Provar e expiar: eis as questões
O capítulo 3 de O Evangelho Segundo o
Espiritismo, terceira obra organizada por
Allan Kardec, fala sobre as diferentes
categorias de mundos habitados. Uma revelação e
tanto para os que não acreditavam em vida em
outros planetas. E isso no século 19! Imaginemos
a polêmica.
Para incrementar ainda mais a questão, Kardec
fundamenta seus argumentos numa passagem do Novo
Testamento. Mais precisamente, no Evangelho de
João, cap. 13, versículos 1 a 3. Nesse trecho,
Jesus Cristo afirma: “Há muitas moradas na casa
de meu Pai”. Aprofundando o assunto, a obra
esclarece que existem cinco categorias de mundos
habitados: primitivos, de provas e expiações,
regeneradores, felizes e perfeitos.
Os mundos primitivos pertencem a uma etapa que
já superamos. Vide a era em que o planeta foi
habitado por dinossauros e pelos chamados homens
das cavernas. Não me deterei nos mundos felizes
e nos mundos perfeitos por um simples motivo:
ainda não chegamos lá. Por isso, nem eu nem
ninguém tem como falar a respeito. Seria o mesmo
que pedir para um aluno do ensino fundamental
discorrer sobre o currículo do doutorado.
Os mundos regeneradores são a próxima etapa na
qual a humanidade entrará. Sobre eles, O
Evangelho Segundo o Espiritismo dá muitas
pistas. Por exemplo, quando diz que servem de
transição entre os mundos de provas e expiação e
as duas etapas seguintes, que englobam os
planetas de vibração bem superior. Nessas
paragens regeneradoras, embora ainda sujeitos às
leis da matéria, teremos o ensejo de nos
refazermos das lutas acerbas impostas pelo
estágio em que nos encontramos e, de forma um
pouco mais tranquila, sem grandes sobressaltos,
depurarmo-nos, a fim de nos prepararmos para
voos maiores.
Falemos, no entanto, sobre os mundos de provas e
expiações, que são o tema deste artigo. Trata-se
de um estágio que conhecemos muito bem, já que
estamos imersos nele. Sim, a Terra é um mundo de
provas e expiações; um local no qual, apesar de
já termos caminhado bastante, ainda temos um
longo percurso de aprendizado, a fim de nos
despojarmos de orgulho, egoísmo, ganância,
belicosidade, inveja, despotismo, tirania,
vaidade, ignorância, violência, entre outros
itens que nos fazem ficar batendo cabeça uns nos
outros e tumultuando a vida social, política,
ambiental etc. Estamos, portanto, num planeta
onde o mal ainda predomina, e por nossa causa!
No entanto, será também por nossa causa que este
mundo se transformará, cedo ou tarde, numa terra
regenerada, na qual o que plantarmos resultará
em colheitas fartas de boas novas individuais e
coletivas.
Os dicionários explicam que a palavra expiação é
o ato ou efeito de expiar, isto é, purificar-se
das culpas, seja por meio de um sacrifício, do
cumprimento de uma pena ou enfrentando
determinados percalços a fim de nos redimirmos
de erros cometidos. Analisando tais definições à
luz dos pressupostos espíritas, se, por exemplo,
nos deparamos com parentes difíceis, conflitos
existenciais, enfermidades renitentes,
frustrações afetivas ou profissionais etc.,
podemos estar sofrendo as consequências de
delitos cometidos em vidas passadas, acertando
as contas com quem prejudicamos e ficando quites
com nós mesmos também. Já o escritor e
psiquiatra espírita Alírio de Cerqueira Filho,
no livro Parábolas Terapêuticas, volume
2, chega à seguinte conclusão ao analisar a
etimologia da palavra expiação: o “ex” seria de
algo externo e o “pia” viria de piedade (pia é
sinônimo de bondosa). Dessa forma, expiar seria
passarmos por variadas dificuldades a fim de que
nossa pureza (ou seja, as virtudes, que estão
encobertas por uma grossa camada de
imperfeições) possa vir à tona.
Já a prova, palavra utilizada tão
corriqueiramente por nós, diz respeito às
situações a que somos constantemente submetidos
a fim de sermos testados. Pode aparecer na forma
de um processo seletivo para conseguirmos aquele
tão almejado trabalho, na hora em que somos
chamados para conversar com a direção da escola
porque nosso filho aprontou, na paciência que um
longo tratamento médico exigirá de nós, ante a
morte de uma pessoa querida ou até mesmo no
momento de lidar com um processo expiatório.
Afinal, como diz o já citado capítulo 3, “a
expiação é sempre uma prova, mas nem sempre a
prova é uma expiação”. Em suma: há situações
corriqueiras que testam nossos limites, mas não
têm a ver com resgate de débitos pretéritos. São
coisas inerentes a este mundo imperfeito. São
provas, mas não são expiações. Em contrapartida,
todo processo expiatório, além de servir para
depurar nosso caráter, acaba servindo também de
prova, desde que saibamos aproveitar a
experiência para amadurecer e, por conseguinte,
tirarmos uma boa nota na prova.
O espírito Cairbar Schutel tece considerações
bem pertinentes acerca das provas no livro Reforma
Íntima: a evolução em fase regenerativa (psicografia:
Abel e Adriana Glaser). Nele, os médiuns
perguntam sobre vários assuntos e Cairbar
responde. Em dado momento, surge a seguinte
questão: “A homossexualidade é uma prova?” O
Bandeirante do Espiritismo, com muita
propriedade, explica que, neste mundo, tudo é
uma prova. Ser gay, heterossexual, bissexual...
Ser gordo, magro, alto ou baixo. Ser rico, pobre
ou classe média. Ser bonito, feio, muito bonito
ou muito feio. Ser negro, branco, amarelo,
indígena... Ser solteiro, casado, viúvo ou
divorciado. Ser homem, mulher, criança,
adolescente, jovem, maduro ou idoso. Ser
carteiro, político, empresário, médico,
encanador, advogado, marceneiro, professor,
motorista, fisioterapeuta, chef de cozinha...
Enfim: tudo é uma prova! Todos, os dias, quando
acordamos, somos convocados a provar que podemos
dar conta das questões inerentes ao nosso sexo,
profissão, estado civil, núcleo familiar,
orientação sexual, raça, classe social...
Sempre pensei que, ao falar ou escrever sobre
provas e expiações, a segunda seria sempre a
mais complexa. Aliás, é sempre sobre as
expiações que os espíritas se debruçam mais,
pois elas dizem respeito às consequências de
ações e decisões equivocadas que tomamos no
pretérito. Sobre as provas, geralmente dizemos
que temos de provar a nós mesmos que temos
capacidade para lidar com algum problema ou
superar dada situação. São as nossas provas ou
provações como costumamos dizer. No entanto, o
verso a seguir, da autoria da poetisa brasileira
Cecília Meireles, me fez enxergar as provas sob
uma nova perspectiva:
“Provação. Agora eu entendo o que é provação.
Provação significa que a vida está me provando.
Mas provação significa também que estou
provando. E provar pode se transformar numa sede
cada vez mais insaciável.”
Nunca havia parado para pensar que também
estamos provando da vida, e isso também tem a
ver com as provas a que Kardec se refere. E ao
pensar a respeito, um amplo leque de indagações
se abre.
Quando criança, lia muitas histórias em
quadrinhos, os populares gibis. Em um deles, um
personagem era protagonista de uma campanha
publicitária que dizia “Torta de quiabo: não
provei e não gostei”. Quando o público viu o
“outdoor” com tal frase, ficou indignado e saiu
para comprar as tortas de quiabo, que viraram um
sucesso de vendas. Quantas vezes somos levados a
provar quitutes ou situações que pensávamos ser
ruins e descobrimos, após a prova, que estávamos
enganados e que já podíamos estar usufruindo de
algo prazeroso ou gratificante há mais tempo? Ao
mesmo tempo, quantas coisas viciantes provamos e
que acabam por nos levar a caminhos tortuosos e
doloridos? As drogas lícitas e ilícitas que o
digam! É a “sede insaciável”, à qual se refere
Cecília Meireles.
Só que esta sede também pode se referir à sede
de democracia, justiça social, conhecimento,
respeito e outros tantos itens que fazem uma
falta danada para boa parte da população, que
quer provar disso tudo e não tem chance. Motivo:
uma minoria, que provou e se embriagou de
ganância, soberba, poder, velhacaria e
congêneres, concentra as riquezas e os
privilégios nas próprias mãos. Resultado: muita
gente fica sem ter a possibilidade de provar o
que é se valer da matéria para evoluir de forma
digna. Por isso, muitas vezes, provam da
revolta, da amargura, da criminalidade, da
miséria e temos a injusta realidade social que
tanto nos infelicita. Aí, os que provaram das
facilidades materiais e não quiseram dividir a
experiência verão essa prova se transformar em
expiação, cedo ou tarde. Notaram que, nesses
casos, nem opressores e oprimidos estão provando
de uma vida em plenitude? Os primeiros, por
falta de acesso; os segundos porque o orgulho os
transformou em seres desprovidos de empatia.
Sendo assim, creio que, quando Allan Kardec fala
sobre mundo de provas e expiações, provar pode
ser muito mais complexo do que imaginamos. Temos
de provar que somos capazes, corajosos,
perseverantes, assertivos, misericordiosos,
indulgentes, justos; provar do gosto que as
sombras e luzes da vida material possuem e
provar o que seremos capazes de fazer quando
provarmos dessa variada gama de sabores doces,
salgados, azedos e amargos. Esta prova pode
significar evitarmos (ou não) novas provações.
Bibliografia:
1. CERQUEIRA
FILHO, Alírio de – Parábolas terapêuticas,
volume 2, 2ª edição, 2014, Editora Espiritizar,
Cuiabá, MT.
2. GLASER,
Abel; Glaser, Adriana – Reforma íntima: a
evolução em fase regenerativa, 1ª
edição, 2018, Casa Editora O Clarim, Matão, SP.
3. KARDEC,
Allan – O Evangelho Segundo o Espiritismo,
2ª edição, 2018, Federação Espírita Brasileira
(FEB), Brasília, DF.