Virtudes ou estratégias de enfrentamento?
A tradição cristã tem considerado como virtudes a
paciência, a fé, a esperança e a resignação. Mas serão
mesmo?
O uso da palavra virtude na cultura grega (arete,
em grego) refere-se ao “fazer bem as funções” e, por
isso, muitas vezes aparece traduzido por excelência.
Nesse aspecto, o cavalo que corre bem e o sapateiro que
trabalha bem são virtuosos ou excelentes.
Assim, a virtude possui, para os gregos, um sentido
amplo, indica qualidade, excelência de alguma coisa e
também aponta para a conduta moral. O termo latino virtus,
que traduz arete, designa a qualidade do varão.
Em geral, na linguagem cotidiana, a palavra virtude é
usada para nomear as qualidades
gerais de uma pessoa, ou seja, os
atributos positivos de um indivíduo.
Virtude foi um tema bastante abordado pelo
filósofo Aristóteles, que fez a diferenciação
entre virtudes intelectuais e virtudes éticas (ou
morais). As virtudes
intelectuais são ligadas à inteligência
e as virtudes morais são relacionadas com o bem.
A virtude
moral é a ação ou comportamento moral, é
o hábito que é considerado bom de acordo com a ética, a
disposição de um indivíduo de praticar
o bem; não é apenas uma característica,
trata-se de uma verdadeira inclinação: virtudes são
todos os hábitos constantes que levam o homem para o caminho
do bem. A virtude moral é um conceito
que remete para a conduta do ser humano, quando existe
uma adaptação perfeita entre os princípios morais e a
vontade humana.
Sob o aspecto moral, virtude, segundo Kardec, é uma
disposição adquirida de fazer o bem; o esforço para se
portar bem:
A moral é a regra de bem proceder, isto é, de distinguir
o bem do mal. Funda-se na observância da lei de Deus. O
homem procede bem quando tudo faz pelo bem de todos,
porque então cumpre a lei de Deus. [i]
Sam Harris, psicólogo norte-americano, comenta que a
moralidade diz respeito à maneira como tratamos uns aos
outros e que existem estados e capacidades mentais que
contribuem para nosso bem-estar (felicidade, compaixão,
gentileza), bem como estados e incapacidades mentais que
o diminuem (crueldade, ódio, terror). Logo, faz sentido
inquirir de determinada ação ou maneira de pensar
afetará o bem-estar de uma pessoa e dos outros. Segundo
Harris, existem respostas certas e erradas para as
questões de cunho moral (embora nem sempre consigamos
formulá-las na prática), porque existem caminhos que
conduzem à maior infelicidade e caminhos que levam à
maior realização possível para as pessoas. O conceito de
bem-estar abarca tudo o que podemos valorizar. E a
moralidade – como quer que as pessoas entendam esse
termo – realmente se reporta às intenções e ações que
afetam o bem-estar dos seres conscientes.
Embora Harris seja ateu, ele evoca, no exame das
virtudes morais, o que Jesus considerava a essência da
moralidade: a compaixão, o altruísmo e a bondade. A
bondade consiste em sermos o que desejamos que o outro
seja, tratar o outro como maior, antecipar o gesto de
gentileza e bondade. Ser, fazer e agir de forma que
promovamos o bem de forma gratuita. Uma bondade
ilimitada que transcenda etnia, gênero, comportamento,
pois ele recomendava a bondade com o ladrão, com os
pecadores, com todo ser humano. [ii]
Os atos morais, segundo a ética filosófica, são
atos humanos conscientes e voluntários dos indivíduos
que afetam outros indivíduos, determinados grupos
sociais ou a sociedade em seu conjunto.[iii]
Por essa razão, Sponville
em seu Pequeno tratado das grandes virtudes, não
inclui a fé, a esperança, a paciência e a resignação,
porque as virtudes morais estão diretamente relacionadas
ao bem-estar dos outros, em nossa relação com eles.
Assim, nos indagamos se sentimentos como paciência,
esperança, fé e resignação se identificam com esse
conceito, ou, se são condições muito mais relacionadas
ao próprio bem-estar, gerando em quem as cultiva a paz
de espírito, a confiança e a serenidade. Isso, sem
necessariamente implicar qualquer benefício para as
outras pessoas.
Relata Sponville que Santo Agostinho e Santo Tomás de
Aquino, comentando o hino à caridade, apresentado por
Paulo, na famosa carta aos coríntios, mostram que, das
três virtudes teologais (fé, esperança e caridade), a
caridade não era apenas “a maior das três”, como dizia
são Paulo, mas também a única a ter um sentido em Deus
ou, como dizem, no Reino. A fé passará (como crer em
Deus quando se identifica com Deus?), a esperança
passará (no Reino, não haverá mais nada a esperar), e é
por isso que se diz que apenas a caridade “não passará”:
no Reino só haverá amor, sem esperança e sem fé! Cristo,
observa santo Tomás, não tinha “nem a fé nem a
esperança”, no entanto houve nele “uma caridade
perfeita”. [iv]
Isso porque paciência, esperança, fé e resignação são
atributos relacionados à nossa condição de Espíritos em
evolução; perdem o sentido quando se examina o Espírito
puro. Não faz sentido pensar que os Espíritos superiores
ainda necessitem deles. O que faz sentido seria imaginar
que, à medida que o Espírito evolui moralmente, à medida
em que ele encarna em mundos menos marcados por provas e
expiações, mais inócuas se tornariam essas "estratégias
de sobrevivência em mundos infelizes". O Espírito mais
evoluído já tem ideia do que vai acontecer, já sente
Deus, logo paciência, esperança, fé, resignação etc. são
atributos infantis para eles. Da mesma forma, para uma
criança, poderia ter sentido crer em Papai Noel, quando
adulto isso já não faz o menor sentido nem tem nenhuma
necessidade.
Sob essa ótica, as condições citadas são muito mais
estratégias de enfrentamento dos desafios da vida, que
virtudes propriamente ditas. São atributos relacionados
ao autocontrole, sendo benéficos para quem os consegue
exercitar. Como não acarretam bem para o outro, não se
enquadram na categoria de virtudes morais.
Quem cultiva a paciência, se esforça em ser
perseverante, esperançoso e confiante possivelmente
viverá melhor e adoecerá menos, porque alimenta, em si
mesmo, valores geradores de saúde mental. Aquele que não
cultiva as condições citadas, provavelmente, ao
deparar-se com as vicissitudes da vida, encontrará
empeços maiores.
Alguns pensamentos de Kardec parecem caminhar nesse
sentido:
Têm os Espíritos o poder de afastar de certas pessoas os
males e de favorecê-las com a prosperidade?
“De
todo, não; porquanto há males que estão nos decretos da
Providência. Amenizam-vos, porém, as dores, dando-vos
paciência e resignação”. [v]
O Espiritismo ensina o homem a suportar as provas com
paciência e resignação. [vi]
Os flagelos são provas que dão ao homem ocasião de
exercitar a sua inteligência, de demonstrar sua
paciência e resignação ante a vontade de Deus.[vii]
Fica evidente, nessas referências do Livro dos
Espíritos, que paciência, fé, persistência e a
resignação são ferramentas apropriadas à superação das
provas e expiações da vida.
Essa discussão talvez não seja relevante, porque
independentemente de ser virtude ou não, paciência,
perseverança, fé e esperança são condições que vale a
pena serem cultivadas, porque geram, quando
racionalmente aplicadas, bons frutos.
Entretanto, como são estratégias para se viver melhor o
aqui e agora, ou seja, a vida terrena, provavelmente não
implicam progresso espiritual, o qual só se alcança,
como ensina Kardec, pela prática das reais virtudes -
aquelas que transcendem a matéria, como o amor, a
caridade e as boas ações.
Bons atos parecem ser o caminho, e o único caminho, como
ensinava Jesus, como bom judeu, afinal, totalmente ao
contrário dos gregos (que valorizam o logos [a
razão]), a filosofia judaica valoriza o dabar [o
fazer, a palavra-ato]).
Enquanto o grego pensa, o judeu faz... Talvez por isso
Jesus não tivesse vindo entre os gregos (apesar de terem
também enorme valor na civilização).
OBS.: Colaborou neste texto Carlos
Alberto Mourão Júnior, da cidade de Juiz de fora, MG.
[ii] A
paisagem moral, San Harris
[iii] Ética,
Adolfo Sanches
[iv] Sponville,
Pequeno tratado das grandes virtudes