Como me
posso negar?
Dizia a todos: Se alguém
quer vir após mim, a si
mesmo se negue, dia a
dia tome a sua cruz e
siga-me. Pois quem
quiser salvar a sua vida
perdê-la-á; quem perder
a vida por minha causa,
esse a salvará. Que
aproveita ao homem
ganhar o mundo inteiro,
se vier a perder-se ou a
causar dano a si mesmo? Lucas
9:23-25
O Mestre convidou-nos a
negarmo-nos, o que quis
Ele dizer com isto?
Negarmo-nos leva-nos a
uma profundidade enorme
do ser, um sítio onde
nunca tivemos. Como
podemos nós negarmo-nos?
Para percebermos esta
passagem do Mestre temos
de meditar numa das
maiores e mais antigas
questões humanas, o que
sou eu?
No século XVII Descartes
afirma “quando penso
logo existo”, quando
procurava entender sobre
o que somos, deixando
para a parte psicológica
a construção do ser.
O corpo ou a parte
biológica é idêntica em
todos nós. É composto
pelos mesmos órgãos e
funcionam de forma
idêntica. O que nos
diferencia uns dos
outros é a parte mental,
que nos caracteriza como
ser. Uma família que
mora na mesma casa,
influenciando-se uns aos
outros, educando-se, são
todos diferentes e a
diferença é na parte de
caracter ou psicológica.
Descartes faz uma
afirmação um pouco mais
profunda, ele afirma que
quando existe o
pensamento, ele existe.
Se formos ver a
psicologia, esta afirma
que a parte mental forma
o Ego que é o “Eu”, isto
de uma forma muito
simples.
A pergunta que faria a
Descartes é: e o que
existe se não penso?
O pensamento é constante
em nossa vida, se tentar
ficar um minuto sem
pensar, perceberá que ao
fim de 15 segundos, no
máximo, já surgiu o
primeiro pensamento e
depois é um turbilhão.
Nós, seres psicológicos,
fomos formados por esses
pensamentos, que na
maioria não tivemos
escolha, surgem de forma
automatizada. Se acha
estranho o que lhe estou
a dizer, experimente a
ficar um pouco sem
pensar e perceberá como
é uma tarefa impossível,
para a maioria de nós.
A língua que falamos é
um acumular de
pensamentos ou ideias, a
que chamamos de
conhecimento, que foi
arquivado em nosso
cérebro. Se alguém nos
falar numa língua
desconhecida, não
entenderemos nada, pois
não temos esse
conhecimento.
Mesmo na mesma língua,
se a palavra for usada
de forma diferente, nós
não entenderemos de
forma correta o que a
pessoa nos quer
transmitir.
Nós somos o nosso
conhecimento e agimos
através deste, a isso
chamamos de caracter.
A forma como agimos, os
vícios que temos, os
desejos que alimentamos,
as coisas que damos
importância, formam o
nosso caracter que foi
construído ao longo dos
anos e vai alterando
constantemente, conforme
vamos conhecendo novas e
substituindo a velha
forma de estar.
Por isso Descartes
afirma que “quando penso
logo “eu” existo”.
O maior dos apegos que
temos é a este ser
terreno, ele próprio é o
tesouro da terra que a
traça irá roer. Este ser
está condenado a morte,
pois ele não sobrevive.
Sei que esta última
afirmação é assustadora
e confusa pois foi
ensinado que a morte não
existe. Mas ela existe,
reparem na afirmação de
Jesus no início do
texto, que quem quiser
salvar a vida
perdê-la-á. Não vos
parece que isto é a
morte?
Vocês recordam-se das
vossas vidas anteriores?
Quantos personagens já
fomos que desapareceram?
Quando Jesus nos diz que
temos que nos negar, não
nos está a pedir que nos
suicidemos, nem sequer
coloca a vida do corpo
em questão. Ele
aconselha-nos a negar o
ser que somos, o ser
individual formado pelo
caracter que tem em
comum a todos nós as más
tendências.
Tudo o que nasce do
pensamento, leva
obrigatoriamente o “Eu”
atrás, a individualidade
criada de forma mental,
logo acontecerá a
confusão e o conflito.
Este conflito, que
acontece com o outro por
diferente forma de
pensar ou “ver as
coisas”, também acontece
connosco, por nos
dividirmos mentalmente e
fazermos autênticas
guerras interiores.
Recordam-se da frase de
Descartes? Quando penso
logo existo.
Mas é um facto também
que quando temos
pequenos segundos de
silencio do pensamento
não deixamos de existir,
por isso colocaria a
questão de, quando não
penso quem existe?
Quando não pensamos tem
que existir um silencio
profundo, pois toda a
barulheira mental parou.
O primeiro conselho
sobre a oração que Jesus
nos deixa é para nos
recolhermos aos nossos
aposentos e
permanecermos em
silêncio, que nosso Pai
em silêncio escuta.
Cristo orienta-nos a
deixarmos de existir,
abandonando o ser
psíquico criado pelo
pensamento, para
chegarmos a Deus.
Já faz mais sentido a
orientação para nos
negarmos? Na verdade,
estamos a negar a parte
de nós que nos tem dado
tantos problemas com os
outros e connosco
próprio, a estrutura a
que a psicologia chama
de Ego.
No silêncio mental
permanecemos sem
desejos, sem vícios, sem
hábitos, prontos para
viver a vida a cada
momento, “dançarmos”
enquanto toca a “Vida”
que não é comandada por
nós, mas apresentada no
dia a dia. Como diz
Cristo “dia a dia tome a
sua cruz e siga-me”.
“Pois quem quiser salvar
a sua vida”, ou seja,
este ser de certos e
errados que tenta ser
maior que o movimento da
vida, vivendo frustrado
por tudo o que lhe
acontece, “perdê-la-á”,
tal como perdemos todos
os personagens que
acreditamos ser e
lutamos por eles, em
reencarnações passadas.
“Mas quem perder a
vida”, ou seja, abdicar
desta construção mental
que está condenada e
luta com todos e consigo
própria, por simples fé,
seguindo o exemplo do
Mestre, acaba por
encontrar o Reino de
Deus ou o ser eterno
antes do corpo morrer,
como quiser chamar, e
este ser que é eterno
“viverá”.
Esta é a busca do Reino
de Deus.
O autor
reside na cidade de
Lubango, Angola.
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