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por Maria de Lurdes Duarte

 

Fanatismo religioso


Para início desta reflexão sobre o tema que me propus abordar, não resisti de colocar aqui esta pequena parábola indiana, que acho deliciosa e muito oportuna, dada a conhecer pelo poeta inglês do séc. XIX, John Godfrey Saxe:

 

Os Cegos e o Elefante

 

Eram seis homens do Hindustão
Inclinados para aprender muito,
Que foram ver o Elefante
(Embora todos fossem cegos)
Que cada um por observação,
Poderia satisfazer sua mente.

O Primeiro aproximou-se do Elefante,
E aconteceu de chocar-se
Contra seu amplo e forte lado
Imediatamente começou a gritar:
“Deus me abençoe, mas o Elefante
É semelhante a um muro”.

O Segundo, pegando na presa,
Gritou, "Oh! O que temos aqui
Tão redondo, liso e pontiagudo?
Para mim isto é muito claro
Esta maravilha de Elefante
É muito semelhante a uma lança!”

O Terceiro aproximou-se do animal
E aconteceu de pegar
A sinuosa tromba com suas mãos.
Assim, falou em voz alta:
“Vejo”, disse ele "o Elefante
É muito parecido com uma cobra!”

O Quarto esticou a mão, ansioso
E apalpou em torno do joelho.
“Com o que este maravilhoso animal
Se parece é muito fácil”, disse ele:
“Está bem claro que o Elefante
É muito semelhante a uma árvore!”

O Quinto, por acaso, tocou a orelha,
E disse: “Até um cego
Pode dizer com o que ele se parece:
Negue quem puder,
Esta maravilha de Elefante
É muito parecido com um leque!”

O Sexto, mal havia começado
A apalpar o animal,
Pegou na cauda que balançava
E veio ao seu alcance.
“Vejo”, disse ele, “o Elefante
é muito semelhante a uma corda!”

E assim esses homens do Hindustão
Discutiram por muito tempo,
Cada um com sua opinião,
Excessivamente rígida e forte.
Embora cada um estivesse, em parte, certo,
Todos estavam errados!

 

Esta parábola/poema é bastante rica do ponto de vista filosófico porque dá azo a variadas questões sobre “verdade/erro”. Alguns exemplos: O que é a verdade? Há apenas uma verdade ou várias verdades? A verdade é algo absoluto ou podemos considerar várias verdades parciais? Cada um pode ter a sua verdade? A verdade é estanque ou evolui, ao longo do tempo, acompanhando as experiências do indivíduo e o desenvolvimento da sociedade? Haverá erros na busca da verdade? Temos de ter em consideração que a evolução é uma caminhada contínua, é uma aprendizagem feita de erros e acertos. A construção do conhecimento também; se assim não fosse, o método científico não faria sentido, uma vez que o que hoje parece comprovado cientificamente, amanhã poderá ser contestado, verificado e evoluir para novas comprovações/novas verdades. Podemos considerar que os nossos cegos estavam errados ou cada um possuía uma parcela da verdade, construída em função das suas percepções pessoais e da análise individual dos fatos? Mesmo que analisassem a mesma parte do corpo do elefante, ainda assim, pelo fato de serem cegos, as percepções seriam diferentes.

Todos somos cegos até que os nossos olhos se abram para verdades que ainda desconhecemos. O conhecimento é ilimitado, mas é construído a partir das nossas capacidades limitadas.

Transpondo, agora, estas reflexões para o campo das religiões, convém que nos interroguemos sobre idênticas questões. Poderemos ter a pretensão de possuir toda a verdade? Existe verdade absoluta? Poderemos considerar que todos estamos com uma parcela da verdade, como os cegos da parábola? O que poderemos dizer que é a verdade?

Disse Jesus: “Conhecereis a Verdade e ela vos libertará.”, João-8:32.

Perante isto, parece-nos evidente que existe uma Verdade que, segundo a promessa de Jesus, haveremos de alcançar. Uma Verdade que nos está destinada e que nos guiará, levando-nos à libertação. Libertação de quê? Libertação das amarras que nos prendem ao erro, ao obscurantismo, à ignorância, ao egoísmo, a tudo o que nos caracteriza como seres imperfeitos.

Mas estaremos já nesse patamar evolutivo e nós poderemos considerar ter essa Verdade prometida por Jesus ao nosso alcance? Então não teremos mais nada a aprender? Parou a nossa busca da Verdade? Alguém no mundo terreno poderá arvorar-se em senhor da Verdade? E se sentimos estar com a Verdade, o que fazemos desse conhecimento? Ele está a cumprir a sua função de nos libertar? Estamos a usá-lo para nos colocarmos na posição humilde que Jesus nos ensinou com tantos exemplos, ou para excluirmos, estigmatizarmos, discriminarmos os nossos irmãos de caminhada, e ostentarmos essa verdade como bandeira de superioridade?

Ao longo da história humana, fomos assistindo à descida ao planeta de numerosos profetas que, de forma localizada, foram disseminando verdades parcelares, desvendando, aos poucos, o véu da espiritualidade. Foi grande o contributo desses irmãos que nos deixaram as suas doutrinas e filosofias de vida, numa tentativa de nos ajudar a crescer em moral e conhecimento. São bem conhecidos alguns nomes como Maomé, Buda, Platão, Sócrates, Moisés, João Batista. Foram precursores de Jesus, vieram preparar o terreno para que, no tempo devido, o Mestre dos Mestres viesse trazer a Sua Doutrina e nos encontrasse capazes de a entender. Foram os Seus enviados que trouxeram parcelas dessa Verdade anunciada por Jesus.

Mas Jesus sabia que ainda não estávamos, à época, preparados para a Verdade absoluta. E que até mesmo os seus ensinamentos, ainda limitados, seriam mal-entendidos por muitos e deturpados por quase todos. A Humanidade estava ainda na infância. Por isso anunciou a vida de um outro Consolador, para esclarecer e repor a Verdade. O Espiritismo, o Consolador Prometido, terá trazido toda a Verdade? Certamente que não. Kardec alerta-nos para isso, quando diz que, se algum dos postulados da Doutrina viesse a verificar-se não estar de acordo as descobertas da Ciência, imediatamente deveria ser posto de lado. Tal fato nunca se verificou, pelo contrário, as descobertas da Ciência estão, a todo instante, a confirmar o que o Espiritismo, através dos ensinamentos dos Espíritos, já afirmava há mais de um século. Mas voltamos a chamar à atenção, Kardec deixou essa possibilidade em aberto. Novas verdades vão chegando até nós, pela revelação, pelo estudo, pelas descobertas científicas, pela reflexão filosófica, à medida que evoluímos e temos capacidade de entendimentos maiores. Somos os cegos do poema a tentar chegar ao conhecimento, cada um com as suas possibilidades limitadas, mas, tal como eles, somos ainda cegos incapazes de ver a Verdade absoluta. Ficamo-nos por algumas verdades individuais ou coletivas, que são pequenas parcelas da Verdade.

Em face destas reflexões, fica a grande questão: Fará sentido a humanidade apegar-se ao fanatismo religioso? Não pretendemos criticar ou atirar pedras em qualquer povo ou cultura. Longe disso. Até porque os nossos telhados de vidro ocidentais são demasiado frágeis. Perpetuamos durante longo tempo atitudes que foram de perseguidos a perseguidores, transformando-nos em carrascos e escravizadores de todos quantos não pensavam da mesma forma que nós, todos quantos não adotavam as nossas crenças religiosas, a nossa cultura, o nosso modo de vida. Perseguimos, destruímos, exterminamos, tudo em nome de uma doutrina, o Cristianismo, que é, nos seus fundamentos, uma doutrina de amor, perdão, tolerância, respeito, cooperação. Jesus disse “Ide e ensinai todos as nações, Mateus: 19-20”. Jamais disse “Ide e exterminai e destruí os que não vos quiserem ouvir”. Até porque o seu maior ensinamento foi o “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”, João 13:34-35.

Face à situação atual do nosso mundo, em que vemos o fanatismo religioso ainda comandar a relação entre os povos e nações (e não me refiro só aos orientais), em que a intolerância e o desrespeito disseminam dor, terror, ódio, medo, sofrimento, destruição, sem conseguirmos antever um fim para as desavenças e perseguições, não podemos deixar de lamentar o estado de atraso em que nos encontramos. Este não é um problema que afeta apenas os que nasceram, nesta reencarnação, nos locais do planeta em que esses acontecimentos se estão, atualmente, a dar. Afeta-nos e diz-nos respeito a todos, porque temos um destino comum e coletivo, como habitantes do mesmo mundo. Se não mudarmos as nossas atitudes, se continuarmos a pensar-nos detentores de verdades e senhores de um mundo que achamos ser só nosso por direito, se não aprendermos o respeito, a solidariedade, o amor, a empatia (que nos permite colocarmo-nos no lugar do outro e sentir o seu sofrimento como nosso), escusado será chamarmo-nos a nós próprios cristãos. Na realidade, estaremos a colocar-nos numa posição cada vez mais distanciada do Cristianismo ou do Espiritismo.

É urgente essa mudança de paradigma. É um trabalho individual, dentro da consciência de cada um, e é igualmente urgente esse trabalho a nível coletivo, das nações e estados, procurando acolher, em vez de afastar, entreajudar-se e cooperar em vez de guerrear, para que a Terra possa sair deste atraso evolutivo que o fanatismo religioso, entre outros fatores, está imprimindo.

E, como espíritas, em qualquer lugar ou situação em que nos encontremos, procuremos ser um verdadeiro exemplo de fraternidade e respeito por todos e pela cultura ou religião de cada um, para que nos ajudemos mutuamente a alavancar este nosso planeta para uma situação menos dolorosa.


  

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita