A metáfora da caixa de bombons
Quando nos deparamos com uma caixa de bombons
sortidos, após nos deliciarmos com os que
consideramos mais saborosos, nos restam os
outros, os menos saborosos: o que fazermos com
eles? Jogamos fora ou os devoramos, mesmo sem
apreciá-los?
A metáfora se aplica à obrigatoriedade de, ao
nos considerarmos espíritas, sermos “obrigados”
a aceitar tudo o que os espíritas
tradicionalmente consideram como princípios
doutrinários do Espiritismo. Esse problema nos
foi apresentado recentemente por um colega
médico, leitor das obras de Kardec, e se
relacionava especificamente à visão de Deus
proposta pela Doutrina espírita.
Anteriormente, um primo já desencarnado, me
colocara a complicada questão:
– Posso ser espírita sem acreditar em Deus?
Disse-me, então, o facultativo amigo: “aceito a
divindade como a inteligência suprema, mas não
posso aceitá-la como a bondade e o amor
supremos”. Ele se referia especificamente ao
sofrimento humano, muito próximo de sua
atividade profissional, na condição de médico.
Alguns problemas colocados por ele:
1- Deus exige de seus filhos um esforço e uma
porfia repleta de percalços, que ele próprio
nunca viveu. Considerando que Deus sempre foi
Deus, o seu status não foi resultado do esforço
pessoal.
Gustavo Geley, pelo motivo acima, mostrou-se
simpático a uma espécie de panteísmo:
[...] a
propósito dessas magníficas concepções
panteístas, não quero deixar de citar aqui
algumas belas palavras de Marius George
(Humanidade Integral), janeiro de 1896:
“Parodiando uma frase célebre, eu disse uma vez:
– Sou homem e tudo o que se relaciona com os
homens me interessa; mas o que não se referisse
ao destino dos meus semelhantes não me poderia
interessar. Se há um ou mais deuses, anjos ou
arcanjos que jamais conheceram o esforço, a luta
e o sofrimento; que nunca atravessaram a noite
angustiosa da ignorância, estes seres, que nada
têm de humano, não me interessam para nada. Como
seres superiores ou meus irmãos maiores e por
muito altos que estejam na sua glória, eu não
posso, nem quero honrá-los mais do que aos seres
que têm vivido as nossas próprias misérias e
que, pequenos como nós, souberam elevar-se à
força de amor, de luta e de sofrimento”.[i]
2- A dor está no DNA da evolução, e não existe
apenas como resultado da lei de causa e efeito.
Sofre-se para nascer, crescer, gerar filhos,
envelhecer, vendo os entes queridos partindo
pela porta da desencarnação, para morrer etc. Um
deus de amor, sendo a inteligência suprema,
poderia criar outra dinâmica evolucionária, que
não essa!
3- O sofrimento expiatório não poupa ninguém:
são atingidos o bebê recém-nascido e o idoso de
mais de 90 anos. Até a falível lei humana poupa
certos réus em decorrência da idade ou outros
fatores.
4- Até mesmo os que oferecem a existência para
falar dele e louvá-lo são atingidos com a mesma
dose de sofrimento.
Segundo uma
lenda, Santa
Teresa de Ávila estava indo de burro até um dos
conventos da ordem carmelita, quando o burro
achou por bem derrubá-la em plena lama. Além de
se sujar toda, ela ainda machucou a perna. Ela
então olhou para o céu e disse a Deus, com quem
tinha grande intimidade filial: “Senhor, que
bela hora para acontecer isto! Por que deixastes
isso acontecer?”
Uma voz do Céu lhe respondeu: “É assim que trato
os meus amigos!”
A santa mística retrucou no ato: “Se é assim que
tratais os Vossos amigos, não me admira que
tenhais tão poucos!”[ii]
Mas, após suas observações, perguntou-me:
– E você, Ricardo, não se incomoda com isso?
Respondi-lhe evocando Simone Weil, a pensadora
francesa, morta em 1943:
Desde a adolescência eu achava que o problema de
Deus é um problema cujos dados estão faltando
aqui embaixo e que o único método eficiente para
evitar resolvê-lo de maneira errada, o que me
parecia ser o maior mal possível, era não
perguntando. Parecia-me inútil resolver esse
problema, pois eu pensava que, estando nesse
mundo, cabe a nós adotar a melhor atitude
possível para com os problemas dele, e que essa
atitude não dependia da solução do problema de
Deus.
E acrescenta:
Deus só pode estar presente aqui embaixo em
segredo. [iii]
Pascal, que além de matemático foi filósofo,
acreditava não ser possível, com a razão, provar
a fé em Deus, nem sequer Deus. Pascal recusava
as tradicionais provas da existência de Deus.
Daí seu renomado pensamento: o
coração tem razões que a própria razão
desconhece.[iv]
Léon Denis, cerca de quarenta anos antes de
Simone Weil, opinou:
Pode-se levar mais além do que fizemos a
definição de Deus? Definir é limitar. Em face
desse grande problema, a humana fraqueza
aparece. Deus se impõe ao nosso espírito, mas
escapa a qualquer análise. O Ser que preenche o
tempo e o Espaço não será jamais medido por
seres que o tempo e o Espaço limitam. Querer
definir Deus, seria procurar vê-lo e quase
negá-lo.
As causas secundárias da vida universal se
explicam, mas a causa primária permanece
intocável na sua imensidade. Só chegaremos a
compreendê-la depois de ter atravessado muitas
vezes a morte.
Tudo o que podemos dizer para resumir é que Deus
é a vida, a razão, a consciência, na sua
plenitude. Ele é a causa eternamente ativa de
tudo o que é, a comunhão universal onde cada ser
vem haurir a existência para, em seguida,
concorrer, na medida das suas faculdades
crescentes e de sua elevação, à harmonia do
conjunto. [v]
O pastor Caio Fábio, referindo-se à
impossibilidade cognitiva de examinar Deus,
prefere dizer que Deus é, em vez de Deus
existe. Segundo ele, a existência pressupõe
começo, meio e fim, e nem isso se aplica a Deus.
Ante a insistência de Kardec em melhor
compreender os mistérios de Deus, os Espíritos
foram enfáticos ao esclarecê-lo quanto à
impossibilidade de tal cometimento, convidando-o
a estudar mais fortemente questões possíveis e
afeitas à nossa maior necessidade, o progresso
intelecto-moral.[vi]
Diante do exposto, o melhor, por ora, disse-lhe,
é não pensar sobre isso! Deus existe, porque a
outra opção é muito mais absurda que essa.
Acreditar que o acaso deu conta de produzir
coisas de tamanha complexidade como o universo,
a vida e a criatura humana é racionalmente
impensável.
E, numa heterodoxia alucinatória, ousei resumir
o capítulo primeiro d'O Livro dos
Espíritos em três pensamentos:
1- Deus é.
2- Melhor não defini-lo, pois definir é limitar.
3- Qualquer conjectura a seu respeito é pura
loucura.
[i] Resumo
da doutrina espírita.
[vi] O
livro dos espíritos, item 14.