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por Ricardo Baesso de Oliveira

 

A metáfora da caixa de bombons


Quando nos deparamos com uma caixa de bombons sortidos, após nos deliciarmos com os que consideramos mais saborosos, nos restam os outros, os menos saborosos: o que fazermos com eles? Jogamos fora ou os devoramos, mesmo sem apreciá-los?

A metáfora se aplica à obrigatoriedade de, ao nos considerarmos espíritas, sermos “obrigados” a aceitar tudo o que os espíritas tradicionalmente consideram como princípios doutrinários do Espiritismo. Esse problema nos foi apresentado recentemente por um colega médico, leitor das obras de Kardec, e se relacionava especificamente à visão de Deus proposta pela Doutrina espírita.

Anteriormente, um primo já desencarnado, me colocara a complicada questão:

– Posso ser espírita sem acreditar em Deus?

Disse-me, então, o facultativo amigo: “aceito a divindade como a inteligência suprema, mas não posso aceitá-la como a bondade e o amor supremos”. Ele se referia especificamente ao sofrimento humano, muito próximo de sua atividade profissional, na condição de médico.

Alguns problemas colocados por ele:

1- Deus exige de seus filhos um esforço e uma porfia repleta de percalços, que ele próprio nunca viveu. Considerando que Deus sempre foi Deus, o seu status não foi resultado do esforço pessoal.

Gustavo Geley, pelo motivo acima, mostrou-se simpático a uma espécie de panteísmo:

 [...] a propósito dessas magníficas concepções panteístas, não quero deixar de citar aqui algumas belas palavras de Marius George (Humanidade Integral), janeiro de 1896: “Parodiando uma frase célebre, eu disse uma vez: – Sou homem e tudo o que se relaciona com os homens me interessa; mas o que não se referisse ao destino dos meus semelhantes não me poderia interessar. Se há um ou mais deuses, anjos ou arcanjos que jamais conheceram o esforço, a luta e o sofrimento; que nunca atravessaram a noite angustiosa da ignorância, estes seres, que nada têm de humano, não me interessam para nada. Como seres superiores ou meus irmãos maiores e por muito altos que estejam na sua glória, eu não posso, nem quero honrá-los mais do que aos seres que têm vivido as nossas próprias misérias e que, pequenos como nós, souberam elevar-se à força de amor, de luta e de sofrimento”.[i]

2- A dor está no DNA da evolução, e não existe apenas como resultado da lei de causa e efeito. Sofre-se para nascer, crescer, gerar filhos, envelhecer, vendo os entes queridos partindo pela porta da desencarnação, para morrer etc. Um deus de amor, sendo a inteligência suprema, poderia criar outra dinâmica evolucionária, que não essa!

3- O sofrimento expiatório não poupa ninguém: são atingidos o bebê recém-nascido e o idoso de mais de 90 anos. Até a falível lei humana poupa certos réus em decorrência da idade ou outros fatores.

4- Até mesmo os que oferecem a existência para falar dele e louvá-lo são atingidos com a mesma dose de sofrimento.

Segundo uma lenda, Santa Teresa de Ávila estava indo de burro até um dos conventos da ordem carmelita, quando o burro achou por bem derrubá-la em plena lama. Além de se sujar toda, ela ainda machucou a perna. Ela então olhou para o céu e disse a Deus, com quem tinha grande intimidade filial: “Senhor, que bela hora para acontecer isto! Por que deixastes isso acontecer?”

Uma voz do Céu lhe respondeu: “É assim que trato os meus amigos!”

A santa mística retrucou no ato: “Se é assim que tratais os Vossos amigos, não me admira que tenhais tão poucos!”[ii]

Mas, após suas observações, perguntou-me:

– E você, Ricardo, não se incomoda com isso?

Respondi-lhe evocando Simone Weil, a pensadora francesa, morta em 1943:

Desde a adolescência eu achava que o problema de Deus é um problema cujos dados estão faltando aqui embaixo e que o único método eficiente para evitar resolvê-lo de maneira errada, o que me parecia ser o maior mal possível, era não perguntando. Parecia-me inútil resolver esse problema, pois eu pensava que, estando nesse mundo, cabe a nós adotar a melhor atitude possível para com os problemas dele, e que essa atitude não dependia da solução do problema de Deus.

E acrescenta:

Deus só pode estar presente aqui embaixo em segredo. [iii]

Pascal, que além de matemático foi filósofo, acreditava não ser possível, com a razão, provar a fé em Deus, nem sequer Deus. Pascal recusava as tradicionais provas da existência de Deus. Daí seu renomado pensamento: o coração tem razões que a própria razão desconhece.[iv]

Léon Denis, cerca de quarenta anos antes de Simone Weil, opinou:

Pode-se levar mais além do que fizemos a definição de Deus? Definir é limitar. Em face desse grande problema, a humana fraqueza aparece. Deus se impõe ao nosso espírito, mas escapa a qualquer análise. O Ser que preenche o tempo e o Espaço não será jamais medido por seres que o tempo e o Espaço limitam. Querer definir Deus, seria procurar vê-lo e quase negá-lo.

As causas secundárias da vida universal se explicam, mas a causa primária permanece intocável na sua imensidade. Só chegaremos a compreendê-la depois de ter atravessado muitas vezes a morte.

Tudo o que podemos dizer para resumir é que Deus é a vida, a razão, a consciência, na sua plenitude. Ele é a causa eternamente ativa de tudo o que é, a comunhão universal onde cada ser vem haurir a existência para, em seguida, concorrer, na medida das suas faculdades crescentes e de sua elevação, à harmonia do conjunto. [v]

O pastor Caio Fábio, referindo-se à impossibilidade cognitiva de examinar Deus, prefere dizer que Deus é, em vez de Deus existe. Segundo ele, a existência pressupõe começo, meio e fim, e nem isso se aplica a Deus.

Ante a insistência de Kardec em melhor compreender os mistérios de Deus, os Espíritos foram enfáticos ao esclarecê-lo quanto à impossibilidade de tal cometimento, convidando-o a estudar mais fortemente questões possíveis e afeitas à nossa maior necessidade, o progresso intelecto-moral.[vi]

Diante do exposto, o melhor, por ora, disse-lhe, é não pensar sobre isso! Deus existe, porque a outra opção é muito mais absurda que essa. Acreditar que o acaso deu conta de produzir coisas de tamanha complexidade como o universo, a vida e a criatura humana é racionalmente impensável.   

E, numa heterodoxia alucinatória, ousei resumir o capítulo primeiro d'O Livro dos Espíritos em três pensamentos:

1- Deus é.

2- Melhor não defini-lo, pois definir é limitar.

3- Qualquer conjectura a seu respeito é pura loucura.
 

 

[i] Resumo da doutrina espírita.

[iii] Espera de Deus.

[iv] Pensamentos.

[v] Depois da morte.

[vi] O livro dos espíritos, item 14.


 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita