Constelação Familiar à Luz do
Espiritismo
A terapia familiar sistêmica, mais conhecida por
Constelação Familiar, foi criada por Bert
Hellinger (1925-2019). Bert era alemão,
católico, e se formou psicoterapeuta após deixar
o sacerdócio na África, motivado por trabalhos
de dinâmica de grupo liderados por clérigos
anglicanos na região onde era missionário.
De acordo com o site (1) de
sua família, Constelação Familiar é o nome de
uma prática na qual pessoas são colocadas como
membros representantes de uma família, uma
empresa ou um produto, para uma dinâmica em
grupo, visando descobrir os antecedentes de
falhas, doenças, desorientações, vícios,
agressões, desejos de morte e muito mais, nestes
arranjos. O procedimento seria útil sempre
quando decisões precisassem ser tomadas.
Tendo a Doutrina Espírita por princípio “as
relações do mundo material com os Espíritos ou
seres do mundo invisível (2),
buscando conduzir o espírita a ser um verdadeiro
cristão (3)”, é natural que o
Espiritismo não tenha foco em resolver problemas
de empresas ou produtos, nem tampouco problemas
humanos imediatistas. Quanto ao suporte para
tomada de decisões pessoais, somos convidados
por Santo Agostinho, diante de indecisões sobre
o valor de nossas ações, a nos perguntarmos como
a julgaríamos se fosse praticada por outra
pessoa (4). Contamos também com os
conselhos de nossos Espíritos protetores, nos
intuindo quando necessário, e pela voz da nossa
consciência (5).
Certamente, o Espiritismo não tem por objetivo
substituir nenhuma técnica psicanalista ou
psicológica. Inclusive, quando recebemos alguém
na Casa Espírita para atendimento fraterno com
indícios de necessidade de amparo psicológico ou
médico, a recomendação (6) é buscar
um especialista.
No entanto, a presente análise da Constelação
Familiar à luz do Espiritismo é pertinente, pois
há pessoas propagando a técnica em diversos
meios, como se essa fosse parte integrante da
Doutrina.
Hellinger concedeu uma longa entrevista a
Gabriele ten Hovel (7). Vamos resumir
e comentar suas explicações e afirmações mais
relevantes.
Bert explica que sua terapia procura verificar
se há alguém na família “emaranhado” nos
destinos de seus antepassados e, assim, trazer à
luz tais emaranhamentos por meio do trabalho com
constelações familiares e, dessa forma, a pessoa
conseguiria então se libertar deles com mais
facilidade.
Ora, conforme O Livro dos Espíritos,
nossas ações não foram previamente determinadas
de forma irrevogável, nossa inteligência não é
dominada pela força do destino, e temos
livre-arbítrio na escolha de nossa existência e
das provas que elegemos quando Espíritos na
erraticidade, e agora, encarnados, podemos
resistir ou ceder aos arrastamentos (8).
Assim, o bom Espírita não precisa se preocupar
com a possibilidade de ter um destino
“emaranhado” por seus antepassados, mas sim em
se esforçar para domar suas más inclinações,
dominar suas tendências materialistas e
trabalhar na sua transformação moral (3).
Ao descrever melhor os emaranhamentos, Hellinger
afirma que as pessoas revivem inconscientemente
o destino de antepassados, dando o exemplo de
uma criança entregue para adoção numa família,
numa geração anterior. Segundo ele, um
descendente dessa família irá se comportar como
se fosse ele mesmo também abandonado, e só
poderá se livrar de tal emaranhamento se
conhecer o fato, e, por intermédio da
Constelação Familiar, honrar seu antepassado,
fazendo-o assim retornar a fazer parte do
sistema familiar, e passar a olhar afetuosamente
para seus descendentes.
Nossas tribulações são expiações ou provas, para
podermos reparar o mal que fizemos e tentarmos
melhorar, começando de novo a tarefa que
falhamos em outra vida, como nos ensina Allan
Kardec (9). Assim, na hipótese de
reencarnarmos com prova ou expiação semelhante à
de um antepassado, o caminho para resolvermos o
nosso problema é a reparação de nossos atos,
aceitando nossas provas, e trabalhando
constantemente nossa transformação moral, e não
simplesmente fazendo uma declaração de honra a
um antepassado numa prática terapêutica.
Ainda segundo Hellinger, uma injustiça cometida
por antepassados seria sofrida por algum
descendente, repetidamente, pois membros
inocentes de uma família sofreriam uma injustiça
expiada por meio do emaranhamento, porque a
consciência de grupo da família não trataria com
justiça os descendentes.
Tal assertiva é frontalmente contrária aos
ensinamentos espíritas. As pessoas não expiam os
erros dos outros; lembremos a promessa Divina: “a
justiça do justo cairá sobre ele mesmo” (10).
Assim, não precisamos temer sofrer por
injustiças cometidas por antepassados de forma
alguma.
Hellinger dá exemplos do funcionamento da
Constelação Familiar, onde se colocam pessoas
para representar parentes vivos ou mortos. Cita
também um caso no qual três antepassados teriam
se suicidado devido a uma injustiça cometida por
uma bisavó, contra o filho de um primeiro
matrimônio, transferindo a propriedade ao filho
do segundo casamento. Isso teria causado o
desejo de mais um descendente de se matar, o que
fora evitado por Hellinger, ao evocar o parente
morto injustiçado e explicar a este que seu
parente agora iria anunciar para a família a
injustiça cometida contra ele e o reverenciaria.
Essa prática teria livrado a pessoa do estado de
pânico e evitado o seu suicídio.
Cremos que Bert, inconscientemente, tenha
percebido a influência da reencarnação durante
nossa vida corpórea, associando o “emaranhado”
atual com a conduta do antepassado, pois em
muitos casos, o familiar de agora foi o próprio
ancestral em existência passada
É inevitável também a associação da técnica de
Hellinger com o uso de mediunidade para fazer
regressão de memória de existências passadas.
Claro, nem a evocação de mortos e tampouco a
mediunidade são exclusividade do Espiritismo.
Apesar de não mencionar a reencarnação ou a
possibilidade da comunicação com Espíritos –
algo esperado diante de sua formação católica -
Hellinger reconhece que se expunha a um contexto
para ele incompreensível, durante as práticas
por ele chamadas fenomenológicas. Inclusive
mencionou ter visto, numa constelação, uma
criança que fora assassinada, o que chamou de
algo não visível, de fenômeno. Nós espíritas
chamamos isso de fenômeno mediúnico, e somos
convidados a atentar para necessidade das
reuniões de estudo para a prática da
mediunidade, face aos riscos de obsessão,
fascinação, e de nos iludirmos com Espíritos
enganadores (11), entre tantos
cuidados e técnicas a serem aprendidos após o
estudo básico da Doutrina. Assim, alertamos para
o risco de se escolher pessoas ao acaso para
fazerem o papel de entes mortos sem os devidos
estudos.
Segundo Bert, os filhos teriam que aceitar os
pais como são, e os pais não poderiam e nem
precisariam ser diferentes, uma vez que esses
seriam seus pais devido a sua união como homem e
mulher, e não por serem bons ou ruins.
O Espiritismo nos chama à piedade filial, ao
respeito, atenção e condescendência com nossos
pais (12). No entanto, afirmar que os
pais não precisariam ser diferentes, equivale a
negar a necessidade de evoluirmos como Espíritos
e negar a responsabilidade da paternidade, uma
missão dada por Deus aos pais para que dirijam
os filhos pelo caminho do bem (13).
Hellinger correlacionou a felicidade com a
sensação de estarmos plenamente integrados à
fase de desenvolvimento na qual nos encontramos
em dado momento, como por exemplo: se crianças,
se somos homens ou mulheres de verdade, ou ainda
pais e mães de verdade, e se somos bem-sucedidos
em nossa profissão. Ele questiona se uma
sociedade na qual só existisse gente feliz,
poderia ter força ou grandeza.
Mais uma vez, temos uma distância grande das
ideias de Hellinger quanto ao Espiritismo. Nossa
vida nos foi dada como prova ou expiação, e
assim não podemos ainda gozar de felicidade
completa na Terra (14). Podemos sim
alcançar uma felicidade relativa “tão grande
quanto o comporte” nossa existência. No
entanto, para isso, somos chamados a praticar a
Lei de Deus (15). Além disso, quanto
a ser homem ou mulher “de verdade”, vale lembrar
que o Espiritismo abomina os preconceitos (16) e,
ademais, os Espíritos não têm sexo, assim, o que
lhes importa são as provas que irão passar
durante a reencarnação (17), e não
sua posição quanto ao gênero ou sucesso
profissional. Quanto a felicidade de uma
sociedade com “gente feliz” ser o entrave para a
força e grandeza de uma sociedade, um dia
chegaremos a ser Espíritos puros, gozaremos de
felicidade inalterável, pois não mais estaremos
sujeitos às adversidades e necessidades da vida
material e assim, não mais sofreremos provas nem
expiações (18). Ora, se isso não
traduz força ou grandeza, desconheço forma
melhor de as descrevermos.
Ressaltamos também que a terapia da Constelação
Familiar é condenada pelo Conselho Federal de
Psicologia (CFP), pois vários de seus
pressupostos teóricos são contrários a
normativas, resoluções e leis relativas ao
exercício da psicologia. Segunda nota do CFP (19),
as sessões de Constelação podem levar os
participantes à estados de sofrimento ou
desorganização psíquicas, sem que haja
conhecimento técnico necessário para capacitar o
profissional a reagir adequadamente à tais
situações.
De fato, uma busca na internet por cursos
de formação de “constelador”, nome que se dá às
pessoas habilitadas a empregar o método, nos
permite afirmar que pode-se aprender a técnica
rapidamente, com uma carga horária equivalente a
poucos meses de estudo, e observamos não haver
pré-requisitos de formação em psicologia ou
psicanálise para participar de tais cursos,
dificultando assegurar aos profissionais
“formados” nos cursos, a capacitação necessária
para lidar com emoções fortes e traumas
eventualmente despertados numa sessão de
Constelação Familiar, como alerta o CFP.
A nota da CFP também cita o reconhecimento do
uso da violência como mecanismo para se
restabelecer hierarquias supostamente violadas,
incluindo a atribuição a meninas e mulheres a
responsabilidade pela violência sofrida, além da
violação de normas do CFP sobre gênero e
sexualidade.
De fato, Hellinger reafirmou a atribuição de
papeis rígidos para pais e filhos, e assim, não
estranhamos que os eventos citados pelo CFP
tenham possivelmente ocorrido em função do
eventual despreparo dos “consteladores”. Além
disso, Bert entende que as famílias onde os
homens estão em primeiro lugar se sentem
melhores em 70% dos casos contra apenas 30% dos
casos quando a mulher ocupa esse lugar. Creio
que essa afirmativa machista também explica a
reação do CFP.
A partir da entrevista de Hellinger, nos parece
que a Constelação Familiar foi embasada em suas
experiências e opiniões pessoais, carecendo de
base cientifica, justificando a nota do CFP.
Vale ressaltar, nesse particular, a importância
da ciência para o Espiritismo (20).
Dessa forma, a Constelação Familiar seria uma
prática alternativa, e assim, talvez, poderia
servir àqueles que buscam uma terapia rápida,
que promete auxiliar na tomada de decisões e
resolução de problemas materiais imediatos.
Aqueles que escolhem esse caminho, correm os
riscos aqui citados, e se submetem a uma terapia
cuja prática e pressupostos teóricos são, com
base nos conflitos aqui expostos, desalinhados
com o ensinamento Espírita.
Finalmente, cabe um esclarecimento. Há sites na
internet, supostamente espíritas, usando o
livro Constelação Familiar de Joanna de
Ângelis, como se fora uma ratificação da
Doutrina ao método. Ora, qualquer pessoa que se
dê ao trabalho de ler o livro, poderá constatar
que a autora utiliza o termo como sinônimo de
família espiritual e, em nenhum momento, advoga
a favor do método de Hellinger, de forma alguma.
Assim, esperamos ter esclarecido alguns enfoques
bem distintos entre esta prática não espírita e
a Doutrina Espírita, e os riscos de espíritas
advogarem o uso de Constelação Familiar no
âmbito do Espiritismo.
Referências:
1. Site de Constelação Familiar da família do
fundador e detentores dos direitos de uso da
marca. Disponível em LINK-1.
Acesso em 9 de setembro de 2023.
2. KARDEC,
Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de
Evandro Noleto Bezerra. 4ª ed. 5ª imp. Brasília:
FEB, 2018. Introdução, p.14.
3. KARDEC,
Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Tradução
de Evandro Noleto Bezerra. 2ª ed. 1ª imp.
Brasília: FEB, 2013. Cap. XVII item 4.
4. KARDEC,
Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de
Evandro Noleto Bezerra. 4ª ed. 5ª imp. Brasília:
FEB, 2018. Pergunta 919-A.
5. ________,
_________. Perguntas 523 e 524.
6. PEREIRA
FRANCO, Divaldo. Atendimento Fraterno.
Pelo Espírito Manoel Philomeno de Miranda.
Salvador: FEB, 1997. Página 25. Disponível em LINK-2 .
Acesso em 9 de setembro de 2023.
7. HELLINGER,
Bert; TEN HOVEL, Gabriele. Constelações
Familiares: o Reconhecimento das Ordens do Amor.
5ª edição. São Paulo: Editora
Pensamento-Cultrix, 2006.
8. KARDEC,
Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de
Evandro Noleto Bezerra. 4ª ed. 5ª imp. Brasília:
FEB, 2018. Pergunta 872.
9. KARDEC,
Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Tradução
de Evandro Noleto Bezerra. 2ª ed. 1ª imp.
Brasília: FEB, 2013. Cap. V item 8.
10. KARDEC,
Allan. O Céu e o Inferno. Tradução de
Evandro Noleto Bezerra. 2ª ed. 1ª imp. Brasília:
FEB, 2013. Cap. VI item 25 parágrafo 20.
11. KARDEC,
Allan. O Livro dos Médiuns. Tradução de
Evandro Noleto Bezerra. 2ª ed. 1ª imp. Brasília:
FEB, 2013. Cap. XXIX item 329.
12. KARDEC,
Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Tradução
de Evandro Noleto Bezerra. 2ª ed. 1ª imp.
Brasília: FEB, 2013. Cap. XIV item 3.
13. KARDEC,
Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de
Evandro Noleto Bezerra. 4ª ed. 5ª imp. Brasília:
FEB, 2018. Pergunta 582.
14. ________,
_________. Pergunta 920.
15. ________,
_________. Pergunta 921.
16. KARDEC,
Allan. A Gênese. Tradução de Evandro
Noleto Bezerra. 2ª ed. 1ª imp. Brasília: FEB,
2013. Cap. I item 36.
17. KARDEC,
Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de
Evandro Noleto Bezerra. 4ª ed. 5ª imp. Brasília:
FEB, 2018. Perguntas 201 e 202.
18. ________,
_________. Pergunta 113.
19. Notícia
sobre nota do Conselho Federal de Psicologia.
Disponível em LINK-3.
Acesso em 10 de setembro de 2023.
20. KARDEC,
Allan. A Gênese. Tradução de Evandro
Noleto Bezerra. 2ª ed. 1ª imp. Brasília: FEB,
2013. Cap I, item 16.
Rodolfo Collevatti, palestrante e conselheiro do
Centro Espírita Divino Mestre, reside em São
José dos Campos (SP).