Fanatismo
religioso
Para início desta
reflexão sobre o tema
que me propus abordar,
não resisti de colocar
aqui esta pequena
parábola indiana, que
acho deliciosa e muito
oportuna, dada a
conhecer pelo poeta
inglês do séc. XIX, John
Godfrey Saxe:
Os Cegos e o Elefante
Eram seis homens do
Hindustão
Inclinados para aprender
muito,
Que foram ver o Elefante
(Embora todos fossem
cegos)
Que cada um por
observação,
Poderia satisfazer sua
mente.
O Primeiro aproximou-se
do Elefante,
E aconteceu de chocar-se
Contra seu amplo e forte
lado
Imediatamente começou a
gritar:
“Deus me abençoe, mas o
Elefante
É semelhante a um muro”.
O Segundo, pegando na
presa,
Gritou, "Oh! O que temos
aqui
Tão redondo, liso e
pontiagudo?
Para mim isto é muito
claro
Esta maravilha de
Elefante
É muito semelhante a uma
lança!”
O Terceiro aproximou-se
do animal
E aconteceu de pegar
A sinuosa tromba com
suas mãos.
Assim, falou em voz
alta:
“Vejo”, disse ele "o
Elefante
É muito parecido com uma
cobra!”
O Quarto esticou a mão,
ansioso
E apalpou em torno do
joelho.
“Com o que este
maravilhoso animal
Se parece é muito
fácil”, disse ele:
“Está bem claro que o
Elefante
É muito semelhante a uma
árvore!”
O Quinto, por acaso,
tocou a orelha,
E disse: “Até um cego
Pode dizer com o que ele
se parece:
Negue quem puder,
Esta maravilha de
Elefante
É muito parecido com um
leque!”
O Sexto, mal havia
começado
A apalpar o animal,
Pegou na cauda que
balançava
E veio ao seu alcance.
“Vejo”, disse ele, “o
Elefante
é muito semelhante a uma
corda!”
E assim esses homens do
Hindustão
Discutiram por muito
tempo,
Cada um com sua opinião,
Excessivamente rígida e
forte.
Embora cada um
estivesse, em parte,
certo,
Todos estavam errados!
Esta parábola/poema é
bastante rica do ponto
de vista filosófico
porque dá azo a variadas
questões sobre
“verdade/erro”. Alguns
exemplos: O que é a
verdade? Há apenas uma
verdade ou várias
verdades? A verdade é
algo absoluto ou podemos
considerar várias
verdades parciais? Cada
um pode ter a sua
verdade? A verdade é
estanque ou evolui, ao
longo do tempo,
acompanhando as
experiências do
indivíduo e o
desenvolvimento da
sociedade? Haverá erros
na busca da verdade?
Temos de ter em
consideração que a
evolução é uma caminhada
contínua, é uma
aprendizagem feita de
erros e acertos. A
construção do
conhecimento também; se
assim não fosse, o
método científico não
faria sentido, uma vez
que o que hoje parece
comprovado
cientificamente, amanhã
poderá ser contestado,
verificado e evoluir
para novas
comprovações/novas
verdades. Podemos
considerar que os nossos
cegos estavam errados ou
cada um possuía uma
parcela da verdade,
construída em função das
suas percepções pessoais
e da análise individual
dos fatos? Mesmo que
analisassem a mesma
parte do corpo do
elefante, ainda assim,
pelo fato de serem
cegos, as percepções
seriam diferentes.
Todos somos cegos até
que os nossos olhos se
abram para verdades que
ainda desconhecemos. O
conhecimento é
ilimitado, mas é
construído a partir das
nossas capacidades
limitadas.
Transpondo, agora, estas
reflexões para o campo
das religiões, convém
que nos interroguemos
sobre idênticas
questões. Poderemos ter
a pretensão de possuir
toda a verdade? Existe
verdade absoluta?
Poderemos considerar que
todos estamos com uma
parcela da verdade, como
os cegos da parábola? O
que poderemos dizer que
é a verdade?
Disse Jesus: “Conhecereis
a Verdade e ela vos
libertará.”,
João-8:32.
Perante isto, parece-nos
evidente que existe uma
Verdade que, segundo a
promessa de Jesus,
haveremos de alcançar.
Uma Verdade que nos está
destinada e que nos
guiará, levando-nos à
libertação. Libertação
de quê? Libertação das
amarras que nos prendem
ao erro, ao
obscurantismo, à
ignorância, ao egoísmo,
a tudo o que nos
caracteriza como seres
imperfeitos.
Mas estaremos já nesse
patamar evolutivo e nós
poderemos considerar ter
essa Verdade prometida
por Jesus ao nosso
alcance? Então não
teremos mais nada a
aprender? Parou a nossa
busca da Verdade? Alguém
no mundo terreno poderá
arvorar-se em senhor da
Verdade? E se sentimos
estar com a Verdade, o
que fazemos desse
conhecimento? Ele está a
cumprir a sua função de
nos libertar? Estamos a
usá-lo para nos
colocarmos na posição
humilde que Jesus nos
ensinou com tantos
exemplos, ou para
excluirmos,
estigmatizarmos,
discriminarmos os nossos
irmãos de caminhada, e
ostentarmos essa verdade
como bandeira de
superioridade?
Ao longo da história
humana, fomos assistindo
à descida ao planeta de
numerosos profetas que,
de forma localizada,
foram disseminando
verdades parcelares,
desvendando, aos poucos,
o véu da
espiritualidade. Foi
grande o contributo
desses irmãos que nos
deixaram as suas
doutrinas e filosofias
de vida, numa tentativa
de nos ajudar a crescer
em moral e conhecimento.
São bem conhecidos
alguns nomes como Maomé,
Buda, Platão, Sócrates,
Moisés, João Batista.
Foram precursores de
Jesus, vieram preparar o
terreno para que, no
tempo devido, o Mestre
dos Mestres viesse
trazer a Sua Doutrina e
nos encontrasse capazes
de a entender. Foram os
Seus enviados que
trouxeram parcelas dessa
Verdade anunciada por
Jesus.
Mas Jesus sabia que
ainda não estávamos, à
época, preparados para a
Verdade absoluta. E que
até mesmo os seus
ensinamentos, ainda
limitados, seriam
mal-entendidos por
muitos e deturpados por
quase todos. A
Humanidade estava ainda
na infância. Por isso
anunciou a vida de um
outro Consolador, para
esclarecer e repor a
Verdade. O Espiritismo,
o Consolador Prometido,
terá trazido toda a
Verdade? Certamente que
não. Kardec alerta-nos
para isso, quando diz
que, se algum dos
postulados da Doutrina
viesse a verificar-se
não estar de acordo as
descobertas da Ciência,
imediatamente deveria
ser posto de lado. Tal
fato nunca se verificou,
pelo contrário, as
descobertas da Ciência
estão, a todo instante,
a confirmar o que o
Espiritismo, através dos
ensinamentos dos
Espíritos, já afirmava
há mais de um século.
Mas voltamos a chamar à
atenção, Kardec deixou
essa possibilidade em
aberto. Novas verdades
vão chegando até nós,
pela revelação, pelo
estudo, pelas
descobertas científicas,
pela reflexão
filosófica, à medida que
evoluímos e temos
capacidade de
entendimentos maiores.
Somos os cegos do poema
a tentar chegar ao
conhecimento, cada um
com as suas
possibilidades
limitadas, mas, tal como
eles, somos ainda cegos
incapazes de ver a
Verdade absoluta.
Ficamo-nos por algumas
verdades individuais ou
coletivas, que são
pequenas parcelas da
Verdade.
Em face destas
reflexões, fica a grande
questão: Fará sentido a
humanidade apegar-se ao
fanatismo religioso? Não
pretendemos criticar ou
atirar pedras em
qualquer povo ou
cultura. Longe disso.
Até porque os nossos
telhados de vidro
ocidentais são demasiado
frágeis. Perpetuamos
durante longo tempo
atitudes que foram de
perseguidos a
perseguidores,
transformando-nos em
carrascos e
escravizadores de todos
quantos não pensavam da
mesma forma que nós,
todos quantos não
adotavam as nossas
crenças religiosas, a
nossa cultura, o nosso
modo de vida.
Perseguimos, destruímos,
exterminamos, tudo em
nome de uma doutrina, o
Cristianismo, que é, nos
seus fundamentos, uma
doutrina de amor,
perdão, tolerância,
respeito, cooperação.
Jesus disse “Ide e
ensinai todos as nações,
Mateus: 19-20”. Jamais
disse “Ide e exterminai
e destruí os que não vos
quiserem ouvir”. Até
porque o seu maior
ensinamento foi o “Amai-vos
uns aos outros como eu
vos amei”, João
13:34-35.
Face à situação atual do
nosso mundo, em que
vemos o fanatismo
religioso ainda comandar
a relação entre os povos
e nações (e não me
refiro só aos
orientais), em que a
intolerância e o
desrespeito disseminam
dor, terror, ódio, medo,
sofrimento, destruição,
sem conseguirmos antever
um fim para as
desavenças e
perseguições, não
podemos deixar de
lamentar o estado de
atraso em que nos
encontramos. Este não é
um problema que afeta
apenas os que nasceram,
nesta reencarnação, nos
locais do planeta em que
esses acontecimentos se
estão, atualmente, a
dar. Afeta-nos e diz-nos
respeito a todos, porque
temos um destino comum e
coletivo, como
habitantes do mesmo
mundo. Se não mudarmos
as nossas atitudes, se
continuarmos a
pensar-nos detentores de
verdades e senhores de
um mundo que achamos ser
só nosso por direito, se
não aprendermos o
respeito, a
solidariedade, o amor, a
empatia (que nos permite
colocarmo-nos no lugar
do outro e sentir o seu
sofrimento como nosso),
escusado será
chamarmo-nos a nós
próprios cristãos. Na
realidade, estaremos a
colocar-nos numa posição
cada vez mais
distanciada do
Cristianismo ou do
Espiritismo.
É urgente essa mudança
de paradigma. É um
trabalho individual,
dentro da consciência de
cada um, e é igualmente
urgente esse trabalho a
nível coletivo, das
nações e estados,
procurando acolher, em
vez de afastar,
entreajudar-se e
cooperar em vez de
guerrear, para que a
Terra possa sair deste
atraso evolutivo que o
fanatismo religioso,
entre outros fatores,
está imprimindo.
E, como espíritas, em
qualquer lugar ou
situação em que nos
encontremos, procuremos
ser um verdadeiro
exemplo de fraternidade
e respeito por todos e
pela cultura ou religião
de cada um, para que nos
ajudemos mutuamente a
alavancar este nosso
planeta para uma
situação menos dolorosa.