Correio mediúnico

Espírito: Hilário Silva

O merecimento


I

Saturnino Pereira era francamente dos melhores homens. Amoroso mordomo familiar. Companheiro dos humildes. A caridade em pessoa. Onde houvesse dor a consolar, aí estava de plantão. Não só isso. No trabalho, era o amigo fiel do horário e do otimismo. Nas maiores dificuldades, era um sorriso generoso, parecendo raio de sol dissipando as sombras.

Por isso mesmo, quando foi visto de mão a sangrar, junto à máquina de que era condutor, todas as atenções se voltaram para ele, entre o pasmo e a amargura.

Saturnino ferido! Logo Saturnino, o amigo de todos…

Suas colegas de fábrica rasgaram peças de roupa, a fim de estancar o sangue a correr em bica.

O chefe da tecelagem, solícito, conduziu-o ao automóvel, internando-o de pronto em magnífico hospital.

Operação feliz. O cirurgião informou, sorrindo:

— Felizmente, nosso amigo perderá simplesmente o polegar. Todo o braço direito está ferido, traumatizado, mas será reconstituído em tempo breve.

Longe desse quadro, porém, o caso merecia apontamentos diversos:

— Por que um desastre desses com um homem tão bom? — Murmurava uma companheira.

— Tenho visto tantas mãos criminosas saírem ilesas, até mesmo de aviões projetados ao solo, e justamente Saturnino, que nos ajuda a todos, vem de ser a vítima! — Comentava um amigo.

— Devemos ajudar Saturnino.

— Cotizemo-nos todos para ajudá-lo.

Mas também não faltou quem dissesse:

— Que adianta a religião, tão bem observada? Saturnino é espírita convicto e leva a sério o seu ideal. Vive para os outros. Na caridade é um herói anônimo. Por que o infausto acontecimento? — Expressava-se um colega materialista.

E à tarde, quando o acidentado apareceu muito pálido, com o braço direito em tipoia, carinho e respeito rodearam-no por todos os lados.

Saturnino agradeceu a generosidade de que fora objeto. Sorriu, resignado. Proferiu palavras de agradecimento a Deus. Contudo, estava triste.

 

II

À noite, em companhia da esposa, compareceu à reunião habitual do templo espírita que frequentava.

Sessão íntima.

Apenas dez pessoas habituadas ao trato com os sofredores. Consagrado ao serviço da prece, o operário, em sua cadeira humilde, esperava o encerramento, quando Macário, o orientador espiritual das tarefas, após traçar diretrizes, dirigiu-se a ele, bondoso:

— Saturnino, meu filho, não se creia desamparado, nem se entregue a tristeza inútil. O Pai não deseja o sofrimento dos filhos. Todas as dores decretadas pela Justiça Divina são aliviadas pela Divina Misericórdia, toda vez que nos apresentamos em condições para o desagravo. Você hoje demonstra indiscutível abatimento. Entretanto, não tem motivo. Quando você se preparava ao mergulho no berço terrestre, programou a excursão presente. Excursão de trabalho, de reajuste. Acontece, porém, que formulou uma sentença contra você mesmo…

Fez uma pausa e prosseguiu:

— Há oitenta anos, era você poderoso sitiante no litoral brasileiro e, certo dia, porque pobre empregado enfermo não lhe pudesse obedecer às determinações, você, com as próprias mãos, obrigou-o a triturar o braço direito no engenho rústico. Por muito tempo, no Plano Espiritual, você andou perturbado, contemplando mentalmente o caldo de cana enrubescido pelo sangue da vítima, cujos gritos lhe ecoavam no coração. Por muito tempo, por muito tempo…

E continuou:

— E você implorou existência humilde em que viesse a perder no trabalho o braço mais útil. Mas, você, Saturnino, desde a primeira mocidade, ao conhecer a Doutrina Espírita, tem os pés no caminho do bem aos outros. Você tem trabalhado, esmerando-se no dever… Não estamos aqui para elogiar, porque você continua lutando, lutando… e o plantio disso ou daquilo só pode ser avaliado em definitivo por ocasião da colheita. Sei, porém, que hoje, por débito legítimo, alijaria você todo o braço, mas perdeu só um dedo… Regozije-se, meu amigo! Você está pagando, em amor, seu empenho à Justiça…

De cabeça baixa, Saturnino derramava grossas lágrimas.

Lágrimas de conforto, de apaziguamento e alegria…

Na manhã seguinte, mostrando no rosto amorável sorriso, compareceu, pontual, ao serviço.

E porque o fiscal do relógio lhe estranhasse o procedimento, quando o médico o licenciara por trinta dias, respondeu simplesmente:

— O senhor está enganado. Não estou doente. Fui apenas acidentado e posso servir para alguma coisa.

E caminhando, fábrica a dentro, falou alto, como se todos devessem ouvi-lo:

— Graças a Deus!

 

Do livro A Vida Escreve, obra psicografada pelos médiuns Francisco Cândido Xavier e Waldo Vieira.


 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita