O comboio da vida
João estava desesperado. Fora despedido. A empresa
falira, engolida no egoísmo de quem a geria. A esposa,
empregada fabril, tinha sido despedida há 2 meses. João
pensava nos 2 filhos que tinha para criar, de 15 e 17
anos. Almejava dar-lhes um curso superior, que agora ia
pelo cano abaixo. Faltavam 10 anos para acabar de pagar
o empréstimo da casa, e agora não tinha como. O futuro
tinha fugido, de repente. Não tinha saída.
A solução estava ali à mão de semear.
Vivia perto da linha de comboio, perto de uma curva,
seria uma morte rápida e sem grande dor, pensava no seu
íntimo.
Nessa noite, deitou-se pela última vez ao lado da
esposa, carcomida pelas dificuldades da vida, tal como
ele. Olhou para ela, dormindo, cansada, e uma lágrima de
tristeza misturada com ternura rolou pela face.
Não podia fraquejar!
Levaria o seu plano por diante, após a rotina diária de
desempregado, após o café diário, no café do Sr.
Joaquim. Assim não daria nas vistas.
Ajeitou-se nas mantas, e sem saber como nem por quê,
lembrou-se da sua falecida mãe, que lhe falava do seu
anjo da guarda ou guia espiritual. Nunca fora dado a
essas coisas da espiritualidade. Ela morrera, e era
apenas uma leve recordação.
Adormeceu.
Teve um sonho muito nítido, onde se via lado a lado com
um ser luminoso, que o levava a visitar um local
sinistro, sombrio, onde a dor não tem palavras para ser
relatada. Olhou para uma tabuleta que encimava a
entrada: “Vale dos suicidas”. O seu companheiro
de viagem durante o sono (o seu guia espiritual)
mostrava-lhe ali o estado de inúmeras pessoas que,
pensando tudo acabar com a morte do corpo de carne, ali
sofriam os horrores da desilusão, até que um dia, por
mérito próprio, sejam resgatadas pelos Espíritos
benfeitores, levando-as para um local mais calmo, em
preparação para nova reencarnação.
Gritos, tiros, apitos de comboios, gemidos de dores, de
tudo um pouco ouvia, e aquilo perturbou-o imenso. Pediu
para voltar. De repente, acordou alagado em suor.
Cinco da manhã! A esposa dormia tranquila…
“Que raio de sonho!”, pensou… Deviam ser
preocupações devido ao que planejava.
Mas, aquilo tinha sido tão nítido que não conseguiu
dormir mais, e continuou até de manhã a matutar naquele
sonho que, para ele, parecia realidade. Se fosse
daqueles que acreditavam nas coisas da espiritualidade,
iria jurar que tinha sido real. Mas, não, a vida para
além da morte não existe, cogitava ele, enquanto se
procurava acalmar.
No dia seguinte, levantou-se, fez a rotina diária e,
enquanto tomava o café no Café do seu bairro e lia as
notícias do dia, antes do fatídico momento que tinha
preparado, apareceu-lhe o Victor, amigo de sempre. “Pobre
coitado, o filho fora assassinado no bairro, faz quase
um mês, sem ter culpa nenhuma, e o homem, mesmo assim,
aguentou-se”, pensava com os seus botões.
Depois dos cumprimentos de praxe, Victor mandou vir um
café, pousando um livro sobre a mesa.
- “Que andas a ler - perguntou o João?”
“Ah, é um livro que me tem ajudado muito”, disse
o Victor. “Imagina que o André, o nosso vizinho, é
espírita, faz parte daquelas reuniões todas as 4ªs
feiras, naquele grupo espírita ali à beira da mercearia
do Antônio. Nunca acreditei nessas coisas. Ele
convidou-me a lá ir, e destroçado com a morte do meu
filho, lá fui”.
O Espiritismo, provando a vida para além da morte,
demonstra que o suicídio não faz sentido, sendo uma
fonte de sofrimentos inenarráveis
“Oh, homem, vim de lá novo. Esse livro, O Livro dos
Espíritos de Allan Kardec, abriu-me os horizontes da
vida; tenho ido às reuniões, e venho sempre de lá
melhor. Até tenho esperança de um dia receber uma
mensagem do meu filho”.
João estava atônito, pois desconhecia a fé daquele
homem, de quem haviam matado o seu único filho e a
esperança para o fim da sua vida.
“Queres ir lá um dia comigo?” - perguntou o Victor.
“Bem sei que não acreditas em Deus, mas vais ver que é
diferente.”
João irrompeu num pranto, soluçou, para espanto do seu
colega de mesa e dos restantes que estavam nas mesas ao
lado. Depois de se acalmar, João lhe contou o seu
projeto para dali a minutos, quando o comboio passasse;
contou-lhe o sonho vívido que tivera, a lembrança
repentina da sua mãe antes de adormecer, e agora aquele
encontro inopinado, e as mais inopinadas revelações da
frequência do seu amigo às reuniões espíritas.
“Seria um sinal para que não se matasse?” - cogitava
agora em voz alta!
Victor pegou-lhe pela mão. Foram ao centro espírita.
João pôde ali lavar a alma com um dos dirigentes
presentes, que lhe falou das inúmeras provas da
imortalidade do Espírito, da comunicabilidade, da
reencarnação, e da esperança num dia melhor.
O comboio acabou por passar, apitando na dita curva,
enquanto eles iam falando da espiritualidade e da
imortalidade.
Ali, naquele momento, João apanhou o comboio da vida de
novo, e ainda hoje pensa que se não fosse o Espiritismo,
talvez estivesse naquele lugar do seu sonho, a carpir as
mágoas, próprias de quem tenta em vão fugir da Vida e
das leis sábias de Deus.
A esperança estava de novo ali, pois havia a perspectiva
de ir trabalhar como jardineiro para a casa de um dos
frequentadores do grupo espírita onde fora socorrido.
Pensava com os seus botões: nos momentos difíceis é
fundamental… resistir ao suicídio…
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