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por Marco Milani

 

Tentativas cismáticas no movimento espírita


Ao apontar os riscos de cismas no Espiritismo, Allan Kardec destacou que o personalismo e as interpretações equivocadas do conteúdo doutrinário seriam algumas de suas causas.1

Ressaltando-se que a clareza e a objetividade do ensino deveriam ser os fatores relevantes para a unidade doutrinária, os diferentes graus de compreensão do Espiritismo, aliados às paixões pessoais de alguns supostos adeptos, podem promover a disseminação de ideias divergentes dos princípios doutrinários e provocar a desunião. Como asseverou Kardec, “a ambição e vaidade daqueles que, a despeito de tudo, querem ligar seu nome a uma inovação qualquer; que criam novidades unicamente para poder dizer que não pensam e não fazem como os outros” 2 são entraves a serem superados.

Desde o surgimento do Espiritismo, não faltaram aficionados por fantasias e propostas místicas a tentarem desvirtuar o ensino lastreado na razão e nos fatos. Alguns, autodeclarando-se missionários, desafiavam a lógica em nome do ocultismo e revelações exclusivas. Todos foram, com fraternidade e firmeza, contra-argumentados por Kardec, o qual demonstrava a falta de coerência doutrinária e de sustentação filosófica e científica dessas propostas mirabolantes e supersticiosas.

Não somente as fantasias foram rechaçadas pela ausência de evidências e de logicidade, mas também iniciativas que atendiam a interesses temporais e paixões político-ideológicas.

Allan Kardec, em mensagem dirigida aos espíritas lioneses em 1862, já alertava sobre a armadilha preparada por adversários do Espiritismo que buscavam levar à casa espírita a discussão política.

"Devo ainda assinalar-vos outra tática dos nossos adversários, a de procurar comprometer os espíritas, induzindo-os a se afastarem do verdadeiro objetivo da doutrina, que é o da moral, para abordarem questões que não são de sua alçada e que, a justo título, poderiam despertar suscetibilidades e desconfianças. Não vos deixeis cair nessa armadilha; afastai cuidadosamente de vossas reuniões tudo quando se refere à política e a questões irritantes; a tal respeito, as discussões apenas suscitarão embaraços, enquanto ninguém terá nada a objetar à moral, quanto esta for boa.” 3

Em um agitado contexto no qual eclodiam propostas reformistas sociais na Europa, partidários de diferentes correntes políticas e visões de mundo digladiavam-se no campo das ideias e, não raramente, em confrontos fratricidas.

Sendo características fundamentais do Espiritismo, a fraternidade e a liberdade de consciência fizeram com que nas reuniões dos mais diversos grupos espíritas espalhados na França e nos demais países sentassem-se, lado a lado, cidadãos que poderiam defender pontos de vista antagônicos sobre questões políticas, porém estavam unidos em torno de um ideal maior baseado no respeito e tolerância. Obviamente, se essas questões políticas fossem levadas para as reuniões espíritas, o resultado seria a reprodução dos mesmos antagonismos vivenciados nos embates vulgares.

A transformação da sociedade, segundo Kardec, não ocorrerá de maneira violenta e totalitária, mas de maneira oposta, pacífica e decorrente da melhoria do cidadão, ou seja, a sociedade será reflexo da melhoria moral do homem, respeitando-se os direitos e as liberdades individuais. O Espiritismo atua diretamente nesse sentido esclarecendo sobre a natureza, da origem e do destino dos Espíritos, e de suas relações com o mundo corporal, fomentando a transformação moral e não imiscuindo-se na liberdade de consciência. 

“Procurai no Espiritismo aquilo que vos pode melhorar: eis o essencial. Quando os homens forem melhores, as reformas sociais realmente úteis serão uma consequência natural; trabalhando pelo progresso moral, lançareis os verdadeiros e mais sólidos fundamentos de todas as melhoras, e deixareis a Deus o cuidado de fazer com que cheguem no devido tempo. No próprio interesse do Espiritismo, que é ainda jovem, mas que amadurece depressa, oponde uma firmeza inquebrantável aos que quiserem vos arrastar por uma via perigosa.4

Hoje, as pretensões por visibilidade vaidosa ou ações para a militância político-ideológica manifestam-se nas modernas tecnologias de comunicação eletrônica. Nas redes sociais, frequentemente se observa a criação de grupos que se arvoram detentores de novas revelações ou grupos que abraçam correntes político-partidárias e ideológicas que perseguem, como objetivo, a formação de pensamento hegemônico nas instituições espíritas sob a máscara do consenso e, também, a estigmatização daqueles que ousam escolher caminhos diferentes para a melhoria das relações sociais. Tais grupos buscam subverter os próprios princípios espíritas de maneira que acomodem suas convicções particulares e decretam que quem tiver opiniões divergentes não pode ser considerado espírita.

A militância política costuma alardear que os espíritas, em geral, são alienados, pois deveriam marchar em formação contra os desafetos selecionados e içar com veemência a mesma bandeira político-ideológica que carregam.  

Em um mundo de expiações e provas, não se pode esperar plena harmonia nas relações sociais, inclusive dentro do centro espírita, mas disseminar a discórdia e a divisão por motivos político-ideológicos é a receita para que prevaleçam as destrutivas paixões partidárias, afetando negativamente as instituições e o movimento espírita.

Como cidadãos, os espíritas possuem a liberdade de consciência e podem abraçar a corrente ideológica que acharem a mais adequada, sem a orientação de cabresto utilizada por alguns segmentos religiosos. O fato de não levarem suas preferências políticas para serem discutidas no centro espírita não justifica, em hipótese alguma, que sejam rotulados de alienados, ao contrário, demonstra maturidade, sensatez e respeito pela organização em que colaboram e por seus companheiros de trabalho.

     

Referências:

1 Kardec, A. Revista Espírita, dez./1868, Constituição transitória do Espiritismo – Dos cismas.

2 Ibid.

3 Kardec. A. Revista Espírita, fev./1862, Resposta dirigida aos espíritas lioneses por ocasião do Ano-Novo.

4 Ibid.

 

(Texto originalmente publicado na revista digital Dirigente Espírita, nov./dez. 2021, Ed. 186, págs. 8-10.)


 
 
 

     
     

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