Progresso e evolução: adequando os
conceitos de superior e inferior
Kardec se valeu do vocábulo evolução poucas
vezes, e o considerou o mesmo que progresso. Em
nossos dias, no entanto, as ciências biológicas e as
ciências sociais veem profundas diferenças entre esses
dois termos. Segundo essas áreas do conhecimento humano,
progresso implica em melhoramento, aprimoramento, uma
espécie de complexidade que denota avanço e
adiantamento. Evolução, por sua vez, significa,
simplesmente, mudança, transformação. Os médicos
costumam registrar em seus prontuários: o paciente
evoluiu para o óbito.
O termo evolução pode ser empregado para
referir-se a dois tipos de mudanças: a mudança cultural
(evolução cultural) e a mudança nos genes e sua
interação com o ambiente (evolução biológica). A
evolução cultural relaciona-se às transformações nos
hábitos, nos costumes e no comportamento das pessoas que
são adquiridas e transferidas de geração para geração
através do aprendizado. A evolução biológica, por sua
vez, relaciona-se às mudanças no conjunto de genes das
populações através do tempo.
Os biólogos rejeitam a ideia de que a evolução biológica
signifique progresso. Como se pensar em progresso quando
99% das espécies que existiram na Terra desapareceram, e
o planeta passou por várias extinções em massa? Segundo
especialistas, em menos de 5 bilhões de anos, o
hidrogênio do Sol vai se esgotar, haverá uma grande
explosão e toda a vida que depende dele vai se
extinguir. Como progresso se tudo, ao final, será
extinto? Como pensar em progresso, quando peixes que
vivem em águas profundas perderam os olhos (um órgão
sofisticado e de alto custo e inútil onde não chega a
luz solar) e, por esse motivo, sobreviveram, na luta
pela vida?
Os cientistas sociais, em grande parte também, rejeitam
o conceito de progresso. A
ideia de progresso foi inicialmente formulada por
enciclopedistas no século XVIII, que desenvolveram a
teoria do progresso universal da humanidade. Esta foi
rapidamente elevada ao status de dogma absoluto.
Essa ideia é pura ilusão, segundo grande parte dos
cientistas sociais: não há um desenvolvimento
progressivo linear das sociedades humanas. É claro que
isso de forma alguma proíbe o reconhecimento da melhoria
de certos aspectos da vida. Mas isso não o torna uma lei
obrigatória. Algo está melhorando. Algo está piorando.
Além disso, uma fase pode substituir outra. E, em
sociedades diferentes, esses ciclos podem não coincidir.
Em algum lugar agora há progresso, e em algum lugar há
regressão. [i]
Onde o progresso ao compararmos a tecnologia egípcia dos
faraós com o Egito de séculos posteriores? Como também a
Grécia de Sócrates e Platão e a Grécia de quinhentos
anos depois? Onde o progresso ao considerarmos a escola
médica de Avicena (980-1037), na Pérsia, que escreveu
mais de quarenta tratados de Medicina, com o Irã de
séculos recentes? Como pensar em progresso, examinando a
Síria de nossos dias com a Síria antes
da guerra, um destino turístico importante do
Oriente Médio, com seus mercados árabes e ruínas da
Antiguidade atraindo visitantes de várias partes do
mundo?
Pelo exposto, considerando que não se pode admitir um
progresso biológico e cultural, não faz sentido o uso
dos termos inferior e superior quando nos referimos às
formas vivas do planeta e, tampouco, às diferentes
sociedades e culturas. Trata-se de um equívoco, segundo
os acadêmicos das áreas estudadas, pensar que o homem é
superior ao cão e que este é superior à ameba. Equívoco
também afirmar que as comunidades indígenas da Amazônia
brasileira são culturalmente inferiores aos países do
Norte da Europa. Não deve haver relação de superioridade
ou inferioridade entre eles: são elementos distintos,
com caraterísticas particulares e com valor intrínseco.
Kardec viveu em uma época intelectualmente impregnada da
ideia de um progresso social e universal, e isso
influenciou fortemente seu pensamento, particularmente
quando, ao propor as leis morais que dirigem o Universo,
inseriu a Lei do progresso.
Relevante lembrar que Kardec foi contemporâneo de
Auguste Comte (criador do termo sociologia, em 1840),
que propunha uma ciência que estudasse as leis do mundo
moral, tal qual as ciências naturais estudavam as leis
naturais; e isso para moldar a vida social de forma
progressista.[ii]
Kardec aceitava a ideia de um progresso social,
relacionando-o também às mudanças na população dos
Espíritos reencarnados na Terra, conforme bem atestado
no trecho a seguir:
As renovações rápidas, quase instantâneas, que se
produzem no elemento espiritual da população, por efeito
dos flagelos destruidores, apressam o progresso social;
sem as emigrações e imigrações que de tempos a tempos
lhe vêm dar violento impulso, só com extrema lentidão
esse progresso se realizaria. É de notar-se que todas as
grandes calamidades que dizimam as populações são sempre
seguidas de uma era de progresso de ordem física,
intelectual, ou moral e, por conseguinte, no estado
social das nações que as experimentam. É que elas têm
por fim operar uma remodelação na população espiritual,
que é a população normal e ativa do globo. [iii]
Apesar disso, Kardec admite a queda dramática de muitas
civilizações, o que estaria na contramão de um progresso
linear. Ao admitir tais acontecimentos, Kardec
relaciona-os à condição dos Espíritos relacionados a
essas civilizações, conforme a questão seguinte:
Pergunta:
- A história nos mostra uma multidão de povos que após
terem sido convulsionados recaíram na barbárie. Onde
está nesse caso o progresso?
Resposta:
- [...]
os Espíritos encarnados nesse povo degenerado não são
mais os que o constituíam nos tempos do seu esplendor.
Aqueles, logo que se tornaram mais adiantados,
mudaram-se para habitações mais perfeitas e progrediram,
enquanto outros, menos avançados, tomaram o seu lugar,
que por sua vez também deixarão.[iv]
Independentemente das discussões em torno da questão –
admitir ou não um progresso social linear -
os pensamentos aplicados às questões biológicas e
sociais se modificam quando passamos a examinar a
questão espiritual, ou seja, a evolução do Espírito.
Nesse particular, os conceitos de evolução e progresso
assumem a mesma conotação: aprimoramento
intelecto-moral. Nada
em Espiritismo faz sentido, exceto à luz da evolução, ou
seja, do progresso, do melhoramento, aperfeiçoamento,
desenvolvimento das potencialidades pessoais. Segundo
Kardec, as
leis do progresso presidem à evolução universal.[v]
No texto Profissão de fé espírita raciocinada[vi],
Kardec esclarece que os
Espíritos são criados simples e ignorantes, isto é, sem
ciência e sem conhecimento do bem e do mal, porém
perfectíveis e com igual aptidão para tudo adquirirem e
tudo conhecerem, com o tempo. A princípio, eles se
encontram numa espécie de infância, carentes de vontade
própria e sem consciência perfeita de sua existência. À
medida que o Espírito se distancia do ponto de partida,
desenvolvem-se lhe as ideias, como na criança, e, com as
ideias, o livre-arbítrio, isto é, a liberdade de fazer
ou não fazer, de seguir este ou aquele caminho para seu
adiantamento, o que é um dos atributos essenciais do
Espírito.
O objetivo final de todos os Espíritos consiste em
alcançar a perfeição de que é suscetível a criatura. O
resultado dessa perfeição está no gozo da suprema
felicidade que lhe é consequente e a que chegam mais ou
menos rapidamente, conforme o uso que fazem do
livre-arbítrio.
Segundo Pierre Bourdieu,
toda disciplina é constituída por uma série de lições
ligadas por uma lógica. Isso envolve dificuldades porque
a divisão em lições e temas cria o risco de fazer a
lógica do conjunto desaparecer, e um conceito só ganha
sentido dentro da coerência de um sistema.[vii]
Em Espiritismo, a lógica que acompanha a análise de
qualquer tema é a evolução/progresso espiritual. O
ponto de vista espírita ao admitir um desenvolvimento
crescente da alma, dá sentido às relações de
superioridade e inferioridade. Isso sem conotação
pejorativa, mas representando um diferencial histórico
entre Espíritos que viveram mais ou menos tempo. Tal
como se dá com o grau de escolaridade: um
jovem que completou o ensino médio está em condição
superior, ou seja, mais avançado (progrediu mais) que
aquele que ainda se encontra no ensino fundamental.
Justificado está, segundo creio, o fato de Kardec
referir-se aos Espíritos como superiores e inferiores.
Espíritos superiores são aqueles que foram
criados antes, que viveram mais experiências de
aprendizado e, portanto, encontram-se mais esclarecidos
e conscientes da necessidade do autocontrole e do
aperfeiçoamento moral. Espíritos inferiores, por
sua vez, são mais novos, menos experientes, mais obtusos
e mais apegados as inclinações más. São transitoriamente superiores
e inferiores, nas relações que se estabelecem entre
eles, mas essa condição se dilui, por completo, com o
tempo, onde todos se encontrarão na dimensão da
sabedoria, do belo, do bom e do justo.
Ainda aqui é possível matizar os conceitos de
superioridade e inferioridade, pois dado Espírito pode
ser superior ou inferior a outro em aspectos
específicos, mas não em todos.
Segundo o sociólogo inglês Anthony Giddens, todos os
esquemas de classificação têm prós e contras; então,
como escolhemos? Uma maneira de seguir em frente, que
pode se tornar mais comum no futuro, é evitar se
comprometer com qualquer um desses esquemas amplos e
generalizantes que fatiam, organizam e reorganizam os
diversos tipos de indivíduos e sociedades do mundo.[viii] Cada
um é o que é, e deve ser visto unicamente em relação a
si mesmo, sem rótulos ou estereótipos, tendo pela frente
o combate íntimo que lhe cumpre desafiar. Afinal, a
batalha se dá em nosso mundo interior; e só importa a
nós mesmos.
[ii] Sociologia,
Anthony Giddens
[iii] A
Gênese,
cap.11, item 36
[iv] O
Livro dos Espíritos, item 786
[v] Revista
espírita, de setembro de 1859
[vii] Sociologia geral II
[viii] Sociologia,
Anthony Giddens