Especial

por Ricardo Baesso de Oliveira

Cinco problemas do conceito de mérito

Parte 2 e final

Estudos mostram que os níveis de desempenho escolar são sensivelmente influenciados pelo tipo de lar de onde as pessoas venham. Crianças de lares mais abastados, cujos pais se interessam bastante por suas habilidades de aprendizagem, e onde existam livros abundantes e um local para estudo, têm mais chances de se saírem bem do que aquelas de grupos de menor renda, entre os quais esses aspectos podem não estar disponíveis.[1]

Kardec comentou que pode acontecer que o Espírito conserve em suas novas existências os traços psíquicos das existências anteriores, mas não sendo a mesma, a posição social, ele pode sofrer enormes transformações. Segundo ele se de senhor ele se torna escravo, suas inclinações serão muito diferentes e teríeis dificuldades em reconhecê-lo. O Espírito sendo o mesmo, nas diversas encarnações, suas manifestações podem ter, de uma para outra, certas semelhanças. Estas, entretanto, serão modificadas pelos costumes da nova posição. [2]

Na Revista espírita, após narrar o suicídio de uma jovem senhora que se matara ante o desespero de não ter como alimentar os filhos, Kardec reproduz o pensamento do Espírito Lamennais: Esta infeliz mulher é uma das vítimas de vosso mundo, de vossas leis e de vossa sociedade. Deus julga as almas, mas também julga os tempos e as circunstâncias; julga as coisas forçadas e o desespero; julga o fundo e não a forma. E ouso afirmar: esta infeliz morreu não por crime, mas por pudor, por medo da vergonha. É que onde a justiça humana é inexorável, julga e condena os fatos materiais, a justiça divina constata o fundo do coração e o estado da consciência [...] [3]

c) Circunstâncias e oportunidades: as oportunidades não são as mesmas para todas as pessoas. Muitas pessoas admitem que seu sucesso na vida tem muito a ver com fatos que se deram, dos quais eles não tiveram nenhuma participação.

Também aqui, alguém comentará, que as facilidades e dificuldades que encontramos na vida, tem a ver com nosso passado reencarnatório, portanto, relaciona-se com questões que envolvem mérito ou demérito. Também aqui, isso é apenas parcialmente correto. Kardec bem definiu que muitos acidentes no curso da vida não são anteriormente previstos: a fatalidade só consiste nestas duas horas, aquelas em que deveis aparecer e desaparecer neste mundo. [4]Assim, mesmo considerando a história reencarnatória de cada um e a atuação dos Espíritos desencarnados nos acontecimentos da vida, a imprevisibilidade é algo que não pode ser desconsiderado.  

Um estudo mostrou que adolescentes tinham um desempenho 10% pior nos testes escolares, na semana em que se dava um homicídio no bairro em que residiam. [5]Quantos vezes jovens e adultos são prejudicados em concursos, ou entrevistas de emprego, em virtude de uma enfermidade imprevista, ou de acontecimentos familiares, que geram forte estado mental de perturbação!


Quinto

Há motivo para duvidar que até mesmo uma meritocracia perfeitamente realizada (se isso fosse possível) seja o caminho para uma sociedade justa. O ideal meritocrático está relacionado à mobilidade, não à igualdade. Ele não diz que há grandes lacunas entre ricos e pobres. O que importa para a meritocracia é que todo mundo tenha uma oportunidade igual para subir as escadas do sucesso; não há nada a dizer sobre qual deveria ser a distância entre os degraus da escada. O ideal meritocrático não é remédio para a desigualdade; ele é justificativa para desigualdade, pois legitima as recompensas generosas que o mercado concede aos vencedores e os pagamentos parcos que oferece a trabalhadores sem diploma universitário.  Em 2014, CEOs de grandes empresas estadunidenses receberam trezentas vezes mais que o trabalhador padrão.[6]

A mais trágica indicação disso, segundo Michael Sandel, é o aumento de “mortes por desespero”. O termo foi cunhado por dois economistas da Universidade de Princeton (USA), para referir-se a mortes autoinfligidas: suicídio, abandono dos tratamentos, overdose de drogas, doenças hepáticas relacionadas ao alcoolismo. Acredita-se que as “mortes por desespero” respondem pela queda da expectativa de vida na América do Norte, entre os anos de 2014 a 2017, fato surpreendente, porque em todo o século vinte a expectativa de vida aumentou progressivamente. A “morte por desespero” é tipicamente observada em homens de meia idade, sem diploma universitário; as principais vítimas da globalização e da tirania do mérito.[7]

Kardec reconhece que são os mais fortes que fazem as leis e eles as
fizeram para si,
 [8] mas que a justiça divina quer que todos participem do bem,  que ela não pactua com a vigência de leis feitas pelo forte em detrimento do fraco; [9] que com menos parcialidade se exerça a justiça; que o fraco encontre sempre amparo contra o forte; que a vida do homem, suas crenças e opiniões sejam melhormente respeitadas; que exista menor número de desgraçados; enfim, e que todo homem de boa vontade esteja certo de lhe não faltar o necessário. [10]

Ansiando por uma sociedade justa e fraterna, Kardec coloca: Os homens, quando se houverem despojado do egoísmo que os domina, viverão como irmãos, sem se fazerem mal algum, auxiliando-se reciprocamente, impelidos pelo sentimento mútuo da solidariedade. Então, o forte será o amparo e não o opressor do fraco e não mais serão vistos homens a quem falte o indispensável, porque todos praticarão a lei de justiça[11]

As considerações expostas nos sensibilizam para o desenvolvimento de uma visão diferente dos “sucessos” e “fracassos” da vida. O modo de pensar sobre quem merece o quê não é moralmente defensável. Uma visão que considera a evolução como algo coletivo e solidário é a única que se sustenta ante a proposta universalista da Doutrina espírita.

Gustavo Geley, pesquisador espírita morto em 1924, se valeu da expressão evolução solidária. Geley se referia à necessidade de entendermos o desenvolvimento espiritual, pensamento central da Doutrina espírita, como um esforço coletivo em prol do aprimoramento, não unicamente pessoal, mas de toda a coletividade.

Escreveu: As suas consequências práticas [da reencarnação] são fáceis de conceber. Antes de tudo, ela impõe o trabalho e o esforço; não o esforço isolado, a luta pela vida egoísta, mas o esforço solidário, porque tudo o que favorece ou retarda a evolução de outrem e a evolução geral favorece ou retarda a evolução de qualquer membro da coletividade.[12]

Embora a evolução se dê também na intimidade de cada um, na expansão pessoal dos recursos cognitivos e afetivos, o enfoque exclusivista dessa evolução neutraliza a própria dinâmica do processo, pois se cristaliza no egoísmo, a fonte de todas as imperfeições humanas.

Todas as condições afeitas a corporeidade – provas, expiações e missões - nunca são condições isoladas, únicas, restritas ao indivíduo em si mesmo. Tratam-se de eventos coletivos, que relacionam entre si todas as pessoas vinculadas a ele. O Espírito maduro renuncia às expectativas de realização unicamente pessoal para investir no bem-estar coletivo. Por amor, por altruísmo, por compromisso ao belo, ao bom, ao nobre e ao justo, ele assume tarefas, às vezes, de grande renúncia, e sente-se f

eliz com isso.

Ou evoluímos juntos, ou ninguém avançará sozinho. A paz de espírito jamais será conquista da alma egoísta. Ela se estabelece naqueles que estão fazendo o que lhes compete fazer. Ninguém cai sozinho. Ninguém se ergue sozinho. Nossas interações vitais são tão profundas, que nunca sabemos diante de um ato indigno ou de um ato nobre onde localizar a maior culpa e o maior mérito.

Graças a essa solidariedade essencial, os atos individuais têm uma repercussão inevitável sobre as condições vitais de tudo que pensa, de tudo que vive, de tudo que é. Lembra Geley que na evolução dos seres e dos mundos está assegurada uma espécie de colaboração geral graças à qual todo esforço no sentido indicado pela lei moral ou toda violação dessa lei tem sua reação coletiva além de sua reação individual.

Não há responsabilidade exclusivamente individual a um ato qualquer bom ou mau; como não há para esse ato, sanção exclusivamente individual. Tudo o que se faz, tudo o que se pensa, no bem ou no mal; tudo o que se traduz por uma impressão emotiva, uma alegria ou uma dor, em um indivíduo qualquer, se repercute a todos e se assimilam a todos. Não há decadência ou progresso que não sejam solidários.

 


[1] Sociologia, Anthony Giddens.

[2] LE item 216

[3] O padeiro desumano–suicídio RE, Maio/1862.
[4] LE item 859

[5] Anatomia da violência, Adrian Reine.

[6] Michael Sandel, A Tirania do mérito.

[7] Michael Sandel, A tirania do mérito.

[8] LE, item 795

[9] LE, item 781-a

[10] LE item 793

[11] LE, item 916

[12] Resumo da Doutrina espírita, terceira parte.

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita