Estudos mostram que os níveis de desempenho
escolar são sensivelmente influenciados pelo tipo de lar de onde as
pessoas venham. Crianças de lares mais abastados, cujos pais se
interessam bastante por suas habilidades de aprendizagem, e onde existam
livros abundantes e um local para estudo, têm mais chances de se saírem
bem do que aquelas de grupos de menor renda, entre os quais esses
aspectos podem não estar disponíveis.[1]
Kardec comentou que pode acontecer que o Espírito conserve em suas novas
existências os traços psíquicos das existências anteriores, mas não
sendo a mesma, a posição social, ele pode sofrer enormes transformações.
Segundo ele se
de senhor ele se torna escravo, suas inclinações serão muito diferentes
e teríeis dificuldades em reconhecê-lo. O Espírito sendo o mesmo, nas
diversas encarnações, suas manifestações podem ter, de uma para outra,
certas semelhanças. Estas, entretanto, serão modificadas pelos costumes
da nova posição. [2]
Na Revista espírita, após
narrar o suicídio de uma jovem senhora que se matara ante o desespero de
não ter como alimentar os filhos, Kardec reproduz o pensamento do
Espírito Lamennais: Esta infeliz mulher é uma das vítimas de vosso
mundo, de vossas leis e de vossa sociedade. Deus julga as almas, mas
também julga os tempos e as circunstâncias; julga as coisas forçadas e o
desespero; julga o fundo e não a forma. E ouso afirmar: esta infeliz
morreu não por crime, mas por pudor, por medo da vergonha. É que onde a
justiça humana é inexorável, julga e condena os fatos materiais, a
justiça divina constata o fundo do coração e o estado da consciência
[...] [3]
c)
Circunstâncias e oportunidades: as oportunidades não são as mesmas para
todas as pessoas. Muitas pessoas admitem que seu sucesso na vida tem
muito a ver com fatos que se deram, dos quais eles não tiveram nenhuma
participação.
Também
aqui, alguém comentará, que as facilidades e dificuldades que
encontramos na vida, tem a ver com nosso passado reencarnatório,
portanto, relaciona-se com questões que envolvem mérito ou demérito.
Também aqui, isso é apenas parcialmente correto. Kardec
bem definiu que muitos acidentes no curso da vida não são anteriormente
previstos: a fatalidade só consiste nestas duas horas, aquelas
em que deveis aparecer e desaparecer neste mundo. [4]Assim,
mesmo considerando a história reencarnatória de cada um e a atuação dos
Espíritos desencarnados nos acontecimentos da vida, a imprevisibilidade
é algo que não pode ser desconsiderado.
Um estudo mostrou
que adolescentes tinham um desempenho 10% pior nos testes escolares, na
semana em que se dava um homicídio no bairro em que residiam. [5]Quantos
vezes jovens e adultos são prejudicados em concursos, ou entrevistas de
emprego, em virtude de uma enfermidade imprevista, ou de acontecimentos
familiares, que geram forte estado mental de perturbação!
Quinto
Há motivo para
duvidar que até mesmo uma meritocracia perfeitamente realizada (se isso
fosse possível) seja o caminho para uma sociedade justa. O ideal
meritocrático está relacionado à mobilidade, não à igualdade. Ele não
diz que há grandes lacunas entre ricos e pobres. O que importa para a
meritocracia é que todo mundo tenha uma oportunidade igual para subir as
escadas do sucesso; não há nada a dizer sobre qual deveria ser a
distância entre os degraus da escada. O ideal meritocrático não é
remédio para a desigualdade; ele é justificativa para desigualdade, pois
legitima as recompensas generosas que o mercado concede aos vencedores e
os pagamentos parcos que oferece a trabalhadores sem diploma
universitário. Em 2014, CEOs de grandes empresas estadunidenses
receberam trezentas vezes mais que o trabalhador padrão.[6]
A mais trágica
indicação disso, segundo Michael Sandel, é o aumento de “mortes por
desespero”. O termo foi cunhado por dois economistas da Universidade de
Princeton (USA), para referir-se a mortes autoinfligidas: suicídio,
abandono dos tratamentos, overdose de drogas, doenças hepáticas
relacionadas ao alcoolismo. Acredita-se
que as “mortes por desespero” respondem pela queda da expectativa de
vida na América do Norte, entre os anos de 2014 a 2017, fato
surpreendente, porque em todo o século vinte a expectativa
de vida aumentou progressivamente. A “morte por desespero” é tipicamente
observada em homens de meia idade, sem diploma universitário; as
principais vítimas da globalização e da tirania do mérito.[7]
Kardec reconhece que são
os mais fortes que fazem as leis e eles as
fizeram para si, [8] mas
que a justiça
divina quer que todos participem do bem,
que ela não pactua com a
vigência de leis feitas pelo forte em detrimento do fraco; [9] que
com menos parcialidade se exerça a justiça; que
o fraco encontre sempre amparo contra o forte; que a vida do homem, suas
crenças e opiniões sejam melhormente respeitadas; que exista menor
número de desgraçados; enfim, e que todo homem de boa vontade esteja
certo de lhe não faltar o necessário. [10]
Ansiando por uma sociedade justa e fraterna, Kardec coloca: Os
homens, quando se houverem despojado do egoísmo que os domina,
viverão como irmãos, sem se fazerem mal algum, auxiliando-se
reciprocamente, impelidos pelo sentimento mútuo da solidariedade.
Então, o forte será o amparo e não o opressor do fraco e não mais serão
vistos homens a quem falte o indispensável, porque todos praticarão a
lei de justiça. [11]
As considerações
expostas nos sensibilizam para o desenvolvimento de uma visão diferente
dos “sucessos” e “fracassos” da vida. O modo de pensar sobre quem merece
o quê não é moralmente defensável. Uma
visão que considera a evolução como algo coletivo e solidário é a única
que se sustenta ante a proposta universalista da Doutrina espírita.
Gustavo Geley,
pesquisador espírita morto em 1924, se valeu da expressão evolução
solidária.
Geley se referia à necessidade de entendermos o desenvolvimento
espiritual, pensamento central da Doutrina espírita, como um esforço
coletivo em prol do aprimoramento, não unicamente pessoal, mas de toda a coletividade.
Escreveu: As
suas consequências práticas [da reencarnação] são fáceis de conceber.
Antes de tudo, ela impõe o trabalho e o esforço; não o esforço isolado,
a luta pela vida egoísta, mas o esforço solidário, porque tudo o que
favorece ou retarda a evolução de outrem e a evolução geral favorece ou
retarda a evolução de qualquer membro da coletividade.[12]
Embora a evolução
se dê também na intimidade de cada um, na expansão pessoal dos recursos
cognitivos e afetivos, o enfoque exclusivista dessa evolução neutraliza
a própria dinâmica do processo, pois se cristaliza no egoísmo,
a fonte de todas as imperfeições humanas.
Todas as condições
afeitas a corporeidade – provas, expiações e missões - nunca são
condições isoladas, únicas, restritas ao indivíduo em si mesmo.
Tratam-se de eventos coletivos, que relacionam entre si todas as pessoas
vinculadas a ele. O Espírito maduro renuncia às expectativas de
realização unicamente pessoal para investir no bem-estar coletivo. Por
amor, por altruísmo, por compromisso ao belo, ao bom, ao nobre e ao
justo, ele assume tarefas, às vezes, de grande renúncia, e sente-se f
eliz com isso.
Ou evoluímos
juntos, ou ninguém avançará sozinho. A paz de espírito jamais será
conquista da alma egoísta. Ela se estabelece naqueles que estão fazendo
o que lhes compete fazer. Ninguém cai sozinho. Ninguém se ergue sozinho.
Nossas interações vitais são tão profundas, que nunca sabemos diante de
um ato indigno ou de um ato nobre onde localizar a maior culpa e o maior
mérito.
Graças a essa
solidariedade essencial, os atos individuais têm uma repercussão
inevitável sobre as condições vitais de tudo que pensa, de tudo que
vive, de tudo que é. Lembra Geley que na evolução dos seres e dos mundos
está assegurada uma espécie de colaboração
geral graças à qual todo esforço no sentido indicado pela lei moral ou
toda violação dessa lei tem sua reação coletiva além de sua reação
individual.
Não há
responsabilidade exclusivamente individual a um ato qualquer bom ou mau;
como não há para esse ato, sanção exclusivamente individual. Tudo o que
se faz, tudo o que se pensa, no bem ou no mal; tudo o que se traduz por
uma impressão emotiva, uma alegria ou uma dor, em
um indivíduo qualquer, se repercute a todos e se assimilam a todos. Não
há decadência ou progresso que não sejam solidários.
[1] Sociologia,
Anthony Giddens.
[2] LE
item 216
[3] O
padeiro desumano–suicídio RE, Maio/1862.
[4] LE
item 859
[5] Anatomia
da violência, Adrian
Reine.
[6] Michael
Sandel, A Tirania do mérito.
[7] Michael
Sandel, A tirania do mérito.
[12] Resumo
da Doutrina espírita, terceira parte.