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por Bruno Abreu

 

Como me posso negar?


Dizia a todos: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, dia a dia tome a sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; quem perder a vida por minha causa, esse a salvará. Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder-se ou a causar dano a si mesmo?
 Lucas 9:23-25     


O Mestre convidou-nos a negarmo-nos, o que quis Ele dizer com isto?

Negarmo-nos leva-nos a uma profundidade enorme do ser, um sítio onde nunca tivemos. Como podemos nós negarmo-nos?

Para percebermos esta passagem do Mestre temos de meditar numa das maiores e mais antigas questões humanas, o que sou eu?

No século XVII Descartes afirma “quando penso logo existo”, quando procurava entender sobre o que somos, deixando para a parte psicológica a construção do ser.

O corpo ou a parte biológica é idêntica em todos nós. É composto pelos mesmos órgãos e funcionam de forma idêntica. O que nos diferencia uns dos outros é a parte mental, que nos caracteriza como ser. Uma família que mora na mesma casa, influenciando-se uns aos outros, educando-se, são todos diferentes e a diferença é na parte de caracter ou psicológica.

Descartes faz uma afirmação um pouco mais profunda, ele afirma que quando existe o pensamento, ele existe. Se formos ver a psicologia, esta afirma que a parte mental forma o Ego que é o “Eu”, isto de uma forma muito simples.

A pergunta que faria a Descartes é: e o que existe se não penso?

O pensamento é constante em nossa vida, se tentar ficar um minuto sem pensar, perceberá que ao fim de 15 segundos, no máximo, já surgiu o primeiro pensamento e depois é um turbilhão.

Nós, seres psicológicos, fomos formados por esses pensamentos, que na maioria não tivemos escolha, surgem de forma automatizada. Se acha estranho o que lhe estou a dizer, experimente a ficar um pouco sem pensar e perceberá como é uma tarefa impossível, para a maioria de nós.

A língua que falamos é um acumular de pensamentos ou ideias, a que chamamos de conhecimento, que foi arquivado em nosso cérebro. Se alguém nos falar numa língua desconhecida, não entenderemos nada, pois não temos esse conhecimento.

Mesmo na mesma língua, se a palavra for usada de forma diferente, nós não entenderemos de forma correta o que a pessoa nos quer transmitir.

Nós somos o nosso conhecimento e agimos através deste, a isso chamamos de caracter.

A forma como agimos, os vícios que temos, os desejos que alimentamos, as coisas que damos importância, formam o nosso caracter que foi construído ao longo dos anos e vai alterando constantemente, conforme vamos conhecendo novas e substituindo a velha forma de estar.

Por isso Descartes afirma que “quando penso logo “eu” existo”.

O maior dos apegos que temos é a este ser terreno, ele próprio é o tesouro da terra que a traça irá roer. Este ser está condenado a morte, pois ele não sobrevive.

Sei que esta última afirmação é assustadora e confusa pois foi ensinado que a morte não existe. Mas ela existe, reparem na afirmação de Jesus no início do texto, que quem quiser salvar a vida perdê-la-á. Não vos parece que isto é a morte?

Vocês recordam-se das vossas vidas anteriores? Quantos personagens já fomos que desapareceram?

Quando Jesus nos diz que temos que nos negar, não nos está a pedir que nos suicidemos, nem sequer coloca a vida do corpo em questão.  Ele aconselha-nos a negar o ser que somos, o ser individual formado pelo caracter que tem em comum a todos nós as más tendências.

Tudo o que nasce do pensamento, leva obrigatoriamente o “Eu” atrás, a individualidade criada de forma mental, logo acontecerá a confusão e o conflito. Este conflito, que acontece com o outro por diferente forma de pensar ou “ver as coisas”, também acontece connosco, por nos dividirmos mentalmente e fazermos autênticas guerras interiores.

Recordam-se da frase de Descartes? Quando penso logo existo.

Mas é um facto também que quando temos pequenos segundos de silencio do pensamento não deixamos de existir, por isso colocaria a questão de, quando não penso quem existe?

Quando não pensamos tem que existir um silencio profundo, pois toda a barulheira mental parou. O primeiro conselho sobre a oração que Jesus nos deixa é para nos recolhermos aos nossos aposentos e permanecermos em silêncio, que nosso Pai em silêncio escuta.

Cristo orienta-nos a deixarmos de existir, abandonando o ser psíquico criado pelo pensamento, para chegarmos a Deus.

Já faz mais sentido a orientação para nos negarmos? Na verdade, estamos a negar a parte de nós que nos tem dado tantos problemas com os outros e connosco próprio, a estrutura a que a psicologia chama de Ego.

No silêncio mental permanecemos sem desejos, sem vícios, sem hábitos, prontos para viver a vida a cada momento, “dançarmos” enquanto toca a “Vida” que não é comandada por nós, mas apresentada no dia a dia.  Como diz Cristo “dia a dia tome a sua cruz e siga-me”.

“Pois quem quiser salvar a sua vida”, ou seja, este ser de certos e errados que tenta ser maior que o movimento da vida, vivendo frustrado por tudo o que lhe acontece, “perdê-la-á”, tal como perdemos todos os personagens que acreditamos ser e lutamos por eles, em reencarnações passadas. “Mas quem perder a vida”, ou seja, abdicar desta construção mental que está condenada e luta com todos e consigo própria, por simples fé, seguindo o exemplo do Mestre, acaba por encontrar o Reino de Deus ou o ser eterno antes do corpo morrer, como quiser chamar, e este ser que é eterno “viverá”.

Esta é a busca do Reino de Deus.

 

O autor reside na cidade de Lubango, Angola. 

 
 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita