O espírito da solidariedade
A palavra solidariedade tem origem no francês solidarité, que
remete a uma responsabilidade recíproca. Assim, ser
solidário é ser responsável pelos outros. Kardec
reconhecia a grandeza
de Deus nessa admirável harmonia que forma a
solidariedade em todas as coisas da Natureza.[i]
Na obra kardequiana, encontramos, ocasionalmente, a
expressão solidariedade ou fraternidade universal,
para expressar a força que liga afetivamente todos os
seres vivos da criação, irmanados em sua origem divina. Ao
comentar sobre o modo espírita de pensar, Kardec coloca
que o Espiritismo mostra
a solidariedade que conjuga todas as existências de um
mesmo ser, todos os seres de um mesmo mundo e os seres
de todos os mundos. E assim vai facultar uma base e uma
razão de ser à fraternidade universal.[ii]
Habitualmente, relacionamos a solidariedade com a ação
piedosa que é movimentada em direção daquele que sofre,
acometido por uma enfermidade, uma desilusão ou coisa
equivalente. A solidariedade, todavia, transcende esse
conceito, embora o englobe.
Max Scheler, pensador alemão, morto em 1928,[iii] admitiu,
em uma divisão didática, duas formas para a
solidariedade, a forma de compaixão e a de
congratulação. A primeira relaciona o homem ao
sofrimento alheio e a segunda o identifica com a alegria
do próximo. Segundo Scheler, a congratulação está,
axiologicamente, acima da compaixão, pois não é
concebível que a esfera do sofrimento seja maior que a
da felicidade. De acordo com essa proposta, somos mais
valorosamente solidários quando nos alegramos com a
alegria alheia, do que quando sofremos com a dor do
nosso próximo.
A forma congratulatória da solidariedade se manifesta
quando compartilhamos a alegria, as vitórias e as
conquistas dos outros como se fossem nossas, com um
sentimento sincero de contentamento. Nesse particular,
um ato genuíno de congratulação seria incompatível com a
inveja (seria o seu contrário?). A inveja, entendida
como a sensação de desprazer ante a alegria ou a vitória
de outro, é um sentimento egoísta, enquanto a
congratulação é um sentimento de alteridade, é um
jubilar-se pelo sucesso ou felicidade alheia.
A forma compassiva da solidariedade evoca a piedade, a
bondade e a caridade que se verificam quando alguém
necessitado de ajuda recebe essa ajuda,
desinteressadamente, gratuitamente, despretensiosamente.
A solidariedade compassiva, via de regra, é precedida
pelo sentimento de empatia, que nos torna emocionalmente
sensibilizados ao sofrimento alheio. Segundo Marshall
Rosenberg, autor do livro Comunicação não violenta,
empatia é a compreensão respeitosa daquilo por que os
outros estão passando, e só ocorre, de verdade,
quando nos livramos de qualquer ideia preconcebida e de
julgamentos.
Edith Stein (1891-1942) entendia a empatia como a
apreensão das vivências alheias, isto é, a percepção das
vivências o outro: o mundo em que eu vivo não é
apenas um mundo de corpos físicos, além de mim há também
nele sujeitos com suas vivências e eu sei desse
vivenciar. Para Edith a empatia estava na capacidade
de apreender a vivência do outro que nos é
transcendente, ou seja, uma experiência da experiência
alheia.[iv]
Mas entendemos que a solidariedade pode transcender a
congratulação e a compaixão e tornar-se uma disposição
de ânimo, um estado de espírito, que deve existir de
maneira permanente, em qualquer contexto,
relacionando-nos a qualquer forma de vida e a tudo
aquilo que mantém a vida no universo. Francisco de Assis
captou isso ao chamar a natureza de irmã; desejava mudar
a relação com a natureza de serva do homem para
parceira. Seria a solidariedade uma espécie de abertura
ao outro, de boa vontade permanente, de respeito
incondicional ao diferente e às diferenças.
Em sua expressão mais sublime, a solidariedade é capaz
de atitudes sobre-humanas, pouco compreensíveis, ou nada
aceitáveis, para o homem vulgar.
Madre Tereza de Calcutá impunha a si mesma e àquelas que
se filiavam a sua organização uma vida sacrificial, o
banho frio e o leito duro. Não havia penitência nessa
ação, e sim, solidariedade aos que nada tinham.
Simone Weil (1909-1943) passou a dormir no chão, a
partir do momento em que os jovens soldados franceses
mobilizados na guerra contra os alemães não tinham um
colchão para fazê-lo. Alimentava-se exatamente da mesma
limitada porção de comida destinada aos pobres, durante
a guerra, embora fosse de uma família que tinha
recursos. Na experiência de quase um ano como operária
em uma fábrica de automóvel, recusou-se a continuar
vivendo na espaçosa e confortável residência da família
e foi habitar um quartinho frio, alugado à guisa de
pensão, porque pobremente viviam os “colegas” da
fábrica.
Até mesmo Francisco de Assis, algumas vezes criticado,
por sua adesão a pobreza e sua rejeição aos estudos e
livros laicos, agia assim, possivelmente, por grandioso
espírito de solidariedade.
Vivia em uma época muito distante dos institutos de
previdência social, que só se tornariam realidade a
partir de 1883[v].
Não havia nesse período da história aposentadoria por
velhice, ou invalidez, afastamento renumerado do
trabalho para cuidar da saúde e pensão para as viúvas.
Grande parte dos miseráveis e mendigos dessa longa fase
da história era vítima de um total descaso social,
impossibilitados, mesmo se quisessem, de se identificar
com o mínimo à sobrevivência. Daí, Francisco considerar
a esmola como uma
herança e um justo direito devido aos pobres[vi]. De
forma alguma, podemos considerar esse pensamento como
uma devoção à mendicância profissional, e, sim, uma
atitude corajosa e sacrificial de colocar-se ao lado
daqueles que nada podiam fazer para subtrair-se da
miséria.
Quanto à hostilidade de Francisco pela atividade
intelectual, devemos lembrar que os livros, naquela
época, eram verdadeiros objetos de luxo. Além disso, o
saber intelectual costumava ser uma fonte de orgulho e
de dominação sobre os iletrados.
Estamos muito distantes dessa disposição permanente de
solidariedade, mas podemos caminhar um pouco mais no
sentido de ampliar nossa capacidade de amar, de
compreender o outro, e de estarmos presentes, atentos e
disponíveis na tristeza e na alegria daqueles que
compartilham conosco a presente experiência corpórea.
A experiência da solidariedade, mesmo de uma forma
elementar e, até mesmo, pouco perceptível, contribui na
dissolução do egoísmo, matriz da imperfeição humana,
lembrando, com Kardec, que ao destruir
os preconceitos de seita, casta e cor, o Espiritismo
ensina aos homens a grande solidariedade que deve
uni-los como irmãos.[vii]
E ainda o codificador:
Quando os homens tiverem despido o egoísmo que os
domina, viverão como
irmãos, não fazendo o mal e ajudando-se reciprocamente
pelo sentimento mútuo da solidariedade. Então,
o forte será o apoio e não o opressor do fraco e não se
verão homens desprovidos do necessário, porque todos
participarão da lei da justiça. É o reino do bem que os
Espíritos estão
encarregados de preparar. [viii]
[ii] E.S.E,
cap. 2, item 7
[iii] A
ética de Max Scheler, Alan Carneiro e Marconi
Pequeno
[v] JUS.com.br
14/12/2013
[vi] Ética,
Fabio Konder Comparato