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por Marcelo Teixeira

 

Recordar para esquecer


Em janeiro de 2023, Sandra Senna, amiga de movimento espírita, lançou, em badalada livraria de Petrópolis (RJ), o primeiro livro; um romance não espírita. Foi um evento bem concorrido, com vários amigos querendo saudar a entrada de Sandra no universo da literatura.

Depois, que peguei meu exemplar autografado, fui bater um papo com alguns amigos espíritas presentes. Numa mesa próxima, havia vários exemplares do primeiro volume de “Escravidão”, magistral e premiada obra na qual o jornalista Laurentino Gomes esmiúça, com riqueza de detalhes, o que foram quase 400 anos de utilização de mão de obra escrava em terras brasileiras. Peguei um exemplar e disse para o grupo de amigos que o movimento espírita poderia muito bem estudar “Escravidão”, a fim de entendermos a intensidade da dor que essa chaga social causa à comunidade negra, por que ela reverbera em nosso dia a dia até hoje e como poderíamos contribuir para superar, à luz do conhecimento espírita, o modus operandi escravagista que ainda nos causa tanto dissabor e indignação. Ato contínuo, citei que, entre várias revelações, Laurentino narra que morriam diariamente, a bordo nos navios negreiros, por volta de 15 escravizados. Como os corpos eram jogados ao mar, isso mudou a rota dos tubarões no Oceano Atlântico. Eles passaram a acompanhar as embarcações, pois sabiam que haveria alimento. Selma, uma das pessoas com quem conversava, tremeu nas bases e discordou. Disse que não teria condições, pois ficaria impressionada.

A reação de Selma evidencia o velho hábito que o brasileiro possui de fugir de assuntos considerados polêmicos. É melhor esquecer que existiram episódios cruéis que mancharam nossa História de sangue do que ficar botando o dedo na ferida e fazer, segundo essa mentalidade, com que elas sangrem novamente. E também deixa às claras a mentalidade de muitos espíritas, que preferem evitar assuntos do mundo cruel e injusto que habitamos e se ater apenas a conteúdos edulcorados.

Ao rememorar esse episódio, recordo-me de outro que se passou quando prestei serviço, por dois anos, para a Prefeitura de Petrópolis. Volta e meia, no setor onde eu atuava, pessoas ligadas ao resgate dos fatos dolorosos ocorridos durante a ditadura militar apareciam para reivindicar que uma residência que foi palco de torturas e desaparecimentos fosse transformada em centro de memória. Lá, seriam reunidos documentos e afins. Objetivo: estudo constante e aberto ao público para que ditaduras não mais se repitam no Brasil. Assim que os membros dessa comissão se retiravam, colegas de trabalho criticavam. Alegavam não haver necessidade de ficar revolvendo um período tão triste. Para eles, seria melhor deixar para lá.

O problema é que não dá para deixar para lá o que ocorreu nessa residência, apelidada, vejam vocês, de Casa da Morte. Da mesma forma, não dá para simplesmente fingir que milhares de seres humanos tirados da África para serem trazidos para cá e escravizados não padeceram toda sorte de infortúnios só porque, para muitos brasileiros, brancos em sua maioria, o assunto é deveras desconfortável. E também não dá para deixar passar em branco o tanto de tragédias sociais que o homem vem provocando pelo mundo desde há muito tempo.

O escritor e filósofo Wanderson Dutch revela, em texto publicado na internet, as crueldades perpetradas pelo rei Leopoldo II, da Bélgica, no país africano hoje conhecido como República Democrática do Congo, mas que, durante muito tempo, foi colônia belga. Tanto que era conhecido, à época, como Congo-belga. De 1865 a 1909, o povo congolês sofreu, nas mãos de Leopoldo II, um horrendo genocídio que resultou na morte de mais de 15 milhões de africanos, entre adultos, jovens, idosos e crianças. Como se não bastasse, incontáveis pessoas tiveram as mãos amputadas de forma sistemática. Um circo de horrores cujo objetivo era usurpar as riquezas naturais do Congo e enriquecer a Bélgica. Para completar, até hoje, na Bélgica, barrinhas de chocolate em formato de mãos decepadas são vendidas nas mais sofisticadas confeitarias. Um escárnio!

No entanto, segundo Dutch, a Europa de hoje insiste em fazer silêncio sobre o assunto em vez de assumir a responsabilidade. Em minha opinião, não só pelo que a Bélgica fez no Congo, mas também pelo que diversos países do Velho Continente impuseram de sofrimento a países da África e América Latina. As razões para esse esquecimento proposital são várias. Entre elas, o racismo. Conforme observa Wanderson Dutch, os horrores de Hitler foram e ainda são detalhados para todo o mundo porque ele teve a audácia de matar europeus brancos. Mas como os belgas mataram negros, ninguém se importa. Tristes desprezos racistas! O outro motivo seria a bem urdida estratégia para proteger as estruturas capitalistas exploradoras, que tanto beneficiam o chamado Primeiro Mundo.  

No programa de TV “Papo de segunda” (GNT) de 14 de agosto 2023, o filósofo e ensaísta Chico Bosco, um dos debatedores fixos, disse que, em diversas ocasiões históricas, é preciso recordar para esquecer. Ele se baseou nos estudos de um historiador francês, mas não citou seu nome. Chico explica que, de acordo com esse historiador, várias civilizações que passaram por grandes tragédias causadas por homens conseguiram se reerguer e seguir adiante porque fizeram questão de se lembrar do que aconteceu. Ou seja, o poder público apurou os fatos, fez as devidas correções e reparações históricas, responsabilizou judicialmente os envolvidos, indenizou vítimas e familiares... Com isso, puderam, então, seguir adiante. Tiveram de se lembrar para poderem esquecer.

O historiador a que Chico se refere se chama Paul Ricoeur. Em artigo intitulado “A memória, a história, o esquecimento”, ele ressalta a necessidade de uma narrativa que ligue os acontecimentos passados com os da atualidade. Diz ele que problemas que apelam para uma política de memória (anistia versus crimes imprescritíveis, por exemplo) podem ser colocados de modo que o passado histórico seja reapropriado por meio de uma memória instruída pela História. Em suma, se o passado não está bem resolvido, precisa vir à tona para ser devidamente contextualizado para, em seguida, repousar com pleno entendimento na memória de um povo.

Se nos detivermos em fatos mais recentes, Chile, Argentina e Uruguai, todos assolados por ditaduras militares nas três últimas décadas do Século XX, resgataram as próprias histórias tristes para poderem, com o tempo, se esquecerem delas, ou seja, colocar os pingos nos is, aprender com a História e seguir em frente. É o que o Brasil precisa fazer. Afinal, nossa nação padeceu nas mãos de uma ditadura militar, que durou de 1964 a 1985. Nesse período, houve torturas, desaparecimentos, assassinatos, censura às artes e â informação, cerceamento do direito de ir e vir... Com a anistia ampla, geral e irrestrita a partir de 1979, vários exilados políticos puderam voltar ao país. No entanto, os responsáveis pelas atrocidades do período também foram anistiados, e, até hoje, luta-se para que os fatos sejam rigorosamente apurados, estudados, debatidos... E, é claro, para que se deem nomes aos bois e que a justiça seja feita, com responsabilização dos que perpetraram atos de tortura, morte e opressão.

Precisamos resgatar nossa História mal contada para situá-la no tempo e no espaço, aprendermos com ela e seguirmos mais leves, livres dos espectros do passado que insistem em nos assombrar e fazendo com que fatos históricos se repitam pelo fato de pouco conhecermos o que realmente se passou. Digo o mesmo em relação ao período escravagista, tão mal explicado, e sempre sob o ponto de vista do branco colonizador, quase nunca sob a ótica dos povos negro e indígena. É preciso esmiuçá-lo nas escolas, universidades, grupos de estudos, centros de pesquisa e afins. Só assim entenderemos por que ainda somos racistas, como o Brasil foi construído tendo a escravidão como base e o que deve ser feito para mudar a mentalidade de casa grande e senzala.

No Evangelho de Mateus, cap. 5, versículos 25 e 26, Jesus alerta que precisamos, o mais breve possível, nos reconciliarmos com nosso adversário enquanto estamos a caminho com ele. Caso contrário, esse oponente nos entregará ao juiz, que, por sua vez, nos entregará ao ministro da justiça para que sejamos devidamente trancafiados. Dessa prisão, só sairemos quando pagarmos o último centavo. Além de eventuais desafetos com os quais não acertamos as contas, tal passagem, segundo percebo, também ter a ver com o passado histórico mal resolvido por um povo ou nação.

Ao comentar o dito do Cristo no item 6 do capítulo X de O Evangelho segundo o Espiritismo, Kardec salienta que tal reconciliação é importante para que o mal não se perpetue nas existências futuras. Um mal que pode ser coletivo, se fazendo presente na forma de uma História que precisa ser passada a limpo para que um país se reconcilie com o próprio passado e o esqueça de forma civilizatória, visando à construção de dias melhores. Esquecimento, portanto, como muitos pensam, não é apagamento. É resolver as pendências pretéritas para seguirmos em paz, sem o peso do remorso ou o vazio da lacuna não preenchida pela falta de conteúdo histórico do lugar em que reencarnamos reiteradas vezes.

Estas linhas podem soar estranhas para alguns leitores. Tenhamos em mente, contudo, que é esse mecanismo que a Providência Divina utiliza quando, no plano espiritual, nos ajuda a passar a limpo encarnações pretéritas. Objetivo, compreender onde e por que falhamos – tenha sido o erro de pequeno, médio ou grande porte –, ajudar a detectarmos nossos pontos fracos e fortes, proporcionar o reencontro (seja do lado de lá ou aqui) com quem precisamos nos retratar e traçar planos para, em dias porvindouros, vivermos de forma mais tranquila, de posse com nossas conquistas morais e em paz com as nossas lembranças, mesmo que, em tempos idos, tenhamos sido cruéis, canalhas ou coisa que o valha. Isso se chama recordar para poder esquecer.

Kardec, na obra citada, toca novamente no assunto quando aborda o esquecimento do passado no item 11 do capítulo V. Ele explica: “Frequentemente, o Espírito renasce no mesmo meio em que já viveu, estabelecendo de novo relações com as mesmas pessoas, a fim de reparar o mal que lhes haja feito”.

Isso quer dizer também que, se os infortúnios do passado de um povo estiverem sempre sendo reconhecidos e compreendidos para que sejam transpostos, o reencarnante terá ambientes cada vez mais favoráveis para, enfatizo, superar imperfeições, desenvolver potencialidades e acertar os ponteiros com vítimas e algozes de vidas pretéritas. Afinal, caminhadas individuais se entrelaçam com a trajetória de um povo, e um ambiente cultural e historicamente saudável decerto muito contribuirá para nossa evolução.

 

Bibliografia:

1 - DUTCH, Wanderson – Mãos de doces de chocolate ainda são vendidas na Bélgica, apesar do genocídio do rei Leopoldo no Congo. Disponível em Link-1

2 - KARDEC, Allan – O Evangelho segundo o Espiritismo. 2ª edição, 2018, Federação Espírita Brasileira (FEB), Brasília, DF.

3 - RICOEUR, Paul – A memória, a história, o esquecimento. Disponível em Link-2


    

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita