O aborto e a ausência de uma visão
realmente interdisciplinar
Indubitavelmente, um dos assuntos mais palpitantes da
atualidade é o aborto. Trata-se de um tema visto e
analisado sob vários enfoques pela mídia tradicional,
exceto pelo aspecto espiritual. A prestigiada revista Super
Interessante abordou-o recentemente na sua edição de
novembro passado, mas, infelizmente, sem a perspectiva
transcendental que o tema também requer.
Assim sendo, no editorial da referida edição somos
informados que o aborto é permitido em 78 nações, isto
é, 40% das 193 filiadas à ONU. Em nosso país, a
permissão é dada apenas em situações que envolvam
exclusivamente risco de vida à gestante, atos de estupro
ou fetos que portem anencefalia, ou seja, malformação
cerebral. Apesar dessa prática não ser admitida pela
maioria dos países, o editor da revista atribui-nos a
pecha de “párias globais”, particularmente em comparação
aos chamados “países desenvolvidos”. Em sua opinião, “É
natural que cada pessoa tenha uma opinião sobre o
aborto. Mas proibir não é um caminho sensato”. Para ele
ainda, a legalização constituí um ato de civilidade,
embora tal visão não encontre respaldo absoluto.
Já o artigo intitulado “Dossiê Aborto” da mesma edição
aprofunda a análise de determinadas dimensões, mas, como
mencionei acima, sem adentrar na questão espiritual.
Desse modo, a matéria informa, entre outras coisas, que
90% dos procedimentos legais de aborto realizados no
país são derivados de violência sexual atingindo 2000
casos no ano de 2021. Essa conclusão leva-me a
conjecturar nos prováveis dramas aí existentes sob o
manto da lei de causa e efeito – não utilizada no texto,
a propósito.
O artigo aludi igualmente a um outro levantamento
elaborado em 2016 pela Universidade de Brasília que
estimou a cifra de que sejam realizados 500 mil abortos
no país a cada ano (isto é, quase um por minuto). No
entanto, só um em cada 270 abortos voluntários é feito
dentro dos parâmetros da lei. Outro dado surpreendente
trazido a lume por esse estudo é que “uma em cada cinco
mulheres com mais de 40 anos já abortou no Brasil”.
Uma conclusão reveladora é “[...] O fato é que mulheres
geralmente abortam quando desejam fazê-lo – com ou sem
lei, de forma segura ou não. Isso faz do aborto uma
questão de saúde pública. Mesmo assim, a legislação
sobre o tema segue estagnada no Brasil – e nada indica
que esse cenário vá mudar tão cedo”, conforme reconhece
a jornalista. Portanto, o que está muito claro aqui é
que, com ou sem legislação (mesmo sendo ela considerada
anacrônica por alguns setores da sociedade), a mulher
brasileira pratica o aborto em plena conformidade com o
seu livre-arbítrio.
Por sua vez, os países dão tratamento diferente ao
tempo-limite para a interrupção da gravidez. Por
exemplo, na Argentina o máximo permitido pela lei é até
a 14ª semana (terceiro mês), enquanto na Colômbia o
procedimento é autorizado até a 24ª (sexto mês).
Enquanto isso, na Europa, os prazos para a realização do
aborto são mais restritivos, chegando só até a 12ª
semana na maioria dos países. Apesar do primor
jornalístico do citado artigo, nenhuma palavra com
relação aos direitos do feto é dada. A ética
contemporânea não vislumbra a situação do indefeso ser
que habita o ventre da gestante. Quase nenhum direito é
dado a ele, a não ser o tempo-limite acima aludido à
realização do aborto. Não há uma visão interdisciplinar
suficientemente abrangente que leve também em
consideração o Espírito que anima aquele corpinho em
formação. Suas necessidades espirituais são
absolutamente desprezadas. O não raro confuso e
insipiente pragmatismo que permeia todas as esferas da
nossa atual organização societal não consegue ainda
implementar um olhar mais adiante dos interesses
exclusivamente materiais.
No entanto, as obrigações nesse particular estão
claramente delineadas há um bom tempo. A questão 880 d’O
Livro dos Espíritos, por exemplo, não deixa
dúvidas a respeito: “Qual
o primeiro de todos os direitos naturais do homem? O
de viver. Por isso é que ninguém tem o de atentar
contra a vida de seu semelhante, nem de fazer o que quer
que possa comprometer a existência corporal” (ênfase
minha). Já a cartilha intitulada Em
Defesa da Vida, produzida
pela Federação Espírita Brasileira, argumenta que “[...]
Enfim, todos aqueles capazes de compreender que a vida
humana transcende ao corpo físico e, que a causa da
existência não se restringe aos paradigmas
materialistas, concluirão que o nascituro (zigoto -
embrião - feto) não é uma coisa descartável, mas sim um
Ser Humano potencial, ou seja, uma Alma (Espírito unido
ao corpo em formação), que precisa de proteção, pois
assim como qualquer um de nós que tivemos a oportunidade
de nascer, ele tem o direito a viver”.
Enquanto a ignorância acerca das coisas do Espírito
persistir, as gestantes e os legisladores continuarão
tomando decisões equivocadas que provavelmente lhes
afetarão a consciência cedo ou tarde. Desse modo, é
imperioso avançar nesse sentido reconhecendo o direito à
vida do feto – aspecto crucial ainda negligenciado.
A mulher que carrega um ser em seu ventre tem uma enorme
responsabilidade. Mas se ela se sente impedida de cuidar
dessa criatura indefesa por alguma razão – apesar dos
enormes vínculos espirituais ou afetivos normalmente
subjacentes – melhor, então, abrir-lhe as portas à vida
material e, posteriormente, encaminhá-la a uma
instituição de acolhimento para que não haja mais agravo
à sua própria situação. Reconheço, todavia, que dar vida
a alguém exige sacrifícios que nem todos estão dispostos
a fazer. O quadro torna-se mais complexo ainda quando
envolve violência sexual. Na visão espírita, contudo,
“nada acontece por acaso”, pois “tudo tem uma razão de
ser”. No final, a Deus caberá o julgamento dos atos
praticados pela gestante considerando suas agravantes e
atenuantes.
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