Juntos mesmo sendo diferentes
A óbvia polarização político-ideológico-partidária que
se instalou no país nos últimos anos contaminou os
espaços espíritas, bem como diferentes espaços
religiosos. Poucos grupos espíritas saíram ilesos desse
aguerrido fenômeno sociológico.
Superada, em parte, a disputa política com o fim do
pleito eleitoral, compete-nos avaliar os caminhos que
precisamos seguir, para retomar o trilho da convivência
sadia; mesmo sendo diferentes, estamos juntos no
compromisso de tornar a Terra um mundo mais justo,
igualitário e compassivo.
O ideal
que nos une é infinitamente maior que as expectativas
temporais, corporificadas em personalidades humanas,
que, nas décadas futuras, se tornarão, apenas, um
retrato na parede, ou um parágrafo nos livros de
história.
O compromisso assumido com os avalistas de nossa
encarnação transcende as dificuldades relacionais,
próprias da convivência humana.
Erasto, escrevendo aos espíritas de Lyon, coloca:
Não podeis acreditar
quanto nos é doce e agradável presidir ao vosso
banquete, onde o rico e o artífice se acotovelam
brindando à fraternidade; onde o judeu, o católico e o
protestante podem sentar-se à mesma comunhão pascal. Não
podeis crer quanto me sinto orgulhoso de vos distribuir,
a todos e a cada um, os elogios e o encorajamento que o
Espírito de Verdade, nosso bem-amado mestre, me ordenou
conferir às vossas piedosas coortes.[i]
Vale ressaltar que a
proposta de comunhão apresentada por Erasto inclui até
mesmo adeptos de diferentes tradições religiosas,
obviamente, compartilhando a crença comum que os torna
espíritas: a sobrevivência da alma e sua manifestação
junto aos homens. Para Kardec, espírita
é todo aquele que crê nas manifestações dos Espíritos. [ii] Kardec
considerava espíritas também os espiritualistas da
tradição inglesa e norte-americana, que não aceitavam a
doutrina das vidas sucessivas. Examinando essa questão,
ele escreveu:
A gente é
espírita, desde o momento em que se entra nesta ordem de
ideias, ainda mesmo quando não se admitissem todos os
pontos da Doutrina em sua integridade ou em todas as
suas consequências.[iii]
Voltando os olhos para os primórdios do cristianismo,
vamos identificar uma comunidade fiel no compromisso de
bem servir, e constituída de pessoas muito distintas.
Entre os escolhidos por Jesus, havia:
Mulheres e homens. Entre as mulheres, uma senhora da
aristocracia judaica – Joana de Cusa – e uma mulher
simples do povo- Madalena.
Entre os homens, havia muito jovens, como João e mais
velhos e casados como Pedro e Felipe.
Havia um cético – Tomé – e um comerciante, vinculado a
um partido revolucionário – Judas Iscariotes.
Havia um publicano – Mateus, e um zelote - Simão. Duas
personalidades de convivência quase impossível. O
publicano era o cobrador de impostos, mancomunado com o
Império romano, detestado por todos, particularmente
pelos zelotas ou zelotes. Estes, pertenciam ao movimento
político judaico do século I que procurava incitar o
povo da Judeia a rebelar-se contra o Império Romano e
expulsar os romanos pela força das armas, que conduziu à
Primeira Guerra Judaico-Romana.
Impensável, antes de Jesus, que figuras tão díspares
pudessem se movimentar juntas, em comunhão fraterna. E
permaneceram juntas, embora Mateus continuasse sendo
chamado de publicano e Simão de zelota.
Examinando as dissidências entre os espíritas, Kardec,
afirma:
Que vos possais confundir todos numa mesma família e vos
dar, do fundo do coração e sem pensamento premeditado, o
nome de irmãos. Se, entre vós, houver dissidências,
causas de antagonismo; se os grupos, que devem todos
marchar para um objetivo comum, estiverem divididos, eu
o lamento, sem me preocupar com as causas, sem examinar
quem cometeu os primeiros erros e me coloco, sem
vacilar, do lado daquele que tiver mais caridade, isto
é, mais abnegação e verdadeira humildade, pois aquele a
quem falta a caridade está sempre em erro, ainda que
coberto de algum tipo de razão, porquanto Deus maldiz a
quem diz a seu irmão: Raca. Os grupos são indivíduos
coletivos que devem viver em paz, como os indivíduos,
se, realmente, são espíritas; são os batalhões da grande
falange. Ora, em que se tornaria uma falange, cujos
batalhões se dividissem? [iv]
Em uma das metáforas do reino de Deus, Jesus coloca que o
reino dos céus é como uma rede de pesca que foi lançada
ao mar e pegou peixes de todos os tipos. [v]
O texto se reporta a todos os peixes. Alguns
sofisticados, como o salmão; outros simples, como a
sardinha. Todos incluídos na mesma rede.
Segundo Jesus, Deus faz
que o sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça
sobre justos e injustos.[vi]
Somos de todos os tipos, e não precisamos deixar de ser
o que somos, de acreditar naquilo que acreditamos, e nos
afastarmos das lutas que consideramos justas. Nada disso
é cobrado de nós.
Só uma coisa nossa consciência nos cobra: o empenho
pessoal no sentido de que a tarefa espírita se mantenha
pujante, com a certeza de que estamos fazendo o que nos
compete fazer.
Ainda Kardec:
Se, pois, eu tivesse de
opinar em uma divergência, eu me preocuparia menos com a
causa e mais com a consequência. A causa, sobretudo em
querelas de palavras, pode ser o resultado de um
primeiro movimento, de que nem sempre se é senhor; a
conduta ulterior dos dois adversários é o resultado da
reflexão: eles agem de sangue frio e é então que se
forja o verdadeiro caráter normal de cada um. Uma cabeça
ruim e um bom coração muitas vezes caminham juntos, mas
rancor e bom coração são incompatíveis. Minha medida de
apreciação seria, pois, a caridade, isto é, eu
observaria aquele que falasse menos mal de seu
adversário, que fosse mais moderado em suas
recriminações.[vii]
Fica óbvio no pensamento de Kardec que, mais importante
que as condições que deram origem as dissenções, está a
forma como vamos lidar com elas, no desdobramento dos
fatos. Já não importa quem estava com a razão, mas, sim,
quem se dispõe a compreender e amar mais.
E, finalmente, Erasto:
Não falhareis. Tenho como
garantia o bem que realizastes e o que vos resta a
fazer.[viii]
É consolador o pensamento da entidade: faz com que
recordemos todo o bem feito anteriormente, e coloca esse
bem como avalista do bem que nos resta fazer. Fica como
meditação para cada um de nós; se já fizemos tanto,
consolando os aflitos, amparando os caídos e
esclarecendo os desinformados, porque deixar de fazer,
agora?
[i] Epístola
de Erasto aos espíritas lioneses, RE, outubro de
1861.
[ii] O
Espiritismo em sua expressão mais simples.
[iii] Revista
espírita, junho de 1868.
[iv] Viagem
espírita em 1862, Discursos pronunciados nas
reuniões gerais dos espíritas de Lyon e
Bordeaux, item III.
[vii] Viagem
espírita em 1862, Discursos pronunciados nas
reuniões gerais dos espíritas de Lyon e
Bordeaux, item III.
[viii] Epístola
de Erasto aos espíritas lioneses, RE, outubro de
1861.