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por Ricardo Baesso de Oliveira

 

Progresso e evolução: adequando os conceitos de superior e inferior


Kardec se valeu do vocábulo evolução poucas vezes, e o considerou o mesmo que progresso. Em nossos dias, no entanto, as ciências biológicas e as ciências sociais veem profundas diferenças entre esses dois termos. Segundo essas áreas do conhecimento humano, progresso implica em melhoramento, aprimoramento, uma espécie de complexidade que denota avanço e adiantamento. Evolução, por sua vez, significa, simplesmente, mudança, transformação. Os médicos costumam registrar em seus prontuários: o paciente evoluiu para o óbito.

O termo evolução pode ser empregado para referir-se a dois tipos de mudanças: a mudança cultural (evolução cultural) e a mudança nos genes e sua interação com o ambiente (evolução biológica). A evolução cultural relaciona-se às transformações nos hábitos, nos costumes e no comportamento das pessoas que são adquiridas e transferidas de geração para geração através do aprendizado. A evolução biológica, por sua vez, relaciona-se às mudanças no conjunto de genes das populações através do tempo.

Os biólogos rejeitam a ideia de que a evolução biológica signifique progresso. Como se pensar em progresso quando 99% das espécies que existiram na Terra desapareceram, e o planeta passou por várias extinções em massa? Segundo especialistas, em menos de 5 bilhões de anos, o hidrogênio do Sol vai se esgotar, haverá uma grande explosão e toda a vida que depende dele vai se extinguir. Como progresso se tudo, ao final, será extinto? Como pensar em progresso, quando peixes que vivem em águas profundas perderam os olhos (um órgão sofisticado e de alto custo e inútil onde não chega a luz solar) e, por esse motivo, sobreviveram, na luta pela vida?

Os cientistas sociais, em grande parte também, rejeitam o conceito de progresso. A ideia de progresso foi inicialmente formulada por enciclopedistas no século XVIII, que desenvolveram a teoria do progresso universal da humanidade. Esta foi rapidamente elevada ao status de dogma absoluto.

Essa ideia é pura ilusão, segundo grande parte dos cientistas sociais: não há um desenvolvimento progressivo linear das sociedades humanas. É claro que isso de forma alguma proíbe o reconhecimento da melhoria de certos aspectos da vida. Mas isso não o torna uma lei obrigatória. Algo está melhorando. Algo está piorando. Além disso, uma fase pode substituir outra. E, em sociedades diferentes, esses ciclos podem não coincidir. Em algum lugar agora há progresso, e em algum lugar há regressão. [i]

Onde o progresso ao compararmos a tecnologia egípcia dos faraós com o Egito de séculos posteriores? Como também a Grécia de Sócrates e Platão e a Grécia de quinhentos anos depois? Onde o progresso ao considerarmos a escola médica de Avicena (980-1037), na Pérsia, que escreveu mais de quarenta tratados de Medicina, com o Irã de séculos recentes? Como pensar em progresso, examinando a Síria de nossos dias com a Síria antes da guerra, um destino turístico importante do Oriente Médio, com seus mercados árabes e ruínas da Antiguidade atraindo visitantes de várias partes do mundo?

Pelo exposto, considerando que não se pode admitir um progresso biológico e cultural, não faz sentido o uso dos termos inferior e superior quando nos referimos às formas vivas do planeta e, tampouco, às diferentes sociedades e culturas. Trata-se de um equívoco, segundo os acadêmicos das áreas estudadas, pensar que o homem é superior ao cão e que este é superior à ameba. Equívoco também afirmar que as comunidades indígenas da Amazônia brasileira são culturalmente inferiores aos países do Norte da Europa. Não deve haver relação de superioridade ou inferioridade entre eles: são elementos distintos, com caraterísticas particulares e com valor intrínseco.

Kardec viveu em uma época intelectualmente impregnada da ideia de um progresso social e universal, e isso influenciou fortemente seu pensamento, particularmente quando, ao propor as leis morais que dirigem o Universo, inseriu a Lei do progresso.

Relevante lembrar que Kardec foi contemporâneo de Auguste Comte (criador do termo sociologia, em 1840), que propunha uma ciência que estudasse as leis do mundo moral, tal qual as ciências naturais estudavam as leis naturais; e isso para moldar a vida social de forma progressista.[ii]

Kardec aceitava a ideia de um progresso social, relacionando-o também às mudanças na população dos Espíritos reencarnados na Terra, conforme bem atestado no trecho a seguir:

As renovações rápidas, quase instantâneas, que se produzem no elemento espiritual da população, por efeito dos flagelos destruidores, apressam o progresso social; sem as emigrações e imigrações que de tempos a tempos lhe vêm dar violento impulso, só com extrema lentidão esse progresso se realizaria. É de notar-se que todas as grandes calamidades que dizimam as populações são sempre seguidas de uma era de progresso de ordem física, intelectual, ou moral e, por conseguinte, no estado social das nações que as experimentam. É que elas têm por fim operar uma remodelação na população espiritual, que é a população normal e ativa do globo.  [iii]

Apesar disso, Kardec admite a queda dramática de muitas civilizações, o que estaria na contramão de um progresso linear. Ao admitir tais acontecimentos, Kardec relaciona-os à condição dos Espíritos relacionados a essas civilizações, conforme a questão seguinte:

Pergunta:

- A história nos mostra uma multidão de povos que após terem sido convulsionados recaíram na barbárie. Onde está nesse caso o progresso?

Resposta:

[...] os Espíritos encarnados nesse povo degenerado não são mais os que o constituíam nos tempos do seu esplendor. Aqueles, logo que se tornaram mais adiantados, mudaram-se para habitações mais perfeitas e progrediram, enquanto outros, menos avançados, tomaram o seu lugar, que por sua vez também deixarão.[iv]

Independentemente das discussões em torno da questão – admitir ou não um progresso social linear - os pensamentos aplicados às questões biológicas e sociais se modificam quando passamos a examinar a questão espiritual, ou seja, a evolução do Espírito. Nesse particular, os conceitos de evolução e progresso assumem a mesma conotação: aprimoramento intelecto-moral. Nada em Espiritismo faz sentido, exceto à luz da evolução, ou seja, do progresso, do melhoramento, aperfeiçoamento, desenvolvimento das potencialidades pessoais. Segundo Kardec, as leis do progresso presidem à evolução universal.[v]

No texto Profissão de fé espírita raciocinada[vi], Kardec esclarece que os Espíritos são criados simples e ignorantes, isto é, sem ciência e sem conhecimento do bem e do mal, porém perfectíveis e com igual aptidão para tudo adquirirem e tudo conhecerem, com o tempo. A princípio, eles se encontram numa espécie de infância, carentes de vontade própria e sem consciência perfeita de sua existência. À medida que o Espírito se distancia do ponto de partida, desenvolvem-se lhe as ideias, como na criança, e, com as ideias, o livre-arbítrio, isto é, a liberdade de fazer ou não fazer, de seguir este ou aquele caminho para seu adiantamento, o que é um dos atributos essenciais do Espírito.    

O objetivo final de todos os Espíritos consiste em alcançar a perfeição de que é suscetível a criatura. O resultado dessa perfeição está no gozo da suprema felicidade que lhe é consequente e a que chegam mais ou menos rapidamente, conforme o uso que fazem do livre-arbítrio.

Segundo Pierre Bourdieu, toda disciplina é constituída por uma série de lições ligadas por uma lógica. Isso envolve dificuldades porque a divisão em lições e temas cria o risco de fazer a lógica do conjunto desaparecer, e um conceito só ganha sentido dentro da coerência de um sistema.[vii]

Em Espiritismo, a lógica que acompanha a análise de qualquer tema é a evolução/progresso espiritual. O ponto de vista espírita ao admitir um desenvolvimento crescente da alma, dá sentido às relações de superioridade e inferioridade. Isso sem conotação pejorativa, mas representando um diferencial histórico entre Espíritos que viveram mais ou menos tempo. Tal como se dá com o grau de escolaridade: um jovem que completou o ensino médio está em condição superior, ou seja, mais avançado (progrediu mais) que aquele que ainda se encontra no ensino fundamental.

Justificado está, segundo creio, o fato de Kardec referir-se aos Espíritos como superiores e inferiores. Espíritos superiores são aqueles que foram criados antes, que viveram mais experiências de aprendizado e, portanto, encontram-se mais esclarecidos e conscientes da necessidade do autocontrole e do aperfeiçoamento moral. Espíritos inferiores, por sua vez, são mais novos, menos experientes, mais obtusos e mais apegados as inclinações más. São transitoriamente superiores e inferiores, nas relações que se estabelecem entre eles, mas essa condição se dilui, por completo, com o tempo, onde todos se encontrarão na dimensão da sabedoria, do belo, do bom e do justo.

Ainda aqui é possível matizar os conceitos de superioridade e inferioridade, pois dado Espírito pode ser superior ou inferior a outro em aspectos específicos, mas não em todos.

Segundo o sociólogo inglês Anthony Giddens, todos os esquemas de classificação têm prós e contras; então, como escolhemos? Uma maneira de seguir em frente, que pode se tornar mais comum no futuro, é evitar se comprometer com qualquer um desses esquemas amplos e generalizantes que fatiam, organizam e reorganizam os diversos tipos de indivíduos e sociedades do mundo.[viii] Cada um é o que é, e deve ser visto unicamente em relação a si mesmo, sem rótulos ou estereótipos, tendo pela frente o combate íntimo que lhe cumpre desafiar. Afinal, a batalha se dá em nosso mundo interior; e só importa a nós mesmos.

 
 

[ii] Sociologia, Anthony Giddens

[iii] A Gênese, cap.11, item 36

[iv] O Livro dos Espíritos, item 786

[v] Revista espírita, de setembro de 1859

[vi] Obras póstumas

[vii] Sociologia geral II

[viii] Sociologia, Anthony Giddens


    

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita