A história de dois pastores
verdadeiramente cristãos
Quando Martinho Lutero, em 1517, publicou suas famosas
95 teses, contrapondo-se à venda de indulgências pela
Igreja Católica, entre outras questões com as quais não
concordava, foi imediatamente instado a se retratar, o
que não fez, sendo então julgado, perseguido,
excomungado e expulso da igreja. Mesmo diante de enormes
dificuldades, manteve-se íntegro às ideias que esposava,
e ao trabalho de levar o Evangelho para o povo, sendo a
primeira pessoa a traduzi-lo do latim para a língua
alemã, desencadeando um movimento de protesto sem igual
que atravessou fronteiras e deu origem à Igreja
Reformada ou Igreja Protestante. Ao longo dos séculos
que se sucederam, várias foram as perseguições e
discriminações sofridas pelos adeptos da nova igreja, e
muitos mártires merecem, sem dúvida, destaque,
seguidores fiéis do ideal implantado por Lutero. Nosso
texto tem por objetivo destacar dois pastores
protestantes alemães defensores do Cristianismo numa
época de muitas sombras, onde o mal se levantou com
ímpeto, arrastando parte da humanidade à dor e ao
sofrimento. Eles vão servir de exemplo a nós, espíritas,
e também aos adeptos de outras crenças no rol do
catálogo cristão, quanto ao que devemos fazer diante de
uma ideologia radical, de ações violentas que tentam
cercear a liberdade, da hipocrisia que tenta camuflar a
maldade. Vamos, então, voltar nosso olhar para a época
do nazismo, fomentador da Segunda Guerra Mundial.
Em plena Alemanha nazista encontramos nossos dois
personagens: Dietrich Bonhoeffer (04/02/1906 -
09/04/1945) e Martin Niemoller (14/01/1892 –
06/03/1984). Ambos trabalharam contra o nazismo e, por
esse motivo, tiveram que sustentar intensa coragem
diante das perseguições que os vitimaram, mantendo-se
fiéis ao ideal cristão que representavam como pastores
de suas igrejas, sem nunca terem concordado em adaptar o
Evangelho aos interesses políticos e raciais então
defendidos pelo governo alemão.
Historicamente, sabe-se que as Igrejas Protestantes da
Alemanha, em sua maioria, apoiaram a ascensão de Adolf
Hitler e seu partido nazista ao poder em 1933. Diante de
um país na bancarrota, cujo governo não conseguia deter
a inflação, o desemprego e a miséria; diante da ameaça
de partidários do comunismo materialista tomarem o
poder, com o que não concordavam os pastores
protestantes (evangélicos, aqui no Brasil); a decisão de
apoiar Hitler pareceu naquele momento a escolha pelo
menos pior, contando com o tempo para apaziguar os
ânimos e equilibrar o país até a próxima eleição, o que
não aconteceu, pois o novo chanceler logo se fez
ditador, implementando ideias e ações preconceituosas,
discriminatórias e de crueldade, levando Bonhoeffer e
Niemoller a se contraporem decisivamente contra essa
ideologia e suas arbitrariedades.
Pastor e teólogo protestante, Bonhoeffer foi
a principal figura entre os líderes religiosos alemães
dentro do movimento antinazismo: escreveu e falou
abertamente sobre a necessidade de oposição a Hitler e
articulou inúmeras tentativas para derrubar o ditador.
Nascido em Breslau, filho de um professor universitário
de psiquiatria e neurologia, sendo a
mãe professora, recebeu uma educação humanitária e
cristã. A perda de um irmão mais velho, de apenas 18
anos de idade, durante a Primeira Guerra, foi
fundamental para que Bonhoeffer se
decidisse pelo estudo da teologia — ele recebeu a Bíblia
do irmão morto e permaneceria com ela até o fim da
vida. Bonhoeffer se
uniu a Martin Niemöller e
outros pastores e teólogos da Igreja Confessante.
Erguida por aqueles que não concordavam com Hitler,
ela foi criada em torno dos que acreditavam que o
Cristianismo não era compatível com o nazismo. Defensor
da liberdade para pregação do Evangelho, crente na
“Graça de Deus”
— um dos fundamentos da teologia luterana —, no
ecumenismo entre as igrejas cristãs e preocupado com a
política antissemita de Hitler, Bonhoeffer acreditava
que a igreja só teria finalidade se existisse para quem
estivesse fora dela e que fosse clara a “sua obrigação
incondicional para com as vítimas de todos os sistemas
sociais”, mesmo que eles não pertencessem à sociedade
cristã. Mantendo constante correspondência com o
exterior e alarmado com a perseguição sistemática aos
judeus, em 1938 ele fez os primeiros contatos com a
resistência. Bonhoeffer entrou
para a Abwehr, que já nessa época era um foco de
conspiradores contra
o nazismo. Nesse meio-tempo, ele publicou
uma de suas obras mais famosas, Discipulado, de 1937, em
que expôs a doutrina da Graça por meio do Evangelho e
de Cristo.
Com a ameaça iminente de guerra, Bonhoeffer visitou
a Inglaterra no ano seguinte, mas não obteve sucesso em
convencer os Aliados a prestar apoio à resistência
alemã. Alvo do Serviço de Informações da SS, a Gestapo
fechou seu seminário e o proibiu de pregar, escrever ou
publicar em 1940. Em 1943, Bonhoeffer foi
preso, acusado de subversão (por meio da Abwehr, ele
vinha dando apoio à fuga de judeus da Alemanha). Ele foi
enviado para o campo de concentração de Buchenwald e
depois para Flossenbürg. Em 9 de abril de 1945, duas
semanas antes da libertação do campo e a poucos dias do
fim da Segunda Guerra, foi enforcado.
"O que faria Jesus?". Esta pergunta breve, mas de grande
relevância foi o que guiou a vida de Niemöller, chegando
até mesmo a colocá-lo em conflito com o regime
nazista. No início, ninguém conseguiria
imaginar que o pastor protestante seria um símbolo da
resistência cristã contra o nazismo. Niemöller decidiu
seguir a vida ministerial, assim como seu pai, mas
também foi educado para ser fiel ao sentimento
patriótico alemão. "Ter fé significa seguir Jesus. E a
quem afirma acreditar em Jesus Cristo, posso perguntar
sobre a sua vida e dizer: você acha que ele aprovaria o
que você faz hoje? Que, com isto, você está sendo
sucessor de Jesus de Nazaré?", costumava refletir o
pastor. Estes pensamentos o levaram a se opor cada vez
mais ao governo que outrora ele teria apoiado. Apesar de
ser um patriota declarado, Niemöller começou a ver que o
nazismo conflitava com a fé cristã e protestou contra a
aplicação do "parágrafo ariano" na Igreja e a distorção
da doutrina bíblica por parte dos nazistas que se diziam
cristãos. Para lutar contra a segregação de cristãos de
origem judaica, o pastor criou no outono de 1933 a Liga
Pastoral de Emergência, transformada posteriormente no
movimento 'Igreja Engajada'. O grupo negava total
submissão à direção oficial da Igreja na época, a qual
apoiava o regime nazista. O pastor chegou a ser proibido
de pregar o Evangelho, imposição esta que não aceitou.
Em 1935, Niemöller já era visto como o mais importante
porta-voz da resistência protestante contra o nazismo,
sendo preso pela primeira vez e logo libertado. Em julho
de 1937, Niemöller foi novamente preso e após cerca de
sete meses, no dia 7 de fevereiro de 1938, começou o seu
julgamento diante do regime nazista. As acusações contra
o pastor alegavam que ele teria usado o púlpito para
criticar as diretrizes do governo alemão "de maneira
ameaçadora à ordem pública", além de ter feito
"declarações hostis e provocadoras" a respeito de alguns
ministros do Reich. O Tribunal expediu a sentença: sete
meses de prisão e 2 mil marcos de multa. Os juízes,
porém, consideraram a pena cumprida, em função do longo
tempo de prisão preventiva. Niemöller deveria assim ter
deixado a sala do tribunal como homem livre. Para
Hitler, no entanto, a sentença pareceu muito suave. Ele
enviou o pastor para um campo de concentração, como seu
"prisioneiro pessoal". Até o fim da guerra, durante mais
de sete anos, Martin Niemöller permaneceu preso,
primeiro no campo de concentração de Sachsenhausen,
depois em Dachau.
Hoje, em que assistimos a governos assumirem posições
radicais, antidemocráticas, cerceando a liberdade de
informação, militarizando a população, e manipulando, ou
tentando manipular, os religiosos, e disso não escapam
os espíritas, temos que nos manter vigilantes e fiéis ao
Evangelho, às diretrizes morais emanadas por Jesus. No
tocante especificamente ao Espiritismo, temos que
estudá-lo, única maneira de apreendê-lo, para realizar
nossa transformação moral, nunca adaptando a doutrina
aos nossos interesses pessoais ou de grupo, pois somos
também representantes do Evangelho, com profunda missão
moral a cumprir, missão essa que não pode se sujeitar a
ideologias outras, a programas político-partidários de
quem quer que seja.
Os pastores Bonhoeffer e Niemoller são exemplos
dignificantes de verdadeiros cristãos, colocando a
própria vida em risco na defesa dos ideais do Evangelho,
enfrentando a máquina triturante do nazismo com fé,
perseverança e coragem. Diante dos arrastamentos da vida
em sociedade e dos desmandos, corrupção e autoritarismo
dos governantes, para melhor nos dirigirmos na conduta
cristã que devemos ter, repitamos a pergunta formulada
pelo pastor: o que faria Jesus? E como ele é o nosso
guia e modelo, como aprendemos nos ensinos contidos em O
Livro dos Espíritos, não tenhamos dúvida em
segui-lo. Eis o que se espera do verdadeiro espírita, no
cumprimento de sua missão de auxiliar Jesus na renovação
moral da humanidade.
Marcus De Mario é escritor, educador,
palestrante; coordena o Seara de Luz, grupo on-line de
estudo espírita; edita o canal Orientação Espírita no
YouTube; possui mais de 35 livros publicados.