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por Marcelo Teixeira

 

A comida é revolucionária e regeneradora


Creio que muitas pessoas, ao se depararem com a palavra ‘revolução’, repelem-na por imediatamente pensarem que fazer uma revolução seria sinônimo de pegar em armas, depredar o patrimônio público, quebrar vidraças de agências bancárias, saquear supermercados, tomar o poder à força etc.

O termo revolução é originário do latim “revolutio”, significa dar voltas, e era utilizado até meados do Século XVII, apenas no campo da astronomia para designar as voltas que a Terra dava em torno do sol. É o que hoje denominamos translação. Com a sequência de transformações sociais, políticas e econômicas que passaram a ocorrer em várias nações europeias a partir da segunda metade do referido século, o termo se tornou mais abrangente. Passou a significar ruptura e continuidade de transformações. Essa definição ganhou mais força principalmente a partir da Revolução Francesa, em 1789, ou seja, já no Século XVIII.

A revolução como nós a entendemos não precisa, no entanto, acontecer de forma truculenta ou sanguinária. Jesus, por exemplo, fez uma revolução baseada no amor ao próximo e na justiça social. Uma revolução cujo sentido ainda não assimilamos totalmente. Sim, pode haver revoluções – e haverá – tendo o amor incondicional ao próximo como principal estandarte. E isso ocorrerá sem a necessidade de apelar para força física, armamentos, intimidações e afins.

Jesus revolucionou a história da humanidade de diversas maneiras. Por meio da comida, inclusive. E partilhando-a. Falo sobre o ocorrido na derradeira ceia com os apóstolos e também no episódio da partilha do pão com dois discípulos que desciam a estrada de Emaús, dias após a crucificação. Para mais detalhes, recomendo o artigo ‘Sem partilha, não há futuro’, de minha autoria.

A partilha que quero abordar neste artigo é a ocorrida no emblemático acontecimento da multiplicação dos pães e peixes. Confesso que nunca havia estudado essa parte do Novo Testamento com os olhos da razão até me deparar com uma análise contida na enciclopédia virtual Wikipedia. Ela é baseada em obras de vários pesquisadores britânicos que seguem duas linhas de interpretação: a literal, que é a considerada pelas religiões tradicionais, ou seja, Jesus realizou o milagre de multiplicar o alimento; e a simbólica (ou histórica) que é a que me chamou atenção por desvendar facetas bem interessantes da referida multiplicação, que está contida, inclusive, nos quatro evangelhos canônicos: Mateus, Lucas, Marcos e João.

Segundo essa linha simbólica ou histórica, por não haver, à época, lanchonetes de beira de estrada, seria pouco provável a multidão que seguia Jesus estar desprovida de alimentos. Afinal, como só se viajava a pé ou no lombo de animais e pelo fato de as viagens durarem dias, era comum as pessoas levarem comida.

Os relatos evangélicos dizem que o povo se comportava como um bando de ovelhas sem pastor, isto é, desorganizado, batendo cabeça. Por isso, o Nazareno se compadeceu deles. E como provavelmente a provisão de alimentos de alguns já estivesse no fim, a desorientação se tornava ainda mais evidente pelo fato de o povo não perceber que, para que todos se aquietassem, era preciso que a comida que todos possuíam fosse irmãmente dividida. Em suma: faltava solidariedade. Traçando um paralelo com tudo que já escrevi a respeito de fome e alimentação até aqui, depreende-se que, em matéria de estômago vazio no mundo, ainda nos portamos como uma horda de desorientados que quer seguir os preceitos cristãos sem perceber que, para tanto, bastaria sabermos exercer o nobre ato de partilhar.

Foi o que Jesus ordenou aos discípulos, que perguntaram se haveria necessidade de despacharem as pessoas para que fossem a algum vilarejo próximo comprar comida: “Dá-lhes de comer”, foi a resposta do Mestre. Traduzindo: juntem-se às pessoas, dividam-nas em grupos, façam um levantamento da comida que todos trazem e repartam-na. Dessa forma, haverá alimento para todos. Moral da história: quando deixamos de pensar somente em nós mesmos e passamos a nos pautar pelo coletivo e exercer a partilha, ninguém fica desguarnecido.

Por fim, os textos sagrados relatam que todos se fartaram e ainda sobraram 12 cestos com pães e peixes. Doze é o número de tribos de Israel (Ruben, Simeão, Judá, Zebulão, Isacar, Asher, Neftali, Efraim, Manassés, Gad, Benjamim e Levi). Isso quer dizer que sobrou um cesto para cada uma das tribos. Simbolicamente, portanto, nenhum filho de Israel ficou sem pão e jamais ficará quando os homens forem solidários. Basta deixarmos de ser individualistas e praticarmos o milagre moral de sermos empáticos para com a carência alheia. Eis aí, segundo a interpretação simbólica (ou histórica), o que Jesus quis nos ensinar no episódio da multiplicação dos pães e peixes. Se fosse no Brasil dos dias de hoje, estaria escrito que sobraram 27 cestos, correspondentes às nossas unidades federativas (26 estados mais o Distrito Federal).

Muitos que me leem talvez questionem essa interpretação por nunca a terem visto em livros espíritas. Argumento que, em “A Gênese”, quinta obra publicada por Allan Kardec, é dito, no item 10 do capítulo IV: “Somente as religiões estacionárias podem temer as descobertas da ciência, as quais, funestas, só o são as que se deixam distanciar das ideias progressistas, imobilizando-se no absolutismo de suas crenças”. Kardec deixa claro que o Espiritismo, por ser uma doutrina de progresso, sempre avaliza o que a ciência vai descobrindo e revelando. E como o Espiritismo é primeiramente ciência antes de ser filosofia e religião, são o pensamento e a pesquisa científica que abrem as portas do conhecimento à luz da imortalidade da alma. Mas onde está a ciência nessa interpretação de historiadores do Reino Unido? Geralmente, ficamos limitados a pensar que ciência se restringe a: astronomia, física, química e biologia. Devemos ter em mente, porém, que história, sociologia, antropologia e arqueologia, por exemplo, também são ciências. E a própria filosofia, segundo pressuposto da doutrina, também o é. E quando filosofamos em torno dos ditos e feitos de Jesus, muitas verdades são reveladas.

Nos artigos anteriores, falamos sobre insegurança alimentar, fome e capitalismo, desperdício de alimentos, egoísmo e ganância quando o assunto é comida, distribuição de cestas básicas, trabalho escravo para a produção de alimentos, falta de empatia ante a fome alheia, entre outros tópicos. Imaginemos a revolução que será quando não houver mais gente faminta ou vítima de alimentação irregular e pouco saudável. Imaginemos como será bom vermos todas as crianças bem nutridas; aptas, por conseguinte, a ter um melhor rendimento escolar. Imaginemos todas as pessoas adquirindo os alimentos que bem entenderem, sem necessidade de dependerem da caridade alheia. Imaginemos a certeza de que a produção diária de alimentos será devidamente escoada e chegará à mesa de todos, sem exceção. Imaginemos ainda toda a comida sendo aproveitada, nunca mais desperdiçada. Por fim, imaginemos as pessoas tendo o prazer de cozinharem umas para as outras, assegurando, assim, a certeza de alimentos frescos e saudáveis nas nossas mesas todos os dias!

Utopia de um faminto por justiça social? Talvez não! Como espíritas, sabemos que o próximo estágio evolutivo que aguarda a humanidade está pautado na regeneração, ou seja, reestruturação, reforma, reorganização, renovação. Muito – talvez tudo – do que conhecemos da atual organização social irá deixar de existir para que sobrevenham formas mais justas, equânimes e solidárias de convivência. A forma de lidarmos com produção, distribuição, armazenagem e consumo de alimentos faz parte do pacote regenerativo, portanto.

A Mídia Ninja, rede de mídia alternativa atuante em todas as redes sociais, promoveu, em 17 de abril, no Instagram, um bate-papo entre a chef Paola Carosella e o filósofo, psicanalista e político Guilherme Boulos. Em pauta, entre outros assuntos, duas iniciativas que podem fazer muito para amenizar a carência de inúmeros brasileiros por comida de qualidade e revolucionar a forma com a qual lidamos com as refeições de cada dia: cozinhas solidárias e hortas urbanas.

Vou começar pelas hortas urbanas, aquelas cultivadas em espaços coletivos ou domésticos nas cidades. O objetivo é facilitar a distribuição de alimentos, a fim de que eles cheguem às mãos do cliente de forma mais rápida e também mais barata. O fato de a produção ser próxima garante comida fresca e barateia os custos com transporte. Além disso, os produtos são orgânicos, ou seja, livre de agrotóxicos. Tudo somado, temos, ainda, um saudável ganho ambiental. Afinal, áreas antes degradadas se transformam em terra fértil, tornam o ambiente mais bonito e agradável, ajudam a limpar o ar e influem na saúde física e mental dos habitantes.

As hortas urbanas podem ocupar pequenos ou grandes espaços horizontais (terrenos) e também verticais (prédios) devido ao emprego de materiais como garrafas plásticas, vasos de planta, canos e latas. Como podem ser criadas em terrenos abandonados, são muito bem-vindas em comunidades carentes, que terão acesso a legumes e verduras saudáveis por um custo baixo. Isso tem alto impacto na vida dessa população, que pode, ainda, se beneficiar com a criação de empregos, visto que tais hortas necessitam de manutenção constante.

Como o país já conta com várias hortas comunitárias, torcemos para que elas se espalhem e se tornem cada vez mais presentes, ocupando não só terrenos degradados, mas também praças e parques e até construções verticais feitas especialmente para abrigá-las. Quantas instituições religiosas haverá pelo país com espaço para a criação de hortas urbanas? É um caso a pensar.  

No rastro dessas hortas, despontam as cozinhas comunitárias (ou solidárias). Algumas já se encontram em funcionamento. A proposta é bem simples e igualmente revolucionária. Em conexão com os agricultores locais (incluindo a turma das hortas urbanas), cozinheiras das comunidades, devidamente capacitadas, cozinham para pessoas em situação de rua, de baixa renda e até para quem passa horas fora de casa (seja por causa do trabalho ou por ficarem presas em engarrafamentos) e não têm tempo de cozinhar para a família, apelando, muitas vezes, para comidas industrializadas e pouco saudáveis. E como cozinhas são espaços de convivência e aconchego, surgem outras tantas iniciativas de solidariedade, como cursos de formação para novas cozinheiras, aulas de costura e similares. Tudo para que gente em situação de vulnerabilidade social seja amparada e possa também ter como gerar renda.

Durante o bate-papo promovido pela Mídia Ninja, Paola e Boulos observaram que, com a pandemia de Covid, a fome no Brasil se escancarou e mostrou, sem pudor, sua face. Escancarou, também, a forma precária com que lidamos com a questão. Basta ver a quantidade de alimentos que se perdeu pelo fato de restaurantes e supermercados terem fechado ou reduzido drasticamente o volume de compras. Isso aumentou a quantidade de gente desempregada. Igualmente dramático foi o fechamento das escolas, o que também deixou sem trabalho fixo várias cozinheiras e merendeiras.

Diante desse quadro, conforme ressaltou a chef Paola Carosella, temos fechadas cozinhas de escolas e de restaurantes. Por minha conta, acrescento: as cozinhas de templos religiosos, que também devem estar de portas cerradas. Pensemos como teria sido bom – e como ainda pode ser bom – tais espaços funcionando para produzir quentinhas para moradores de rua, pessoas desempregadas e afins? E com produtos adquiridos dos pequenos agricultores da cidade, das hortas urbanas e também vindas de políticas mais justas? Tudo isso e muito mais pode ser possível se a sociedade souber fazer política, ou seja, se reunir para organizar tais iniciativas com projetos de longo prazo, reivindicar a criação ou reativação de programas governamentais que foram esvaziados ou extintos de uns anos para cá, entre outras frentes de trabalho que irão surgindo conforme formos colocando a mão na massa, literalmente.

A fome, como bem observou Paola Carosella, é paralisante. Quem passa fome perde a saúde e a esperança. Pior: corre o risco de cair em depressão e desespero. Quando toda a sociedade se mobilizar a fim de que ninguém mais fique de barriga vazia, daremos grandes passos rumo a um mundo pleno de fartura, empatia e solidariedade. Eis a multiplicação de pães, peixes e outros tantos itens alimentícios que precisa acontecer! Por isso, a comida é tão revolucionária. Por meio dela, podemos regenerar boa parte dos tecidos sociais que se encontram doentes.

Em “O Evangelho segundo o Espiritismo”, Allan Kardec, no item 16 do capítulo III (“Há muitas moradas na casa de meu Pai”), ressalta que, nos mundos de regeneração, na fronte de todos os homens, está escrita a palavra amor e que as relações sociais são presididas por uma perfeita equidade. Já na “Revista espírita”, edição de 1866, instruções dos Espíritos sobre a regeneração da humanidade frisam que este mundo de preconceitos, egoísmo, orgulho e fanatismo terá um fim. Em seguida a ele, novas gerações consolidarão e completarão o reerguimento moral da humanidade.

Impossível, reitero, construirmos um mundo regenerado tendo como base estruturas e valores inerentes a um mundo de provas e expiações. Tudo terá de ser revisto e refeito. Isso tem a ver com o prato de todos nós. E ele terá de estar sempre cheio, saudável, acessível e bastante solidário. Uma revolução e tanto!

 

Bibliografia:

1- BRASIL ESCOLA – O que é revolução? Disponível em link-1

2- Como criar hortas urbanas? Disponível em link-2

3- KARDEC, Allan – A Gênese, 34ª edição, 1991, Federação Espírita Brasileira (FEB), Brasília, DF.

4- _____________ – O Evangelho segundo o Espiritismo, 2ª edição, 2018, Federação Espírita Brasileira (FEB), Brasília, DF.

5- _____________ – Revista espírita 1866 – Ano Nono, Federação Espírita Brasileira (FEB), Brasília, DF.

6- Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MTST) – As cozinhas solidárias do MTST: refeições gratuitas e afeto nas periferias do Brasil. Disponível em link-3

7- Wikipedia – Multiplicação dos pães e peixes: Disponível em link-4
  

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita