Meu pai Hermínio Miranda, por Ana Maria
Miranda
Em seu depoimento a filha de Hermínio revela aspectos
pouco conhecidos da personalidade de Hermínio.
Nele, saltam aos olhos:
– o encantamento da filha para com ele;
– como era fácil obedecer a ele – que jamais se impunha!
– a humildade que transparecia em sua vida; a pureza do
coração desse inigualável pai:
– o fato de ensinar com exemplos;
– a forma carinhosa de se relacionar, não só com os
filhos, mas com todos aqueles com quem convivia: a mãe,
outros parentes e demais pessoas;
– a variedade dos temas que desenvolveu, com imensa
propriedade. Todos eles, após exaustivas pesquisas;
– a inumerável quantidade de obras a que recorria, não
só em nosso idioma pátrio, para estudá-las e bem
fundamentar sua riquíssima produção literária;
– a ternura e a emoção que os envolvia num abraço de
compreensão e mútuas lágrimas;
– nas conversas com os filhos, com naturalidade,
transmitia-lhes os ensinos cristãos, com exemplos dos
princípios espíritas;
– ao longo da vida, falava com os filhos de suas
reencarnações;
– não era carrancudo, pois divertia-se e aos filhos com
seu senso de humor;
– era o mesmo ser humano para com todos: conviveu, com
muito amor, com a esposa Inez, praticamente por 72 anos!
– por tudo isso, ela concluiu ser filha de um anjo.
Meu pai, Hermínio Miranda – 11 de fevereiro de 2020: Ana
Maria Miranda
Neste ano, comemora-se o centenário do escritor e
pesquisador espírita Hermínio Corrêa de Miranda, que
nasceu em 5 de janeiro de 1920, em Volta Redonda, RJ.
O ‘velho escriba’ desencarnou em 8 de julho de 2013, aos
93 anos, deixando uma obra de inestimável valor que
reúne mais de 40 livros e dezenas de artigos espíritas,
em que analisa temas diversos relacionados à
espiritualidade: Deus, cristianismo, mediunidade,
memória, obsessão, animismo e vidas passadas, entre
outros.
Para dar início às homenagens ao autor, que tem também
vários títulos publicados pela Correio Fraterno,
entrevistamos sua filha, Ana Maria Miranda.
Ela conta com exclusividade detalhes emocionantes da
vida em família e relembra passagens importantes da
existência de Hermínio entre nós. Acompanhe.
Como é ser filha de Hermínio Miranda?
Como ele diria, ele ‘esteve’ meu pai durante os 70 anos
que vivemos juntos. Sinto que fui a filha mais abençoada
do mundo. O Senhor me deu, além da vida, a felicidade de
ser filha de Hermínio Corrêa de Miranda. Porém tenho uma
teoria: o Senhor sabia que seria Ele mesmo quem daria
muito trabalho para o papai! Não seriam só os filhos!
Assim, Ele decidiu que os filhos teriam que entender o
‘velho escriba’.
Papai ensinava tudo com seu exemplo. De vez em quando,
explicava o porquê sim e o porquê não das coisas. Mas,
na maior parte das vezes, só me olhava e eu já
sabia se e o que tinha aprontado...
Certa vez, já jovem, ele me viu lendo um best
seller na
época. Só me disse: "pode ler, filha, mas acho que isto
não é literatura pra você". Eu
não continuei.
Eu queria ser atriz de teatro, desde os 9 anos. Mas ele
só me permitiu no último ano da faculdade. Cheguei a
fazer teatro profissional. Certo dia, cheguei em casa e
disse: "Pai, encerrei minha ‘carreira’... Ele me olhou
assustado, como quem diz ‘por quê?’, mas não disse nada.
Eu disse: "entendi agora o que você já tinha previsto".
Ele se levantou da rede e abriu os braços: chorei, mas
estava nos braços dele.
Na realidade, acho que eu poderia responder a esta
pergunta mais sucintamente: "alguém já teve um anjo como
pai? Pois, eu tive!"
O que mais marcou em seu convívio com Hermínio?
Papai era pura ‘alma’, um amor, uma ternura, compreensão
e humildade sem limites. Era digno, verdadeiro, ético,
sincero, sensibilíssimo. Não admitia mentiras, nem
palavras de baixo calão. Nunca as pronunciou, nunca
levantou um dedo, nem a voz para nós. Não precisava
conhecer uma pessoa profundamente; ele a ‘lia’
e já a ‘sabia’... Acho que o papai foi o homem mais
cristão, na mais pura acepção da palavra, que conheci.
Conviver com ele era viver permanentemente em Deus.
Hermínio conversava com vocês sobre espiritualidade,
religião, Deus?
Sim. Fomos criados, tal como ele e mamãe, na religião
católica. Estudamos em colégios e faculdades católicos.
Conversávamos sobre todas as religiões. As concordâncias
e discordâncias eram dirimidas por ele, por alto.
Acredito que só eu tinha algum interesse. Com 22 anos e
já na faculdade, por vezes eu entrava em discussão com o
professor de direito canônico, e falava com ele. Ele
jamais criticou, mas inteligentemente, como que semeava as
palavras de Seu Pai em mim, sem que eu percebesse.
Falava de Deus, do Cristo que nunca fundara uma
religião, do livre-arbítrio, da lei do retorno, do amor
isento de discriminação, da compaixão. Vital para ele
era a intrínseca ligação amor-caridade. As palavras iam
adentrando meu espírito e modus
vivendi.
Ele levava nossa religião muito a sério e não nos
impunha de forma alguma suas crenças. O mesmo ele fez
com seus leitores — não quis converter ninguém. Queria
apenas expor sua visão das coisas que pesquisara, os
resultados que obtivera, o que sabia
e até vivera, concluindo por vezes: "Eu não acho. Eu
sei".
De Nova York [onde foi trabalhar pela Companhia
Siderúrgica Nacional, de 1950 a 1954], ele já voltou
ao Brasil com a cabeça fervilhando com perguntas que o
catolicismo não conseguia lhe explicar. Já havia
pesquisado muito. Buscou ler e pesquisar ainda mais,
arriscando passar suas ideias a revistas especializadas,
tais como Reformador,
da FEB, cuja aceitação durou mais de 20 anos. Usava
pseudônimos, como: Marcos, João Marcus, HCM, João, para
não ferir a vovó Helena, sua mãe. Mas isso o perturbava.
Na edição da revista de maio de 1961 saiu publicada a
carta que escreveu a ela: "Carta à mãe católica".
Começava assim: "Mamãe, esta carta contém uma terrível
confissão: tornei-me espírita". Vovó
morreu em janeiro de 1961, antes de a carta
ser publicada, mas a resposta dela veio anos depois, sob
a forma de duas mensagens mediúnicas. Os leitores podem
acessá-la no livro Nossos
filhos são Espíritos [ou ler a síntese nesta
edição, na página 13].
(Reli, após muitos anos,
a psicografia em que sua mãe, Senhora Helena, responde
ao teor da “Carta à Mãe Católica”). 2
Os familiares sabiam das suas comentadas reencarnações?
Ele chegou a falar sobre isso com vocês?
Convivemos com essas conversas toda nossa vida. Acho que
foi comigo com quem teve mais abertura para falar de
suas ‘coisas’ em épocas diferentes. Me contou sobre sua
encarnação como Robert Browning Sr. (pai do poeta Robert
Browning). Fora um alto funcionário do Banco da
Inglaterra, que inclusive conheceu pessoalmente Kardec).
Ele me falou muito antes de sua entrevista ao Globo
Repórter sobre
a reencarnação, de 13 de dezembro de 1996. Eu tinha lido
poucos livros seus. Eu sabia da sua irrecorrível crença
e provas incontestes de reencarnação, da regressão de
memória, como a usava e para quê. Suas reuniões se davam
agora em seu escritório, no novo apartamento, quando ele
e seu grupo se reuniam e ele “dialogava com as sombras".
Tudo era gravado. Acompanhei na época, do lado de fora,
as sessões de regressão de memória com o jornalista e
escritor espírita Luciano dos Anjos. A família sabia que
não poderia fazer qualquer barulho até que papai abrisse
a porta, até que Luciano se fosse. O resultado se
desdobrou no livro Eu
sou Camille Desmoulins (Lachâtre).
Com o passar dos anos, me falou também sobre outras
existências, sobre sua ligação com Lutero, e sua
insofismável admiração por Paulo, o Apóstolo.
Você não é espírita. Chegou a ler as obras de seu pai?
Sim, mas falhei flagrantemente. Li Diálogo
com as sombras, O
pequeno laboratório de Deus, Os
procuradores de Deus, Histórias
que os espíritos contaram, Eu
sou Camille Demoulins, Nossos
filhos são espíritos. Estou agora acabando
de ler Diversidade
dos carismas. O próximo será Autismo,
o livro que teve um impacto incrível na mente dos pais
de autistas.
Saberia destacar a obra mais importantes dele, para
você?
Para mim, Os
Procuradores de Deus, Histórias que os espíritos
contaram, Diversidade dos carismas, Eu sou Camille
Desmoulins, A memória e o tempo e Nossos
filhos são espíritos.
Como era Hermínio escritor e pesquisador?
Ele chegava pra nós e dizia sorrindo:
"Devo anunciar que estou grávido"! Ele tinha um senso de
humor incrível. A gente morria de rir. Pronto, daí já
sabíamos que ele iria entrar em estado de hibernação:
longas horas de estudos, muita pesquisa, muita leitura,
e daí nasceria outra obra digna da doutrina, do conteúdo
e dos leitores. Quando do ‘nascimento’ do livro, ele
relaxava por algumas horas e já ficava grávido de
novo...
No livro Nossos
filhos são espíritos,
ele começa falando de você e encerra com o seu “Diploma
de pai”. Como foi estar presente nessa obra tão
conhecida do Hermínio?
Eles completavam aniversário de casamento dia 11 de
agosto. Todos os anos eu mandava uma carta e flores. Eu
trabalhava e trabalhei 48 anos. Mas, dia 22 de agosto,
meu aniversário, eu ia sempre almoçar com eles.
Almoçamos e papai chegou com meu presente: Nossos
filhos, em
mais uma edição! Ele pediu para eu ler o capítulo
"Diploma de
pai". Sentei e li.
Comecei a chorar na primeira linha (reconheci meu texto)
e terminamos chorando juntos na última, os três
abraçados. Eu virara ‘coautora’!
Você chegou a ajudá-lo em algumas pesquisas? Ele dava
notícias dos trabalhos que estava realizando, dos livros
que pretendia escrever, das suas descobertas?
Muito pouco. Mandava vir livros da Amazon, da ABE books
na Inglaterra, da Livraria Barnes & Noble de Nova York.
Trazia muitos livros para ele quando viajava. Uma vez,
em Nova York, fui consultar um senhor que ia mandar por
mim um livro raro para ele, que continha a resposta de
uma pesquisa muito importante. Trouxe o livro. Sua
última encomenda foi por livros de física quântica. Não
deu tempo de comprar...
Como era a convivência do seu pai com Inez, sua mãe?
Se conheceram e casaram em seis meses, na antiga
igrejinha de Nossa Senhora Aparecida, em 1942, em Volta
Redonda. Eu nasci em agosto de 1943. Marta e Gilberto
viriam seis anos depois. O amor deles foi único! Os dois
eram um, até um mês antes de completarem 72 anos de
casados. Apesar de participar de toda sua vida, mamãe
não mudou de religião, e nunca houve qualquer problema
quanto a isso. Assim, a família evoluiu com as decisões
tomadas por ambos. E acho que deu certo.
Conte alguma passagem divertida, alegre, da intimidade
de Hermínio.
Papai precisou fazer duas pontes de safena e uma mamária
em agosto de 2006. Tinha 86 anos. Ficou quatro dias na
UTI e depois foi para a unidade coronariana e teve alta
para ir para o quarto. Corremos para o hospital e para o
quarto esperá-lo. De repente, vejo uma enfermeira
empurrando um senhor numa cadeira de rodas:
o ‘senhor’, de óculos, caneta esferográfica, cabeça
baixa, escrevendo sobre os joelhos. Seria o velho
escriba? Quem mais?!! Saí
correndo e mamãe, mais devagar. Ele estava assustado! Me
perguntou algo zangado: "O que sua mãe e você estão
fazendo aqui?" Eu disse: "Ué, viemos receber você, com o
sangue correndo livre por suas veias, seu cérebro
pululando, suas pesquisas já te perturbando e teus
livros esperando". E, perguntei o porquê do espanto.
Ele, chorando e rindo ao mesmo tempo, disse: "Eu
achei que tinha morrido e estava no céu e vocês duas
também". Mamãe disse: "Eu estou vivíssima”. E falei: “E
eu também". Foi aquela alegria! Peguei a esferográfica e
o guardanapo, e li: eram instruções pra mim sobre seus
bancos, contas, senhas, investimentos, etc. Eu já sabia
de cor. Depois de deitado e refeito do susto do
"encontro coletivo no céu", ele deu gargalhadas e disse:
"Tinha tanta gente (espiritualidade) na sala de cirurgia
que não podia dar outra coisa! Acho que fizeram uma
lanternagem geral em mim". Rimos mais ainda e escondi o
guardanapo; era relíquia. O velho escriba faria mais
sete anos de serão!
Você acompanhou bem de perto a partida de seu pai. Qual
a lição mais marcante que ficou?
A fé, o amor pelo Pai e por seu ‘amigo’, o Cristo! A
irrestrita obediência às ‘coisas’ de Deus. Percebi até
uma alegria preocupada com a ‘volta pra casa’, na nossa
última conversa: quando ele sorriu e me disse: "Tá todo
mundo me esperando por lá..."Suas impossibilidades
físicas, dada às complicações na saúde e da idade,
tinham, de repente, desaparecido. Conversou comigo por
duas horas, fluentemente.
Qual a lição mais marcante? Acho que não sei responder.
Eu ainda ‘estou gente’, esperando o embarque ‘pra casa’.
Mas vislumbro-me chegando à Espiritualidade e o
encontro: um abraço de amor, só amor... em silêncio. Um
entenderia o outro pelo olhar ... Eu pediria apenas uma
coisa: "perdão,
papai, se te fiz sofrer..."
Como filha, você acha que seu pai ainda guardava muitos
segredos?
Possivelmente. Acho que ele já estava triste por não
poder escrever tudo que ainda tinha para contar. O serão
acabara e ele apagou as luzes do quarto e voltou pra
casa, mas o céu ficou todo iluminado...
(Eliana Haddad e Cristian Fernandes)
Referências bibliográficas:
1. MIRANDA, Hermínio C. Nossos
Filhos são Espíritos. Editora
Arte & Cultura Ltda.: Niterói (RJ). 1989, p. 175/6.
2. As marcas do Cristo,
Hermínio C. Miranda, FEB.
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