Tentativas cismáticas no movimento
espírita
Ao apontar os
riscos de cismas no Espiritismo, Allan Kardec destacou
que o personalismo e as interpretações equivocadas do
conteúdo doutrinário seriam algumas de suas causas.1
Ressaltando-se que a clareza e a objetividade do ensino
deveriam ser os fatores relevantes para a unidade
doutrinária, os diferentes graus de compreensão do
Espiritismo, aliados às paixões pessoais de alguns
supostos adeptos, podem promover a disseminação de
ideias divergentes dos princípios doutrinários e
provocar a desunião. Como asseverou Kardec, “a ambição e
vaidade daqueles que, a despeito de tudo, querem ligar
seu nome a uma inovação qualquer; que criam novidades
unicamente para poder dizer que não pensam e não fazem
como os outros” 2 são
entraves a serem superados.
Desde o surgimento do Espiritismo, não faltaram
aficionados por fantasias e propostas místicas a
tentarem desvirtuar o ensino lastreado na razão e nos
fatos. Alguns, autodeclarando-se missionários,
desafiavam a lógica em nome do ocultismo e revelações
exclusivas. Todos foram, com fraternidade e firmeza,
contra-argumentados por Kardec, o qual demonstrava a
falta de coerência doutrinária e de sustentação
filosófica e científica dessas propostas mirabolantes e
supersticiosas.
Não somente as fantasias foram rechaçadas pela ausência
de evidências e de logicidade, mas também iniciativas
que atendiam a interesses temporais e paixões
político-ideológicas.
Allan Kardec, em mensagem dirigida aos espíritas
lioneses em 1862, já alertava sobre a armadilha
preparada por adversários do Espiritismo que buscavam
levar à casa espírita a discussão política.
"Devo ainda assinalar-vos
outra tática dos nossos adversários, a de procurar
comprometer os espíritas, induzindo-os a se afastarem do
verdadeiro objetivo da doutrina, que é o da moral, para
abordarem questões que não são de sua alçada e que, a
justo título, poderiam despertar suscetibilidades e
desconfianças. Não vos deixeis cair nessa armadilha;
afastai cuidadosamente de vossas reuniões tudo quando se
refere à política e a questões irritantes; a tal
respeito, as discussões apenas suscitarão embaraços,
enquanto ninguém terá nada a objetar à moral, quanto
esta for boa.” 3
Em um agitado contexto no qual eclodiam propostas
reformistas sociais na Europa, partidários de diferentes
correntes políticas e visões de mundo digladiavam-se no
campo das ideias e, não raramente, em confrontos
fratricidas.
Sendo características fundamentais do Espiritismo, a
fraternidade e a liberdade de consciência fizeram com
que nas reuniões dos mais diversos grupos espíritas
espalhados na França e nos demais países sentassem-se,
lado a lado, cidadãos que poderiam defender pontos de
vista antagônicos sobre questões políticas, porém
estavam unidos em torno de um ideal maior baseado no
respeito e tolerância. Obviamente, se essas questões
políticas fossem levadas para as reuniões espíritas, o
resultado seria a reprodução dos mesmos antagonismos
vivenciados nos embates vulgares.
A transformação da sociedade, segundo Kardec, não
ocorrerá de maneira violenta e totalitária, mas de
maneira oposta, pacífica e decorrente da melhoria do
cidadão, ou seja, a sociedade será reflexo da melhoria
moral do homem, respeitando-se os direitos e as
liberdades individuais. O Espiritismo atua diretamente
nesse sentido esclarecendo sobre a natureza, da origem e
do destino dos Espíritos, e de suas relações com o mundo
corporal, fomentando a transformação moral e não
imiscuindo-se na liberdade de consciência.
“Procurai no Espiritismo
aquilo que vos pode melhorar: eis o essencial. Quando os
homens forem melhores, as reformas sociais realmente
úteis serão uma consequência natural; trabalhando pelo
progresso moral, lançareis os verdadeiros e mais sólidos
fundamentos de todas as melhoras, e deixareis a Deus o
cuidado de fazer com que cheguem no devido tempo. No
próprio interesse do Espiritismo, que é ainda jovem, mas
que amadurece depressa, oponde uma firmeza
inquebrantável aos que quiserem vos arrastar por uma via
perigosa." 4
Hoje, as pretensões por visibilidade vaidosa ou ações
para a militância político-ideológica manifestam-se nas
modernas tecnologias de comunicação eletrônica. Nas
redes sociais, frequentemente se observa a criação de
grupos que se arvoram detentores de novas revelações ou
grupos que abraçam correntes político-partidárias e
ideológicas que perseguem, como objetivo, a formação de
pensamento hegemônico nas instituições espíritas sob a
máscara do consenso e, também, a estigmatização daqueles
que ousam escolher caminhos diferentes para a melhoria
das relações sociais. Tais grupos buscam subverter os
próprios princípios espíritas de maneira que acomodem
suas convicções particulares e decretam que quem tiver
opiniões divergentes não pode ser considerado espírita.
A militância política costuma alardear que os espíritas,
em geral, são alienados, pois deveriam marchar em
formação contra os desafetos selecionados e içar com
veemência a mesma bandeira político-ideológica que
carregam.
Em um mundo de expiações e provas, não se pode esperar
plena harmonia nas relações sociais, inclusive dentro do
centro espírita, mas disseminar a discórdia e a divisão
por motivos político-ideológicos é a receita para que
prevaleçam as destrutivas paixões partidárias, afetando
negativamente as instituições e o movimento espírita.
Como cidadãos, os espíritas possuem a liberdade de
consciência e podem abraçar a corrente ideológica que
acharem a mais adequada, sem a orientação de cabresto
utilizada por alguns segmentos religiosos. O fato de não
levarem suas preferências políticas para serem
discutidas no centro espírita não justifica, em hipótese
alguma, que sejam rotulados de alienados, ao contrário,
demonstra maturidade, sensatez e respeito pela
organização em que colaboram e por seus companheiros de
trabalho.
Referências:
1 Kardec, A. Revista Espírita,
dez./1868, Constituição transitória do Espiritismo – Dos
cismas.
2 Ibid.
3 Kardec. A. Revista Espírita, fev./1862,
Resposta dirigida aos espíritas lioneses por ocasião do
Ano-Novo.
4 Ibid.
(Texto originalmente publicado na revista
digital Dirigente Espírita, nov./dez. 2021, Ed. 186,
págs. 8-10.)
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