Recordar para esquecer
Em janeiro de 2023, Sandra Senna, amiga de movimento
espírita, lançou, em badalada livraria de Petrópolis
(RJ), o primeiro livro; um romance não espírita. Foi um
evento bem concorrido, com vários amigos querendo saudar
a entrada de Sandra no universo da literatura.
Depois, que peguei meu exemplar autografado, fui bater
um papo com alguns amigos espíritas presentes. Numa mesa
próxima, havia vários exemplares do primeiro volume de
“Escravidão”, magistral e premiada obra na qual o
jornalista Laurentino Gomes esmiúça, com riqueza de
detalhes, o que foram quase 400 anos de utilização de
mão de obra escrava em terras brasileiras. Peguei um
exemplar e disse para o grupo de amigos que o movimento
espírita poderia muito bem estudar “Escravidão”, a fim
de entendermos a intensidade da dor que essa chaga
social causa à comunidade negra, por que ela reverbera
em nosso dia a dia até hoje e como poderíamos contribuir
para superar, à luz do conhecimento espírita, o modus
operandi escravagista que ainda nos causa tanto
dissabor e indignação. Ato contínuo, citei que, entre
várias revelações, Laurentino narra que morriam
diariamente, a bordo nos navios negreiros, por volta de
15 escravizados. Como os corpos eram jogados ao mar,
isso mudou a rota dos tubarões no Oceano Atlântico. Eles
passaram a acompanhar as embarcações, pois sabiam que
haveria alimento. Selma, uma das pessoas com quem
conversava, tremeu nas bases e discordou. Disse que não
teria condições, pois ficaria impressionada.
A reação de Selma evidencia o velho hábito que o
brasileiro possui de fugir de assuntos considerados
polêmicos. É melhor esquecer que existiram episódios
cruéis que mancharam nossa História de sangue do que
ficar botando o dedo na ferida e fazer, segundo essa
mentalidade, com que elas sangrem novamente. E também
deixa às claras a mentalidade de muitos espíritas, que
preferem evitar assuntos do mundo cruel e injusto que
habitamos e se ater apenas a conteúdos edulcorados.
Ao rememorar esse episódio, recordo-me de outro que se
passou quando prestei serviço, por dois anos, para a
Prefeitura de Petrópolis. Volta e meia, no setor onde eu
atuava, pessoas ligadas ao resgate dos fatos dolorosos
ocorridos durante a ditadura militar apareciam para
reivindicar que uma residência que foi palco de torturas
e desaparecimentos fosse transformada em centro de
memória. Lá, seriam reunidos documentos e afins.
Objetivo: estudo constante e aberto ao público para que
ditaduras não mais se repitam no Brasil. Assim que os
membros dessa comissão se retiravam, colegas de trabalho
criticavam. Alegavam não haver necessidade de ficar
revolvendo um período tão triste. Para eles, seria
melhor deixar para lá.
O problema é que não dá para deixar para lá o que
ocorreu nessa residência, apelidada, vejam vocês, de
Casa da Morte. Da mesma forma, não dá para simplesmente
fingir que milhares de seres humanos tirados da África
para serem trazidos para cá e escravizados não padeceram
toda sorte de infortúnios só porque, para muitos
brasileiros, brancos em sua maioria, o assunto é deveras
desconfortável. E também não dá para deixar passar em
branco o tanto de tragédias sociais que o homem vem
provocando pelo mundo desde há muito tempo.
O escritor e filósofo Wanderson Dutch revela, em texto
publicado na internet, as crueldades perpetradas pelo
rei Leopoldo II, da Bélgica, no país africano hoje
conhecido como República Democrática do Congo, mas que,
durante muito tempo, foi colônia belga. Tanto que era
conhecido, à época, como Congo-belga. De 1865 a 1909, o
povo congolês sofreu, nas mãos de Leopoldo II, um
horrendo genocídio que resultou na morte de mais de 15
milhões de africanos, entre adultos, jovens, idosos e
crianças. Como se não bastasse, incontáveis pessoas
tiveram as mãos amputadas de forma sistemática. Um circo
de horrores cujo objetivo era usurpar as riquezas
naturais do Congo e enriquecer a Bélgica. Para
completar, até hoje, na Bélgica, barrinhas de chocolate
em formato de mãos decepadas são vendidas nas mais
sofisticadas confeitarias. Um escárnio!
No entanto, segundo Dutch, a Europa de hoje insiste em
fazer silêncio sobre o assunto em vez de assumir a
responsabilidade. Em minha opinião, não só pelo que a
Bélgica fez no Congo, mas também pelo que diversos
países do Velho Continente impuseram de sofrimento a
países da África e América Latina. As razões para esse
esquecimento proposital são várias. Entre elas, o
racismo. Conforme observa Wanderson Dutch, os horrores
de Hitler foram e ainda são detalhados para todo o mundo
porque ele teve a audácia de matar europeus brancos. Mas
como os belgas mataram negros, ninguém se importa.
Tristes desprezos racistas! O outro motivo seria a bem
urdida estratégia para proteger as estruturas
capitalistas exploradoras, que tanto beneficiam o
chamado Primeiro Mundo.
No programa de TV “Papo de segunda” (GNT) de 14 de
agosto 2023, o filósofo e ensaísta Chico Bosco, um dos
debatedores fixos, disse que, em diversas ocasiões
históricas, é preciso recordar para esquecer. Ele se
baseou nos estudos de um historiador francês, mas não
citou seu nome. Chico explica que, de acordo com esse
historiador, várias civilizações que passaram por
grandes tragédias causadas por homens conseguiram se
reerguer e seguir adiante porque fizeram questão de se
lembrar do que aconteceu. Ou seja, o poder público
apurou os fatos, fez as devidas correções e reparações
históricas, responsabilizou judicialmente os envolvidos,
indenizou vítimas e familiares... Com isso, puderam,
então, seguir adiante. Tiveram de se lembrar para
poderem esquecer.
O historiador a que Chico se refere se chama Paul
Ricoeur. Em artigo intitulado “A memória, a história, o
esquecimento”, ele ressalta a necessidade de uma
narrativa que ligue os acontecimentos passados com os da
atualidade. Diz ele que problemas que apelam para uma
política de memória (anistia versus crimes
imprescritíveis, por exemplo) podem ser colocados de
modo que o passado histórico seja reapropriado por meio
de uma memória instruída pela História. Em suma, se o
passado não está bem resolvido, precisa vir à tona para
ser devidamente contextualizado para, em seguida,
repousar com pleno entendimento na memória de um povo.
Se nos detivermos em fatos mais recentes, Chile,
Argentina e Uruguai, todos assolados por ditaduras
militares nas três últimas décadas do Século XX,
resgataram as próprias histórias tristes para poderem,
com o tempo, se esquecerem delas, ou seja, colocar os
pingos nos is, aprender com a História e seguir em
frente. É o que o Brasil precisa fazer. Afinal, nossa
nação padeceu nas mãos de uma ditadura militar, que
durou de 1964 a 1985. Nesse período, houve torturas,
desaparecimentos, assassinatos, censura às artes e â
informação, cerceamento do direito de ir e vir... Com a
anistia ampla, geral e irrestrita a partir de 1979,
vários exilados políticos puderam voltar ao país. No
entanto, os responsáveis pelas atrocidades do período
também foram anistiados, e, até hoje, luta-se para que
os fatos sejam rigorosamente apurados, estudados,
debatidos... E, é claro, para que se deem nomes aos bois
e que a justiça seja feita, com responsabilização dos
que perpetraram atos de tortura, morte e opressão.
Precisamos resgatar nossa História mal contada para
situá-la no tempo e no espaço, aprendermos com ela e
seguirmos mais leves, livres dos espectros do passado
que insistem em nos assombrar e fazendo com que fatos
históricos se repitam pelo fato de pouco conhecermos o
que realmente se passou. Digo o mesmo em relação ao
período escravagista, tão mal explicado, e sempre sob o
ponto de vista do branco colonizador, quase nunca sob a
ótica dos povos negro e indígena. É preciso esmiuçá-lo
nas escolas, universidades, grupos de estudos, centros
de pesquisa e afins. Só assim entenderemos por que ainda
somos racistas, como o Brasil foi construído tendo a
escravidão como base e o que deve ser feito para mudar a
mentalidade de casa grande e senzala.
No Evangelho de Mateus, cap. 5, versículos 25 e 26,
Jesus alerta que precisamos, o mais breve possível, nos
reconciliarmos com nosso adversário enquanto estamos a
caminho com ele. Caso contrário, esse oponente nos
entregará ao juiz, que, por sua vez, nos entregará ao
ministro da justiça para que sejamos devidamente
trancafiados. Dessa prisão, só sairemos quando pagarmos
o último centavo. Além de eventuais desafetos com os
quais não acertamos as contas, tal passagem, segundo
percebo, também ter a ver com o passado histórico mal
resolvido por um povo ou nação.
Ao comentar o dito do Cristo no item 6 do capítulo X de O
Evangelho segundo o Espiritismo, Kardec salienta que
tal reconciliação é importante para que o mal não se
perpetue nas existências futuras. Um mal que pode ser
coletivo, se fazendo presente na forma de uma História
que precisa ser passada a limpo para que um país se
reconcilie com o próprio passado e o esqueça de forma
civilizatória, visando à construção de dias melhores.
Esquecimento, portanto, como muitos pensam, não é
apagamento. É resolver as pendências pretéritas para
seguirmos em paz, sem o peso do remorso ou o vazio da
lacuna não preenchida pela falta de conteúdo histórico
do lugar em que reencarnamos reiteradas vezes.
Estas linhas podem soar estranhas para alguns leitores.
Tenhamos em mente, contudo, que é esse mecanismo que a
Providência Divina utiliza quando, no plano espiritual,
nos ajuda a passar a limpo encarnações pretéritas.
Objetivo, compreender onde e por que falhamos – tenha
sido o erro de pequeno, médio ou grande porte –, ajudar
a detectarmos nossos pontos fracos e fortes,
proporcionar o reencontro (seja do lado de lá ou aqui)
com quem precisamos nos retratar e traçar planos para,
em dias porvindouros, vivermos de forma mais tranquila,
de posse com nossas conquistas morais e em paz com as
nossas lembranças, mesmo que, em tempos idos, tenhamos
sido cruéis, canalhas ou coisa que o valha. Isso se
chama recordar para poder esquecer.
Kardec, na obra citada, toca novamente no assunto quando
aborda o esquecimento do passado no item 11 do capítulo
V. Ele explica: “Frequentemente,
o Espírito renasce no mesmo meio em que já viveu,
estabelecendo de novo relações com as mesmas pessoas, a
fim de reparar o mal que lhes haja feito”.
Isso quer dizer também que, se os infortúnios do passado
de um povo estiverem sempre sendo reconhecidos e
compreendidos para que sejam transpostos, o reencarnante
terá ambientes cada vez mais favoráveis para, enfatizo,
superar imperfeições, desenvolver potencialidades e
acertar os ponteiros com vítimas e algozes de vidas
pretéritas. Afinal, caminhadas individuais se entrelaçam
com a trajetória de um povo, e um ambiente cultural e
historicamente saudável decerto muito contribuirá para
nossa evolução.
Bibliografia:
1 - DUTCH, Wanderson – Mãos
de doces de chocolate ainda são vendidas na Bélgica,
apesar do genocídio do rei Leopoldo no Congo. Disponível
em Link-1
2 - KARDEC, Allan – O Evangelho
segundo o Espiritismo. 2ª edição, 2018, Federação
Espírita Brasileira (FEB), Brasília, DF.
3 - RICOEUR, Paul – A memória, a
história, o esquecimento. Disponível em Link-2