espalhem e se tornem
cada vez mais presentes,
ocupando não só terrenos
degradados, mas também
praças e parques e até
construções verticais
feitas especialmente
para abrigá-las. Quantas
instituições religiosas
haverá pelo país com
espaço para a criação de
hortas urbanas? É um
caso a pensar.
No rastro dessas hortas,
despontam as cozinhas
comunitárias (ou
solidárias). Algumas já
se encontram em
funcionamento. A
proposta é bem simples e
igualmente
revolucionária. Em
conexão com os
agricultores locais
(incluindo a turma das
hortas urbanas),
cozinheiras das
comunidades, devidamente
capacitadas, cozinham
para pessoas em situação
de rua, de baixa renda e
até para quem passa
horas fora de casa (seja
por causa do trabalho ou
por ficarem presas em
engarrafamentos) e não
têm tempo de cozinhar
para a família,
apelando, muitas vezes,
para comidas
industrializadas e pouco
saudáveis. E como
cozinhas são espaços de
convivência e aconchego,
surgem outras tantas
iniciativas de
solidariedade, como
cursos de formação para
novas cozinheiras, aulas
de costura e similares.
Tudo para que gente em
situação de
vulnerabilidade social
seja amparada e possa
também ter como gerar
renda.
Durante o bate-papo
promovido pela Mídia
Ninja, Paola e Boulos
observaram que, com a
pandemia de Covid, a
fome no Brasil se
escancarou e mostrou,
sem pudor, sua face.
Escancarou, também, a
forma precária com que
lidamos com a questão.
Basta ver a quantidade
de alimentos que se
perdeu pelo fato de
restaurantes e
supermercados terem
fechado ou reduzido
drasticamente o volume
de compras. Isso
aumentou a quantidade de
gente desempregada.
Igualmente dramático foi
o fechamento das
escolas, o que também
deixou sem trabalho fixo
várias cozinheiras e
merendeiras.
Diante desse quadro,
conforme ressaltou a
chef Paola Carosella,
temos fechadas cozinhas
de escolas e de
restaurantes. Por minha
conta, acrescento: as
cozinhas de templos
religiosos, que também
devem estar de portas
cerradas. Pensemos como
teria sido bom – e como
ainda pode ser bom –
tais espaços funcionando
para produzir quentinhas
para moradores de rua,
pessoas desempregadas e
afins? E com produtos
adquiridos dos pequenos
agricultores da cidade,
das hortas urbanas e
também vindas de
políticas mais justas?
Tudo isso e muito mais
pode ser possível se a
sociedade souber fazer
política, ou seja, se
reunir para organizar
tais iniciativas com
projetos de longo prazo,
reivindicar a criação ou
reativação de programas
governamentais que foram
esvaziados ou extintos
de uns anos para cá,
entre outras frentes de
trabalho que irão
surgindo conforme formos
colocando a mão na
massa, literalmente.
A fome, como bem
observou Paola
Carosella, é
paralisante. Quem passa
fome perde a saúde e a
esperança. Pior: corre o
risco de cair em
depressão e desespero.
Quando toda a sociedade
se mobilizar a fim de
que ninguém mais fique
de barriga vazia,
daremos grandes passos
rumo a um mundo pleno de
fartura, empatia e
solidariedade. Eis a
multiplicação de pães,
peixes e outros tantos
itens alimentícios que
precisa acontecer! Por
isso, a comida é tão
revolucionária. Por meio
dela, podemos regenerar
boa parte dos tecidos
sociais que se encontram
doentes.
Em “O Evangelho segundo
o Espiritismo”, Allan
Kardec, no item 16 do
capítulo III (“Há muitas
moradas na casa de meu
Pai”), ressalta que, nos
mundos de regeneração,
na fronte de todos os
homens, está escrita a
palavra amor e que as
relações sociais são
presididas por uma
perfeita equidade. Já na
“Revista espírita”,
edição de 1866,
instruções dos Espíritos
sobre a regeneração da
humanidade frisam que
este mundo de
preconceitos, egoísmo,
orgulho e fanatismo terá
um fim. Em seguida a
ele, novas gerações
consolidarão e
completarão o
reerguimento moral da
humanidade.
Impossível, reitero,
construirmos um mundo
regenerado tendo como
base estruturas e
valores inerentes a um
mundo de provas e
expiações. Tudo terá de
ser revisto e refeito.
Isso tem a ver com o
prato de todos nós. E
ele terá de estar sempre
cheio, saudável,
acessível e bastante
solidário. Uma revolução
e tanto!
Bibliografia:
1- BRASIL
ESCOLA – O que é
revolução? Disponível
em link-1
2- Como
criar hortas urbanas?
Disponível em link-2
3- KARDEC,
Allan – A Gênese,
34ª edição, 1991,
Federação Espírita
Brasileira (FEB),
Brasília, DF.
4- _____________
– O Evangelho segundo
o Espiritismo, 2ª
edição, 2018, Federação
Espírita Brasileira
(FEB), Brasília, DF.
5- _____________
– Revista espírita 1866
– Ano Nono, Federação
Espírita Brasileira
(FEB), Brasília, DF.
6- Movimento
dos Trabalhadores Sem
Terra (MTST) – As
cozinhas solidárias do
MTST: refeições
gratuitas e afeto nas
periferias do Brasil.
Disponível em link-3
7- Wikipedia –
Multiplicação dos pães e
peixes: Disponível em link-4