Talentos e
meritocracia
O economista,
professor e
escritor
norte-americano
Joseph Stiglitz,
vencedor do
Prêmio Nobel de
Economia em
2001, tem uma
frase muito
interessante no
tocante à
sociedade
injusta e
desigual que o
capitalismo
produziu e na
qual estamos
atualmente
inseridos. Diz
ele: “90% dos
meninos nascidos
em lares pobres
morrem pobres,
não importa o
quão capazes
sejam. Mais de
90% dos meninos
nascidos em
lares ricos
morrem ricos,
não importa o
quão estúpidos
sejam. Portanto,
o mérito não é
um valor.”
Durante o
período escolar,
estudei em
colégios
públicos e
privados e
também em cursos
de idiomas. Em
todos, deparei
com
contemporâneos
interessados em
estudar e com
outros tantos
que não estavam
nem aí para
matemática,
língua
portuguesa,
história e
congêneres. Só
serviam para
atrapalhar, já
que tumultuavam
a aula,
irritavam os
professores e
inspetores e,
por isso, só
tiravam nota
baixa e viviam
repetindo o ano
e até trocando
de instituição
de ensino.
Muitos dos
baderneiros das
escolas públicas
foram largando o
estudo de mão e,
hoje,
provavelmente
exercem
profissões tidas
como
subalternas. Já
os bagunceiros
dos colégios
particulares,
apesar de não
quererem nada
com a Hora do
Brasil, como
dizia minha mãe,
provavelmente
conseguiram
estudar numa
universidade
privada
(bancados pelos
pais) e, depois,
foram trabalhar
em algum negócio
da família para,
mais adiante se
tornarem os
donos, já que
são os legítimos
herdeiros, “não
importa o quão
estúpidos
sejam”. E como
estupidez,
entenda-se não
só o
desinteresse
pelo saber, mas
também a
truculência com
que devem tratar
os subordinados,
já que costumam
se julgar
superiores por
terem uma
posição social
melhor, embora
não sejam ricos,
apesar de crerem
que são.
Os colegas
estudiosos que
não eram tão bem
aquinhoados
também tiveram
caminhos
variados. Muitos
lutaram
arduamente e
conseguiram
entrar para a
universidade.
Outros não
conseguiram
vencer as
adversidades e
pararam pelo
caminho,
infelizmente.
São os talentos
que não
conseguiram vir
à tona. Como diz
o professor,
jurista e
escritor Alysson
Mascaro, em
entrevista
concedida à
jornalista
Hildegard Angel
na TV 247, há
muitos
escultores,
atores e afins
cujos talentos
sequer brotaram.
A engrenagem da
desigualdade
social os
relegou ao
ostracismo da
eterna
precariedade
traduzida em
educação
deficiente,
saúde sucateada,
parcas condições
de moradia e
transporte,
salários baixos
etc.
Os Evangelhos de
Marcos e Mateus
narram a
interessante
Parábola dos
Talentos, uma
das muitas que
Jesus legou à
humanidade.
Ricas de
significado, as
parábolas
atravessam os
tempos e volta e
meia revelam uma
faceta nova. Por
isso, são
atemporais e
atuais, como
todo ensinamento
do Mestre.
Talento, segundo
Renato Silva de
Araújo, teólogo
e bacharel em
ciências da
religião, era
uma medida de
grandeza que
corresponderia
hoje a 59kg de
ouro maciço. Por
isso, quem
possuía talentos
era cheio do
ouro,
literalmente.
Pesquisei na
internet quanto
vale 1kg de ouro
e encontrei a
seguinte cotação
datada de 3 de
dezembro de
2023: R$ 324
mil, valor
deveras
considerável.
Isso quer dizer
que um talento,
ou 59kg de ouro,
vale, segundo
essa cotação,
pouco mais de R$
19 milhões! É
talento que não
acaba mais!
A Parábola dos
Talentos conta a
história de um
homem que era
dono de muitas
terras. Um dia
ele precisou
fazer uma longa
viagem e chamou
os três servos
mais próximos.
Motivo:
confiá-los a
guarda dos
talentos que
possuía. O
primeiro servo
recebeu cinco
talentos, ou
seja, por volta
de 295kg de ouro
ou R$ 95,6
milhões. Uma
dinheirama! Ao
segundo, foram
entregues dois
talentos, o que
daria 118kg ou
R$ 38,2 milhões.
Já o terceiro e
último servo
ficou com a
incumbência de
zelar pelos 59kg
referentes a um
único talento,
que equivalem,
no momento em
que escrevo
estas linhas,
aos R$ 19
milhões já
citados. Feita a
divisão, o
senhor das
terras viajou.
Aí começa a
brincadeira e
também a
polêmica, já que
comentarei não
só a
interpretação
habitual da
parábola como
também a que o
Renato Silva de
Araújo
apresenta.
O servo que
recebeu cinco
talentos
imediatamente os
negociou e
dobrou o
capital. O
segundo servo
fez o mesmo com
os dois talentos
recebidos. O
terceiro, por
sua vez, fez um
buraco no chão e
lá deixou o
talento que lhe
fora confiado.
Como, à época,
não havia bancos
ou operações
financeiras,
quem era
possuidor de
grandes tesouros
os enterrava, a
fim de se
precaverem de
ladrões e
saqueadores.
Tempos depois, o
dono das terras
voltou e chamou
os três servos
para prestarem
as contas. O
primeiro
devolveu o
patrimônio
dobrado, idem o
segundo. O
patrão, muito
satisfeito,
disse o seguinte
para cada um
deles: “Bom e
fiel servidor,
pois que foste
fiel em pouca
coisa,
confiar-te-ei
muitas outras;
compartilha da
alegria do teu
senhor”. O
terceiro servo,
que não
multiplicou o
talento que lhe
foi confiado,
devolveu o dito
cujo e falou:
“Senhor, sei que
és homem severo,
que ceifas onde
não semeaste e
colhes de onde
nada puseste;
por isso, como
te temia,
escondi teu
talento na
terra; aqui o
tens, restituo o
que te
pertence”. O
latifundiário,
nada satisfeito,
esbravejou: “Servidor
mau e
preguiçoso! Se
sabias que ceifo
onde não semeei
e que colho onde
nada pus, devias
pôr o meu
dinheiro nas
mãos dos
banqueiros, a
fim de que,
regressando, eu
retirasse com
juros o que me
pertence”.
Então, deu a
seguinte ordem a
outros
subordinados:
“Tirem-lhe,
pois, o talento
que está com ele
e deem-no ao que
tem dez
talentos;
porquanto,
dar-se-á a todos
os que já têm e
esses ficarão
cumulados de
bens. Quanto
àquele que nada
tem,
tirar-se-lhe-á
mesmo o que
pareça ter, e
seja esse
servidor inútil
lançado nas
trevas
exteriores, onde
haverá prantos e
ranger de
dentes”.
(Mateus, 25:14
a 30.)
O termo
meritocracia
entrou em voga
de uns anos para
cá e traduz a
ideia de que os
que mais se
esforçam possuem
mais méritos e,
por conseguinte,
mais recursos
materiais,
regalias etc.
Nada contra a
pessoa ter
trabalhado duro
para conseguir
uma situação
materialmente
mais estável.
Esse conceito,
todavia, supõe
que todas as
pessoas tiveram
o mesmo ponto de
partida, o que
não é verdade.
Se um menino
vende bala em
sinais de
trânsito desde
os 8 anos de
idade, de
domingo a
domingo, faça
chuva ou faça
sol, e estuda
numa escola
pública com
poucos recursos,
ele tende a não
ir muito além.
Provavelmente,
largará os
estudos ainda
cedo. E mesmo se
terminar, será
de forma
precária e
estará fadado a
servir de mão de
obra barata para
as classes
dominantes. É o
que vemos
acontecer com
frequência,
infelizmente.
Por outro lado,
o menino de
família abastada
estudará em
colégio
particular,
levará uma vida
sem grandes
sobressaltos e
entrará com
facilidade numa
conceituada
universidade.
Tristes
contradições!
A literatura
cristã
tradicional
geralmente
interpreta o
senhor das
terras como
sendo Deus, que
distribuiu os
talentos
conforme a
capacidade de
cada um e se
afastou para
deixar os três
utilizarem o
livre-arbítrio.
Como o terceiro,
por imaturidade,
medo ou
preguiça,
enterrou o
talento e o
devolveu ao
senhor como fora
recebido, foi
tachado de mau
servo e jogado
nas trevas
exteriores (o
mundo em que
vivemos), para
aprender a ser
corajoso,
perseverante,
assertivo, tenaz
etc. Um processo
de lapidação
espiritual que,
segundo os
ensinamentos
espíritas,
requer o
concurso de
várias
encarnações.
Só que, por
estarmos numa
sociedade que
não trata todos
de forma
igualitária, nem
todos têm o
mesmo ponto de
partida. Por
isso, é
extremamente
injusto e
desumano dizer
que é por falta
de esforço, fé,
dedicação ou
similar que
muitos não
chegam ao topo
da pirâmide. Na
maioria
esmagadora dos
casos, é por
falta de
condições
básicas de
saúde, higiene,
educação,
trabalho,
lazer... Em
suma: falta de
justiça social.
Como bem observa
Alysson Mascaro
na já citada
entrevista,
muita gente
chega e vai
embora do
planeta sem
sequer ter a
chance de
descobrir que
poderia ter sido
uma profissional
das ciências
exatas ou
humanas. E mesmo
se não tivesse
pendor para ir
adiante nos
estudos,
encontraria pelo
menos um
ambiente
igualitário apto
a proporcionar
vida digna e
oportunidades
iguais a todos,
sem distinção.
O inquietante e
revelador artigo
do Renato Silva
de Araújo
observa que as
parábolas
ensinadas pelo
Cristo falam
muito da vida
camponesa e
socioeconômica
da região em que
ele viveu,
principalmente
quando o assunto
é trabalho. E se
prestarmos
atenção, quase
todas as
parábolas tocam
na questão do
trabalho –
Parábola do
Filho Pródigo,
do Semeador, dos
Trabalhadores da
Vinha, do Festim
das Bodas e, é
claro, a dos
Talentos, que é
objeto deste meu
texto e que,
segundo o artigo
do Renato, deixa
evidente o
sistema
greco-romano
(Jerusalém
estava sob o
jugo de Roma) de
exploração do
povo pobre. Para
corroborar essa
intepretação,
ele se vale de
um trabalho do
Prof. Pedro Lima
Vasconcellos,
doutor em
Ciências Sociais
pela Pontifícia
Universidade
Católica de São
Paulo (PUC-SP).
As referências
bibliográficas
estão no final
deste artigo.
Jesus, na
Parábola dos
Talentos,
estaria,
portanto,
denunciando a
opressão que seu
povo sofria do
Império Romano,
que obrigava os
servos a
conquistarem
mais e mais bens
para o fausto de
seus senhores,
que não
trabalhavam e
viviam na
opulência.
Os dois
primeiros servos
deixaram o
senhor
satisfeito
porque foram tão
gananciosos
feito ele. Já o
terceiro caiu em
desgraça porque
se recusou a
laborar para
alguém que nada
produzia. Isso
estaria claro
quando o servo
diz que o patrão
colhe onde não
plantou e junta
onde não semeou,
ou seja, se vale
da força de
trabalho alheia
para enriquecer.
Se nós, os
espíritas,
interpretarmos
esse senhor como
sendo Deus, que
é soberanamente
justo e bom,
haverá uma
contradição, já
que Deus não
pune ninguém,
principalmente
um servo que, a
princípio, não
fez nada de
ilícito com o
talento
recebido. Pelo
contrário,
guardou o que
não lhe
pertencia e o
devolveu, em seu
devido tempo, ao
verdadeiro dono.
Mas se formos
pela lógica
capitalista da
exploração da
mão de obra
alheia e da
acumulação
indiscriminada
de bens, o servo
que enterrou o
talento passa de
vilão a herói da
parábola.
Afinal, ele
contesta a
ganância de quem
o emprega e
também a
meritocracia, já
que o senhor
retribui
conforme a
quantidade de
trabalho
realizado em
prol de si
próprio. Ou
seja, quanto
mais a pessoa se
esfalfar para
contribuir para
enriquecimento
do patrão que já
é pra lá de rico
(algo
corriqueiro até
hoje), mais
méritos ela
terá. Mérito
este traduzido
na forma de uma
bonificação,
apesar de o
primeiro e o
segundo servos
continuarem
fatigando a si
próprios para
encher os cofres
do
megaempresário.
Caso não o
façam, até o que
não possuem lhes
será tirado,
como ressalta a
parte final da
Parábola.
Ao mesmo tempo
em que contesta
a meritocracia,
a Parábola dos
Talentos
apresenta a
igualdade como
uma lógica muito
mais valorativa,
já que a atitude
do terceiro
servo sugere que
os trabalhadores
não sejam
avaliados pela
quantidade do
que foi
produzido. Ele
nos induz a
perceber que
todos devem
receber de forma
equânime, sem
exigências
extenuantes, a
fim de terem uma
vida digna, sem
necessidade de
irem parar nas
trevas
exteriores. Essa
ideia, aliás,
está bem mais
clara na
Parábola dos
Trabalhadores da
Vinha, onde
todos receberam
o mesmo salário,
independentemente
de terem
começado a
trabalhar no
início, no meio
ou no fim do
dia. Sendo
assim, Joseph
Stiglitz tem
razão ao afirmar
que o mérito não
deve ser levado
em conta como
valor.
Sei que para
alguns
companheiros de
doutrina pode
soar estranho eu
ter ido
pesquisar sobre
o assunto em
textos não
espíritas. Mas
como o
espiritismo é
ciência e
filosofia antes
de ser religião,
tenhamos em
mente que
história,
sociologia,
política,
antropologia
etc. também são
ciências – as
ciências
humanas. São
elas que nos
fazem entender,
por exemplo, o
contexto social,
político e
econômico da
época do Cristo.
Bibliografia:
1. ARAÚJO,
Renato Silva de
– A Parábola dos
Talentos na
perspectiva das
ciências da
religião.
Disponível em LINK-1
2. CONVERSAS
COM HILDEGARD
ANGEL TV 247 –
Alysson Mascaro.
Disponível em LINK-2
3. KARDEC,
Allan – “O
Evangelho
segundo o
espiritismo”, 2ª
edição, 2018,
Federação
Espírita
Brasileira
(FEB), Brasília,
DF.
4. OURO
HOJE –
Disponível em LINK-3.
5. VASCONCELLOS,
Pedro Lima –
Quem tiver
ouvidos, ouça:
vozes e escritas
no contexto do
cristianismo
primitivo.
Revista Projeto
História, junho
de 2023, São
Paulo, SP.