O mito da neutralidade mediúnica
Foram precisos 165 anos para compreendermos a máxima
kardequiana “os espíritos são, apenas, as almas dos
homens...”
Depois da obra sui generis “Contextualizando Kardec”, o
insigne pesquisador espírita Elias Moraes lança sua mais
nova obra, ainda no prelo, sobre “O processo mediúnico,
suas possibilidades e limites na produção do
conhecimento espírita”. Seguindo a mesma linha do
primeiro, esse novo livro toca em assuntos provocativos,
polêmicos embora necessários ao estudo doutrinário à luz
de um diálogo contemporâneo com a ciência atual.
Se, conforme o nobre codificador nos adverte, os
espíritos são as almas dos homens, isso toca num aspecto
da mediunidade que foi, durante décadas, intocável e
inquestionável por ter sido “vestido” de tabus e dogmas.
Uma ortodoxia kardecista que surge de uma leitura
própria do movimento espírita atual porque nem o
codificador pensava um espiritismo estático no tempo e
no espaço quando ele próprio propõe o caráter
“progressivo” da doutrina no livro Obras Póstumas.
Fruto de um religiosismo predominante (catecismo
espírita) em detrimento dos aspectos filosóficos e
científicos, a mediunidade como “faculdade ontogenética”
sem vinculação moral sempre foi sacralizada pelos leigos
e estudiosos e “analisada” canonicamente, mantendo vivo
uma “sobrenaturalidade” do fenômeno em desacordo com a
proposta espírita na codificação, em que tanto Kardec
quando os Espíritos veneráveis tentam desmistificar a
mediunidade e naturalizá-la, mostrando-a como “mais uma
faculdade humana” sem qualquer caráter esotérico e
mágico.
N’ O Livro dos Médiuns, o prof. Rivail, usando de
sua didática pestalozziana, assim como tinha criado
neologismos lexicais dentro da gramática francesa,
comenta algo muito instigante sobre o produto dos
médiuns. Ele dirá que “a ideia é do espírito, mas a
palavra é do médium”.
Durante séculos, acreditou-se que a palavra seria “uma
coisa” suspensa no ar, incolor, impessoal, translúcida,
mero veículo de ideias. Com o advento das ciências
linguísticas (Chomsky, Saussure, Wittgenstein, Steven
Pinker, Eusen Rosenstock Hussey, Nietzsche et al.)
percebeu-se que a “palavra” é um signo com seu bioma
semiótico próprio. Todo signo surge dentro de uma rede
de significados e significantes, ou seja, a ideia do
espírito sofre toda a influência sociocultural,
neurossemântica e temporal do médium, já que é a
“palavra” do médium que reveste os conceitos dos
desencarnados.
Lendo a obra do admirável Elias Moraes, compreendemos
que o movimento espírita desumanizou o fenômeno
mediúnico e manteve o caráter místico, tão comum nos
intercâmbios espiritualistas do passado, desde a Índia
até a Grécia, onde as pitonisas eram consideradas seres
especiais, portadores de dons divinos.
Se as mensagens psicográficas e psicofônicas não
expressam “a verdade”, mas uma “interpretação” da
verdade, por intermédio de espíritos e médiuns, torna
mais responsável de quem veicula tais “cartas” o cuidado
com seu conteúdo, haja vista que nessa produção podem
existir, e deveras existem, os valores, os conceitos e
falsos conceitos, os preconceitos, a ideologia do médium
e dos desencarnados.
E isso não é a exceção, mas a regra, já que tanto o
médium, tanto quanto o espírito comunicante, é um “signo
autoconsciente” que vive e viveu dentro de um contexto
etimológico cultural, psicológico, econômico e político.
Na obra, Elias Moraes mostra através de riqueza de
exemplos dentro da literatura mediúnica como as
comunicações carregam o “caldo cultural” daquele momento
e, na medida em que expressam os valores dos espíritos
desencarnados, também tingem as informações com as
tintas ideológicas dos espíritos encarnados (médiuns).
Isso não leva ao descrédito da mediunidade, muito pelo
contrário. À luz de uma antropologia espírita, mostra
que, sendo a mediunidade um fenômeno ”humano” dos dois
lados da dimensão da matéria, tais escritos são
enriquecidos por um olhar dialético onde os termos,
léxicos, tons significantes são um “revestimento”
inerente aos discursos dos espíritos que seguem sua
marcha evolutiva, aprendendo dentro do entorno que
transitam sem negar a realidade em que estariam
inseridos mesmo no além.
O espírito ao desencarnar não sofre uma metamorfose!
Maria, no além túmulo, continua Maria.
João, no além, continua João.
A morte não transforma os espíritos, logo eles continuam
no plano espiritual com suas cosmovisões e teodiceias
pessoais, institucionais e planetárias. Esse olhar que a
obra do autor Elias Moraes nos oferece enriquece o
estudo doutrinário da mediunidade porque, se são
espíritos que se comunicam e não personalidades
anímicas, personagens do imaginário coletivo ou
arquétipos do inconsciente social, logo junto com suas
falas e discursos psicografados, trarão seu caráter
humano, nem sempre aceito por grupos espíritas
edificados sobre pilares ortodoxos, mas em consonância
com os princípios kardecistas.
Esse olhar “humanizante” da mediunidade, do caráter
social dos médiuns e seus espíritos, abre um seminal
diálogo entre doutrina e ciência atual. Kardec anunciou
que “o espírito nada teme da ciência, porque se algo for
ser comprovado, o espiritismo segue a ciência...”
Espiritismo é religião, filosofia e ciência. Já era hora
de uma abordagem “científica” e social do fenômeno
medianímico. Cada produção mediúnica é a ponta visível e
diminuta, diria Sigmund Freud, de um imenso, submerso e
invisível iceberg conceitual. Toda produção
humana surge dentro de um “ecossistema” cultural. Com a
mediunidade não seria diferente. Segundo os
epistemólogos Peter Berger e Thomas Luckman, construímos
socialmente nossa realidade. Realidade essa como um
construto intersubjetivo no aquém da matéria densa e no
além da matéria etérea. Todo ponto de vista é visto de
um ponto. Assim como existem as sociedades dos
encarnados, existem as sociedades dos desencarnados.
Cada espírito está em seu “lugar de fala”. Dessa
interação que surge toda a atividade espiritista tem
como lema: Fora da caridade não há salvação.
Com a compreensão dessa etiologia social da mediunidade,
urge maior responsabilidade, zelo, rigor metodológico,
bom senso ao acolher essas comunicações seguindo a
postura do codificador, que sempre analisou
racionalmente cada mensagem e por várias vezes,
informação trazida recentemente nas cartas de Canuto
Abreu. Kardec discordava, questionava e até corrigia os
espíritos quando sentia a necessidade de elaborar uma
explicação mais apropriada e intuía possíveis equívocos
nos discursos dos espíritos. Na Revista Espírita, Kardec
corrige e descarta, em vários momentos, as mensagens dos
desencarnados, e hoje, com os estudos do pesquisador
Elias Moraes, conseguimos entender profundamente os
motivos.
O codificador já sabia que “toda mensagem espiritual”
deve ser analisada, comparada com outras, na busca de
uma universalidade de ensinos e tentando encontrar
lógica no conteúdo. Até hoje, alguns estudiosos
doutrinários não entendiam como um “encarnado” poderia
corrigir, discordar dos espíritos superiores. Agora,
depois dessa obra, ficaram claras as razões dele. Toda
produção mediúnica é produto social e como tal merece
ser revista, questionada, analisada, corrigida e
descartada caso necessário. É melhor negar dez verdades
do que admitir uma mentira.
Elias Moraes atualizou o pensamento de Kardec que estava
soterrado sob discursos igrejistas e místicos, vestindo
a “ideia” do codificador com sua “palavra” sociológica e
empírica.
Quem tiver olhos de ver, que veja.
Quem tiver ouvidos de ouvir, que ouça.
João Márcio F. Cruz, autor e palestrante
espírita, reside em Canindé-CE.
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