Um só rebanho sem fronteiras e barreiras
Na questão 789 de “O Livro dos Espíritos”, Allan Kardec
indaga se seria possível, no futuro, o progresso reunir
todos os povos da Terra numa só nação. Os espíritos que
o assessoravam na empreitada de organizar a doutrina
espírita respondem que tal feito seria impossível.
Motivo: a diversidade dos climas, que faz surgirem
costumes e necessidades que caracterizam as diversas
nacionalidades que conhecemos.
O Espiritismo nos mostra que o progresso moral da
humanidade é inexorável. Aliás, o capítulo sobre a Lei
do Progresso de “O Livro dos Espíritos” é farto em
evidenciar que, apesar de uma leva de espíritos afeitos
ao mal tentar retardar a marcha da humanidade rumo à
perfeição moral, ela se dará, pois ninguém pode detê-la.
Mesmo quando esse progresso vier e irmanar todos os
homens e mulheres que habitam nosso planeta, será
impossível existir apenas uma nação. Imaginem o quão
intrincado seria eleger um governante para ela, bem como
seus ministros, secretários e demais subalternos. Além
disso, como esclarece a resposta à pergunta 789, há
costumes e necessidades que surgiram devido à
diversidade dos climas. Por exemplo, hábitos
alimentares, vestimentas, celebrações religiosas e
culturais, culinária típica, legislação específica,
entre outras. Dessa forma, mesmo quando o pleno
progresso moral for corrente entre nós, a Áustria
continuará sendo a Áustria; idem o Brasil, a Índia, o
Chile, a França, o México, a Tailândia, a Grécia, o
Marrocos e por aí vai, na multiplicidade dos quase 200
países que, atualmente, compõem o globo terrestre.
Como, no entanto, o progresso sinaliza um mundo mais
fraterno, creio que, embora as fronteiras continuem a
existir, não haverá necessidade de que sejam vigiadas.
Afinal, não haverá mais imigrantes ilegais; refugiados;
tráfico de drogas, animais silvestres, armas e que tais;
risco de outras nações invadirem o território alheio e
outras tantas dores de cabeça resultantes da nossa
insistência em nos pautarmos pelo orgulho e pelo
egoísmo, que geram esse malfadado efeito cascata que
resulta em disputa de poder, opressão, guerras etc.
Fico pensando também em como ficariam os hinos nacionais
depois que o reino dos céus for devidamente instaurado
nas consciências humanas. De quatro em quatro anos, nas
Copas do Mundo de futebol, presto atenção às seleções
dos países, devidamente perfiladas e uniformizadas para
a ocasião, entoando seus hinos de louvor às respectivas
pátrias. Todos, sem exceção, falam do orgulho de haver
tão valorosos filhos desse ou daquele chão; da
importância do combate às hostes inimigas; da bravura de
se manter a bandeira erguida, apesar de ensanguentada;
de marchar para degolar o vil adversário... Nem o nosso
escapa quando diz: “Mas se ergues da justiça a clava
forte, verás que um filho teu não foge à luta.” Pois é,
dia virá em que tais hinos terão de ser refeitos, pois
não mais condirão com o patamar moral que tanto
almejamos alcançar.
Outro aspecto que me deixa intrigado diz respeito à
paridade cambial. Num mundo em que todas as nações
primarão pela fraternidade, haverá uma moeda que valha
mais que as outras? Ou todas terão o mesmo valor,
facilitando a vida de quem viaja e possibilitando um
comércio bem mais fraterno entre os países? Divagações
de um cidadão que imagina como a Terra virá a ser.
Na mesma questão, os amigos espirituais afirmam que “a
caridade não conhece latitudes e não faz distinção dos
homens pela cor”. Sabemos que uma das questões mais
graves que o Brasil e o mundo enfrentam diz respeito ao
racismo em relação à população negra. Infelizmente, são
numerosos os casos de extermínio de jovens negros, que
tombam quase que diariamente, vitimados por supostas
balas perdidas, truculência policial, guerra entre
facções criminosas ou simplesmente porque são
‘confundidos’ com bandidos por serem negros. Quem
porventura duvide, recomendo que assista ao documentário
“A última abolição”. Roteirizado e dirigido por Alice
Gomes e produzido por Gávea Filmes, Esmeralda Produções
e Buda Filmes, a película mostra o protagonismo do povo
negro na luta pela abolição, as consequências políticas
e sociais da Lei Áurea e a luta que nossos irmãos de
pele preta enfrentam até hoje para reverter tristes
estatísticas como a que mostra ser negra 64% da
população carcerária do país. Em sua maioria, de baixa
renda e baixa escolaridade. Uma dura realidade que
reflete o racismo estrutural entranhado em nosso modus
operandi social e que precisa desaparecer. A caridade
que não conhece latitudes e não distingue cor, como bem
ressalta “O Livro dos Espíritos”, tem de ocupar o lugar
que lhe é devido no concerto da orquestra, que precisa
afinar os instrumentos para que a fraternidade se faça
presente entre nós.
Enfatizo a questão do racismo porque já vi, em redes
sociais de pessoas espíritas, um questionamento infeliz
à frase “Vidas negras importam” (“Black lives matter”),
que ganhou o mundo quando o norte-americano George Floyd,
em maio de 2020, foi morto na cidade de Minneapolis
devido a uma abordagem policial totalmente equivocada.
Desde então, “Vidas negras importam” passou a ser
palavra de ordem onde quer que haja racismo, inclusive
no Brasil. Alguns espíritas desavisados, no entanto,
andaram criticando a frase. Para tanto, alegam que, na
verdade, todas as vidas importam, e não somente as vidas
negras.
Trata-se de uma interpretação equivocada. Quando
afirmamos que as vidas do povo negro importam, eu não
estou dizendo que elas devem valer mais que as do povo
branco ou amarelo. Estou dizendo que elas valem menos
porque, historicamente, o negro é tratado, há séculos,
como cidadão de segunda classe. Entrar numa loja de
roupas ou numa agência bancária, para um branco, não é a
mesma coisa para um negro. Os brancos não são alvo de
olhares furtivos e desconfiados. Participar de um
processo seletivo para uma vaga de engenheiro, por
exemplo, também não é a mesma coisa para um jovem negro
em contraponto ao que um rapaz branco vivencia quando
passa pela mesma situação. Imaginem quando se trata de
uma abordagem policial. O negro, infelizmente, é sempre
visto como eventual suspeito até que prove o contrário,
quando consegue provar. Por isso, quando digo que vidas
negras importam, eu não estou dizendo “E as vidas
brancas que se lixem”. Da mesma forma que, quando
defendo a preservação da ararinha azul, eu não estou
querendo dizer “E as andorinhas que vão às favas”.
No livro “A Gênese”, capítulo 17, itens 31 e 32, ao
analisar o dito evangélico “Um só rebanho para um só
pastor”, (João, cap. 10, v. 16) Kardec afirma que a
unidade religiosa será feita “como já tende a fazer-se
socialmente, politicamente, comercialmente, pela queda
de barreiras que separam os povos”.
Quando Kardec fala em unidade religiosa, não é para que
todos se convertam à mesma religião. Mesmo porque, o
Espiritismo não é somente uma religião. O Codificador
deixa claro que o senso de justiça à luz da imortalidade
da alma imperará, fazendo com que os homens se vejam
como irmãos em humanidade. Por conseguinte, as
diferenças sociais, políticas, econômicas e comerciais,
que causam tantas desigualdades e injustiças,
desaparecerão. Seremos, portanto, um só rebanho, livre
de fronteiras e barreiras sociais, raciais e afins que
ainda teimam em nos infelicitar.
Bibliografia:
1- KARDEC,
Allan – A Gênese, Federação Espírita Brasileira
(FEB), 34ª Ed., 1991, Brasília, DF.
2- ______
– O Livro dos Espíritos, Federação Espírita
Brasileira (FEB), 60ª Ed., 1984, Brasília, DF.
3- A
Última Abolição – clique
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