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por Paulo Hayashi Jr.

 

A fé segundo O Livro dos Espíritos


A fé apresenta, em geral, intensa conexão com a possibilidade de salvação de uma pessoa, bem como da atitude mental e espiritual para reunir condições e recursos de melhorias. Todavia, a mesma fé apresenta ser um conceito multifacetado, de um construto no sentido metodológico, e por isso, sua definição constitutiva merece atenção e destaque. Devido ao trabalho hercúleo, é essencial que o conceito seja visto por diferentes perspectivas e jamais de forma conclusiva, para que se possa lançar olhares frutíferos e válidos.

No presente artigo, a fé é estudada sob o ângulo de O Livro dos Espíritos[1], cuja codificação por Allan Kardec representa ponto importante de demarcação do território conceitual espírita. A obra representa a “pedra fundamental” para a instalação do Consolador prometido. Mas, qual seria o uso da palavra fé? Quantos autores utilizaram tal conceito? Foi um tema recorrente ou não durante a obra?

A abordagem de análise de conteúdo possibilita esta inquirição e nos traz indícios dos motivos de uso, mas que também nos inserem indagações sem respostas definitivas. Justifica-se a delimitação do estudo somente para esta obra devido a importância capital, assim como da possibilidade de explorar em profundidade os diferentes usos do conceito. Isso não implica que o próprio codificador tenha se limitado somente com esta abordagem para o restante de suas obras. Pelo contrário.

A obra O Livro dos Espíritos foi originalmente publicada no dia 18 de Abril de 1857 e constituí o primeiro livro publicado por Allan Kardec. O que representa o nascimento da própria doutrina espírita. A obra apresenta atualmente 1019 perguntas, ainda que contava somente com 501 na primeira edição.

Apesar da expectativa que a palavra fé seja utilizada em diversas vezes no trabalho, ou que haja perguntas com o conceito, ou até mesmo questionando o que é, ou como potencializar a fé, a contagem da palavra fé foi baixa. Em todo o livro, excluindo o índice geral, a palavra fé aparece somente 28 vezes (ver apêndice). Além disso, houve repetições de certas expressões, o que permite reduzir o uso do conceito somente para seis tipos (Quadro 1).

 

Quadro 1 - Contagem do uso da palavra fé n’ O Livro dos Espíritos

Expressão

Quantidade

Boa-fé

11

Fé no futuro

4

4

Artigo de fé

2

Homens de fé

2

Com fé

2

 

A expressão “boa-fé” foi a que mais apareceu no livro, com 11 vezes. Já “fé no futuro”, quatro vezes. A palavra fé, utilizada no sentido genérico e sem uma conexão particular consta 4 vezes, ainda que se possa imaginar a junção com a expressão “com fé”. No presente trabalho, foi mantido em separado para destacar esta última também.

A palavra fé foi utilizada em sua grande maioria para responder as perguntas, tornando a explicação mais específica ou detalhada. Somente na pergunta 782 aparece o uso do conceito dentro de um questionamento.

Em relação aos autores mais frequentes do uso da palavra fé, Allan Kardec, como é de se esperar, utiliza, de forma assinada com seu nome, quatro vezes. Uma vez na introdução e as restantes nas notas explicativas, em especial, com uso de trechos retirados da Revista Espírita (1863 e 1868). 

Na sua grande maioria, a palavra fé é utilizada de forma anônima, sem possibilidade de identificação do autor. Dos diferentes autores espirituais presentes na obra, é possível identificar a utilização de uma única vez por Platão, o apóstolo Paulo e São Luís. Todos, na Parte 4, Capítulo 2. Em relação a distribuição do uso nos capítulos e partes, há uma maior concentração na segunda metade do livro (Quadro 2).

 

Quadro 2 - Distribuição do uso da palavra fé no livro

 

Frequência

Introdução

1

Parte 2 - Cap. 1

1

Parte 2 - Cap. 2

1

Parte 2 - Cap. 3

1

Parte 2 - Cap. 5

1

Parte 2 - Cap. 8

2

Parte 2 - Cap. 9

3

Parte 3 - Cap. 2

1

Parte 3 - Cap.8

3

Parte 4 - Cap. 1

5

Parte 4 - Cap. 2

3

Conclusão

3

Nota Explicativa

3

Total

28

 

Não houve nenhuma utilização da palavra fé na “Parte Um”, nas causas primárias, de O Livro dos Espíritos. A Parte 2 (Do mundo espírita ou mundo dos Espíritos) apresenta 9 vezes a palavra fé. A Parte 3 (Das Leis Morais), 4 vezes. Seguida de 8 vezes na próxima divisão (Das esperanças e consolações). Já nas conclusões, somente 3 vezes. O mesmo número nas notas explicativas apresentadas pelo codificador.  Individualmente, o capítulo com a apresentação do maior número de utilização da palavra fé foi o capítulo 1 da 4ª parte do livro com 5 vezes.

Ao verificar o vocábulo, não mais no sentido de análise de conteúdo, mas de análise de discurso, é possível perceber o diferente uso da palavra fé, ainda que de forma complementar.  Por exemplo, em muitas situações a expressão “boa-fé” pode ser substituída por: boa índole, intenção, caráter. O que torna distintivo de “com fé”, “fé no futuro” ou “artigo de fé”. O Quadro 3 explicita algumas maneiras de representar os diferentes significados.

 

Quadro 3 - Expressões intercambiais

Expressão

Sinônimos

Boa-fé

Boa índole, moral, boa intenção, caráter

Confiança, esperança, inspiração, crescimento interior

Fé no futuro

Esperança, melhoras, alcance dos resultados.

Artigo de fé

Boas intenções, inspiração, sacrifício, credibilidade moral

Homens de fé

Resoluto, confiante, religioso.

Com fé

Confiança, esperança, resiliência, com moral

 

Em outras palavras, a fé pode ser vista tanto como um produto em si, quanto o processo e recursos que levam aos resultados desejados, em especial, no tempo futuro.

Apesar da frequência quantitativa relativamente limitada, a diferença dos tipos de uso faz com que, qualitativamente, a fé seja um elemento diverso e valioso para expressar determinadas nuances. Entretanto, percebe-se a ausência de certas expressões conhecidas no meio espírita tal como a “fé raciocinada”. O uso virá a ser feita somente em trabalhos posteriores do Espiritismo.

O caráter mais técnico e objetivo pode justificar o número limitado do uso do conceito na obra O Livro dos Espíritos. Essa característica também já é conhecida no movimento espírita, em especial ao se destacar o tripé do Espiritismo como elemento da ciência, da filosofia e da religião, bem como o progresso e harmonia da obra do codificador através das demais publicações. Além disso, há ênfases diferentes em cada uma das partes, sendo a área religiosa consolidada com a publicação de O Evangelho segundo o Espiritismo. Cabe ao Livro dos Espíritos ser tanto o trabalho da verdade prometida, quanto da possibilidade de ir além das fundações iniciais do sábio da antiguidade, ou da virada da história através de Jesus Cristo. Com O Livro dos Espíritos vem a ontologia da imortalidade do espírito, bem como as leis morais, as quais servem de fundação de uma filosofia e ciência transcendental com vistas aos reinos mais elevados da pátria espiritual.

Se um dia, na Gênesis, a árvore proibida do conhecimento foi a alegoria utilizada para o despertar da consciência, o que permite ao ser humano se afastar do instinto e da natureza animal.

A fé, por ser valiosa demais, não pode ser encarcerada em poucas definições, mas tampouco se ausentar como recurso, processo e resultado desta maravilha chamada vida.

A maturidade espiritual exige o uso com sabedoria desse conceito, sem descambar para os extremos que prejudicam o raciocínio, a inteligência, a experiência. Que este pequeno artigo possibilite estudos mais aprofundados no tema da fé, sem se perder na cegueira estéril, tampouco no misticismo desnecessário, para que as oportunidades não sejam desperdiçadas e se fortaleça a gratidão para com Deus e seus mensageiros[2].


Apêndice:


Trechos de O Livro dos Espíritos e a palavra “Fé”
 

Passagem

Página

1

Dirigimo-nos aos de boa-fé

16

2

Comunicam-se complacentemente com os que procuram de boa-fé a verdade e cuja alma já está bastante desprendida das ligações terrenas para compreendê-la.

97

3

Haverá nisso alguma coisa de antirreligioso? Muito ao contrário, porquanto os incrédulos encontram aí a fé e os tíbios a renovação do fervor e da confiança. O Espiritismo é, pois, o mais potente auxiliar da religião. -

 113

4

A individualidade da alma nos era ensinada em teoria, como artigo de fé. O Espiritismo a torna manifesta e, de certo modo, material.

 116

5

Que crédito houvera merecido e que autoridade teria tido, entre povos cultos, uma religião fundada em erros manifestos e que os impusesse como artigos de fé?

150

6

Tratai de distinguir essas duas espécies de sonhos nos de que vos lembrais, do contrário cairíeis em contradições e em erros funestos à vossa fé.” 

217

7

Aquele que os estudar de boa-fé e sem prevenções não poderá ser materialista, nem ateu.”

229

8

Os Espíritos imperfeitos são instrumentos próprios a pôr em prova a fé e a constância dos homens na prática do bem

239

9

O efeito de torná-las ridículas, se procedem de boa-fé.

267

10

“Aqueles a quem chamais feiticeiros são pessoas que, quando de boa-fé, gozam de certas faculdades, como sejam a força magnética ou a dupla vista.

268

11

Agrada-lhe a prece, quando dita com fé, com fervor e sinceridade

308

12

782 - Não há homens que de boa-fé obstam ao progresso, acreditando favorecê-lo, porque, do ponto de vista em que se colocam, o veem onde ele não existe?

353

13

De duas nações que tenham chegado ao ápice da escala social, somente pode considerar-se a mais civilizada, na legítima acepção do termo, aquela em que exista menos egoísmo, menos cobiça e menos orgulho; em que os hábitos sejam mais intelectuais e morais do que materiais; em que a inteligência possa desenvolver-se com maior liberdade; em que haja mais bondade, boa-fé, benevolência e generosidade recíprocas.

359

14

Tendo-se a escravidão introduzido nos costumes de certos povos, possível se tornou que, de boa-fé, o homem se aproveitasse dela como de uma coisa que lhe parecia natural.

372

15

“Com relação à vida material, é a posse do necessário. Com relação à vida moral, a consciência tranquila e a fé no futuro.”

414

16

“O Espírito é sensível à lembrança e às saudades dos que lhe eram caros na Terra, mas uma dor incessante e desarrazoada o toca penosamente, porque, nessa dor excessiva, ele vê falta de fé no futuro e de confiança em Deus e, por conseguinte, um obstáculo ao adiantamento dos que o choram e talvez à sua reunião com estes.”

419

17

“Há e para ela é uma dura expiação, mas a responsabilidade da sua desgraça recairá sobre os que lhe tiverem sido os causadores. Se a luz da verdade já lhe houver penetrado a alma, em sua fé no futuro haurirá consolação

422

18

Ao justo, nenhum temor inspira a morte, porque, com a fé, tem ele a certeza do futuro

423

19

“Efeito da ociosidade, da falta de fé e, também, da saciedade - p. 424

424

20

Limitada tendes, é certo, a vossa razão humana, porém, tal como a tendes, ela é uma das penas e gozos futuros, dádiva de Deus e, com o auxílio dessa razão, nenhum homem de boa-fé haverá que de outra forma compreenda a eternidade dos castigos

450-1

21

Homens de fé ardente e viva, vanguardeiros do dia da luz, mãos à obra, não para manter fábulas que envelheceram e se desacreditaram, mas para reavivar, revivificar a verdadeira sanção penal, sob formas condizentes com os vossos costumes, os vossos sentimentos e as luzes da vossa época.

452

22

Todos vós, homens de fé e de boa vontade, trabalhai, portanto, com ânimo e zelo na grande obra da regeneração, que colhereis pelo cêntuplo o grão que houverdes semeado

460

23

Apelo para todos os adversários de boa-fé e os adjuro a que digam se se deram ao trabalho de estudar o que criticam.

461

24

Demonstrando a existência e a imortalidade da alma, o Espiritismo reaviva a fé no futuro, levanta os ânimos abatidos, faz suportar com resignação as vicissitudes da vida

463

25

Se errônea for alguma destas, cedo ou tarde a luz para ela brilhará, se a buscar de boa-fé e sem prevenções

474

 

Notas Explicativas:

Trechos do uso palavra “Fé” nas notas explicativas

26

Hoje creem e sua fé é inabalável, porque assentada na evidência e na demonstração, e porque satisfaz à razão.

477

27

Tal é a fé dos espíritas, e a prova de sua força é que se esforçam por se tornarem melhores, domarem suas inclinações más e porem em prática as máximas do Cristo, olhando todos os homens como irmãos, sem acepção de raças, de castas, nem de seitas, perdoando aos seus inimigos, retribuindo o mal com o bem, a exemplo do divino modelo

477

28

Nós trabalhamos para dar a fé aos que em nada creem;

480


 

[1] Foi utilizada a versão em PDF de O Livro dos Espíritos, tradução Guillon Ribeiro, 93a edição, 2013, disponível no site da FEB.

[2] Artigo dedicado aos meus pais, Paulo Hayashi e Ioko Ikefuti Hayashi, que já se encontram na Pátria Espiritual.


    

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita