Resgate do afastamento
Nos idos do final da década de 1990, este que vos
escreve estava em um grande anfiteatro para uma palestra
espírita muito requisitada. Casa cheia, gente em pé,
todos aguardando o início. Estava no segundo semestre de
um ano eleitoral e aproveitando-se daquela concentração
de pessoas, um senhor bem vestido, discretamente, ia
abordando as pessoas, distribuindo seu “santinho”, ou
seja, fazendo campanha eleitoral.
Ao ser cientificada desse fato, a organização do evento,
por meio de um representante, abeirou-se do microfone e
informou que a pessoa entregando os “santinhos” não
tinha relação nenhuma com o evento, e ao terminar essa
fala, foi efusivamente aplaudida pelo público presente,
ao tempo que o candidato saiu de fininho, envergonhado e
cabisbaixo. Jovem, me enchi de orgulho ao ver aquele
evento.
E nesses quase trinta anos, vi outros eventos memoráveis
nos quais o movimento espírita soube demarcar seu espaço
em relação ao poder governamental, vendo casas espíritas
recusando subvenções estatais para seus trabalhos
assistenciais, ou ainda, federativas recusando a
indicação, a pedido da secretaria de educação, de
professores para o ensino religioso de Espiritismo nas
escolas.
Percebia um ethos consensual de que como
movimento, como organização de caráter religioso,
tínhamos relações com o poder público como qualquer
agremiação, mas não poderíamos ter relações que nos
tornassem reféns do jogo político, estranho ao nosso metier,
ou que ferissem a laicidade do estado, um dos pilares da
democracia. Isso era muito bem entendido por todos, pelo
menos essa era a minha percepção. Percepção é
subjetividade.
E assim passamos eleições e eventos relevantes na vida
pública nacional, e não foram poucos da década de 1990
para cá, sem que isso afetasse as nossas pautas, nossos
eventos. Cada um tinha lá sua opção partidária, alguns
até militavam. De vez em quando, na cidade pequena,
alguém da casa espírita virava secretário de Saúde, mas
não porque era da casa espírita, mas por conta de suas
relações e da sua vida profissional e partidária.
Nossos atritos eram por questões de interpretações
doutrinárias e nossos temas tinham importância na
conduta cotidiana a luz da doutrina espírita e não
porque ele estava relacionado a um diploma legal ou a um
programa de governo. Seríamos omissos, ou respeitávamos
as diversas esferas da existência e os papeis sociais de
cada indivíduo?
Entretanto, com a chegada da internet e das redes
sociais, além de outros fatores ainda não totalmente
identificados, esses papéis antes estanques começaram a
ser percebidos de forma combinada e a persona no
trabalho começou a ser comparada publicamente com a
persona da esfera política e com a persona da esfera
familiar. Acabou a hipocrisia, diriam alguns. Pode ser?
O fato é que, ao cabo, as esferas da vida cotidiana se
misturaram. e nossos naipes de preferências, em especial
as políticas, passaram a ser objeto de conhecimento e
julgamento.
Ao mesmo tempo, fortaleceu-se a ideia de que
precisaríamos de candidatos para nos representar, talvez
para contrapor a presença de parlamentares de outras
denominações de forma crescente, talvez por conta da
própria popularização do Espiritismo, não na formalidade
do Censo do IBGE, mas como crença das pessoas em geral.
Um caldeirão de circunstâncias que causa uma certa
impressão atual de que, passados quase trinta anos,
talvez o distribuidor de “santinhos”, a depender da cor
do “santinho”, atualmente não ia ser advertido pela
organização do evento, e se fosse, ela não seria
aplaudida. Uma impressão calçada em algumas observações,
que nos conduzem a reflexões inadiáveis no ponto em que
nos encontramos dessa questão.
Talvez, não seria a hora de resgatar esse afastamento do
mundo de César? Necessitamos mesmo, em nossas
atividades, de candidatos que em suas plataformas
ostentem a adjetivação espírita? Carecemos de recursos
públicos em nossas atividades, mesmo as assistenciais?
Devemos permitir que a tribuna ou o evento espírita
sirva de propaganda eleitoral? Devemos estabelecer
limites formais éticos para nossos dirigentes que
decidam assumir carreiras políticas? São questionamentos
sobre situações hipotéticas e exageradas, mas que são
plausíveis.
Um pacote de indagações que tem respostas não só no
plano filosófico, mas também no plano concreto, pois não
é que o jogo político seja mau, mas ele tem regras
próprias de sobrevivência, financiamento e competição.
Ao nos vincularmos mais fortemente a esse jogo, ficamos
ao sabor de certos ventos, e podemos olhar para o lado,
para outras denominações, para ver um pouco dos
benefícios, mas também os possíveis prejuízos dessa
vinculação.
Saímos de nossa residência e vamos à casa espírita
estudar, trabalhar a nossa espiritualidade, realizar
ações de promoção social, encontrar nossos amigos. Para
que ali seja somente isso, e não um espaço para angariar
poder terreno, para mobilizar grupos com fins
eleitorais, para debates sobre candidatos e suas
propostas, coisas para quais temos espaços próprios para
isso, talvez devamos realmente fazer essa reflexão dos
limites em relação as atividades políticas, como
movimento, casas e indivíduos.
Não se trata de ser apolítico ou de se omitir da
discussão de temas relevantes para a vida social. A
doutrina, desde 1857, sempre discutiu questões
importantes da sociedade à luz de seus pressupostos. Não
sei é se precisamos que os espaços da sociedade para
discutir os seus problemas, os partidos políticos,
invadam nossos espaços, interessados em obter a nossa
filiação. Não fazemos isso com eles, indo lá colher
prosélitos para o Espiritismo.
Um tema árido, mas toda essa mudança percebida nessa
temática enseja realmente o debate maduro e a reflexão,
e este texto, como tantos outros, é uma tentativa de
contribuir com essas questões. Se esse for o caminho,
que se saiba o que se está fazendo, o porquê e os
possíveis riscos advindos. E que se estabeleçam
parâmetros consensuados para certas relações. Não
podemos é achar que tudo é bom e bater palmas, de forma
diferente do evento da década de 1990.
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