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por Marcelo Teixeira

 

Caridade para com os criminosos


“Socorro, socorro. Meu Deus. Nos ajudem. Precisamos de vocês.”

O apelo acima ecoou (e talvez ainda ecoe) de forma dilacerante, em dezembro de 2023, pelas dependências da Penitenciária 1 da cidade de Presidente Venceslau(SP). Proferidos por detentos que cometeram faltas graves dentro da prisão ou que estejam ameaçados de morte por companheiros de detenção, os gritos de desespero vieram do setor conhecido como trem fantasma. Nele, os presos ficam em total isolamento e na escuridão por períodos mínimos de um mês, sem condições de higiene (dividem o exíguo espaço com ratos e baratas) e sem direito a banho de sol, o que, inclusive, vai contra o previsto na Lei de Execução Penal (LEP).

Essas são apenas algumas das várias desumanidades que reinam no local e que foram denunciadas aos órgãos competentes. Pelo que apurou o repórter Josmar Jozino, do portal de notícias UOL, houve vistoria no local, que constatou o que ora narro. As explicações já estavam sendo cobradas às entidades encarregadas de zelar pela integridade dos presos em SP.

Quando li a respeito, tive a curiosidade de verificar, no perfil que o UOL mantém numa rede social, os comentários dos leitores a respeito do ocorrido. Deparei-me com coisas do tipo: “As vítimas deles devem ter gritado por socorro também. Eles tiveram pena?”, “É só não roubar, matar, assaltar que você não vai pra lá.”, “Também gritei quando a arma estava na minha cabeça etc.”. Felizmente há também comentários condenando tamanha barbárie, evidenciando que não é assim que se reabilitam presos e deixando claro que, assim, eles saem piores do que quando entraram e também com um ódio mortal da estrutura social que os corrói dessa maneira quando deveria reabilitá-los.  

À mesma época, no bairro de Copacabana, Zonal Sul da cidade do Rio de Janeiro, vários ladrões promoveram um arrastão e roubaram os celulares de transeuntes. Um empresário, ao tentar defender uma mulher da sanha deles, foi agredido a socos. Após a prisão de alguns deles, eu, assistindo à cena do agressor do empresário sendo algemado e colocado no camburão, comentei, também numa rede social, que o destino desses rapazes poderia ter sido diferente se eles tivessem tido acesso à saúde, educação e moradia de qualidade, trabalho digno etc. Para quê? Fui alvo de toda sorte de impropérios. Disseram para que eu levasse o bandido para casa; desejaram que ele agredisse minha mãe e por aí vai. Deduzi que seria inútil argumentar com quem só enxerga os fatos pelo ângulo da vindita e apaguei meu comentário.

Esses acontecimentos me remeteram a um dilacerante artigo que li em 2016 e cujo link felizmente guardei. Chama-se “O odor nauseante do presídio misturado ao sangue”; foi escrito pelo juiz baiano Gerivaldo Neiva e narra como é impactante aos sentidos humanos (olfato em primeiro lugar) se deparar com o cotidiano dos corredores e celas de um presídio. Segundo ele, a “mistura nauseante de fezes, urina, esgoto, suor, roupas sujas e emboloradas, doenças de pele e do couro cabeludo, corpos sujos e comida azeda” provoca constantes ânsias de vômito em quem se aventura a visitar tais lugares. Isso sem falar no calor insuportável, nos dentes podres dos detentos, nas frieiras entre os dedos dos pés, entre outras imundícies desumanas. Segundo Neiva, é quase nula a possibilidade de esses homens saírem reabilitados quando cumprirem suas penas. Sairão revoltados e, muitas vezes, cooptados por facções criminosas. Além disso, voltarão para o meio onde nasceram e, por conseguinte, se depararão com as mesmas dificuldades de antes: falta de escolaridade e de oportunidades de trabalho, preconceito social e principalmente racial, já que a maioria da população carcerária do nosso país é negra. Uma engrenagem que resulta num círculo vicioso a arrastar o ex-presidiário à reincidência e, muitas vezes, à morte trágica.

Régis, amigo de movimento espirita e funcionário do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), foi testemunha ocular da falta de humanidade com a qual os detentos costumam ser tratados, muitas vezes por quem deveria resguardá-los. Homens acusados de tráfico de drogas e ligados a uma facção criminosa chegaram ao fórum para tomar ciência de sentença junto ao juiz. Vieram a bordo de uma viatura. Dia de sol escaldante no RJ. Os policiais que conduziam o veículo foram comer algo e deixaram-no debaixo do sol com os presos dentro da caçamba, algemados, mal acomodados e suando em bicas. Cerca de 40 minutos depois, voltaram e levaram os detentos para serem arguidos pelo juiz. Régis, com o senso de humanidade que lhe é peculiar, resolveu dar água para os presos. Os homens da lei não gostaram e protestaram. Régis foi firme e disse que, dentro do fórum, quem mandava eram ele e os demais funcionários. Os detentos, então, beberam água sob o protesto dos agentes de segurança, que, findo o episódio, foram embora escoltando os prisioneiros e batendo com os coturnos no chão, tamanha a raiva.

Temos, no caso dos presídios e na situação enfrentada por Régis, a questão grave do Estado fazendo papel de bandido. E no episódio de Copacabana e também no da cidade de Presidente Prudente, pessoas querendo ser bandidas para eliminar os criminosos e rechaçando os direitos humanos que, nas palavras do advogado e pesquisador Caio Rivas, não existem para defender bandidos, mas para que o Estado (e também a população em geral) não vire bandido.

Por mais difícil que possa parecer, entendamos que justiça não é vingança. E tenhamos sempre em mente que a criminalidade que assola nosso país é fruto de uma injustiça social secular, ou seja, remonta aos tempos da escravidão. Ainda por cima, é potencializada pelo capitalismo selvagem, que dilapida principalmente a vida dos que têm poucos recursos materiais.

Talvez muita gente não se dê conta, mas muitos dos ditos cidadãos de bem pelos quais passamos nos shoppings, hotéis e restaurantes tenham muito mais a ver com a violência estrutural de cada dia do que possamos imaginar. No livro Globalização: as consequências humanas, o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman chama atenção para o fato de que o bandido pé-de-chinelo existe porque o dinheiro que deveria chegar até ele na forma de políticas públicas de promoção social (saúde, educação, trabalho, moradia etc.) desaparece nos desvãos da corrupção generalizada. No entanto, ninguém teme encontrar, numa rua deserta e escura, um empresário que participa de licitações fraudulentas, um político que desvia dinheiro da merenda escolar ou um executivo que superfatura obras. É devido a estes bandidos de alto escalão, todavia, que existem os assaltantes que invadem casas ou nos atacam nos espaços públicos.

Em O Livro dos Espíritos, Allan Kardec indaga, na questão 874, por que os homens entendem a justiça de forma tão diversa. Os benfeitores espirituais respondem que a razão está no fato de, ao sentimento de justiça, misturarmos as nossas paixões. Por isso, acabamos por enxergar a justiça sob o prisma do olho por olho dente por dente, desejando que os criminosos morram ou sofram horrores nas penitenciárias. Sei que não é nada agradável sofrer um assalto e estar sob a mira de uma arma e de um olhar varado de ódio (já passei por isso). E presumo que deve ser terrível perder um ente querido vitimado por uma violência dessas. Recordemo-nos, no entanto, que torturar ou matar o malfeitor não traz de volta a vida de quem ele matou. Além disso, é uma solução nada civilizatória, que traz à tona o quão sanguinários ainda somos, apesar do verniz social.   

No livro Pelos caminhos de Jesus, o espírito Amélia Rodrigues, no capítulo 8, narra um episódio no qual um fariseu (sempre eles!) decide confrontar o Cristo e o questiona acerca de darmos amor irrestrito e perdão incessante até mesmo aos criminosos. Não deveria ele, o criminoso, ser justiçado pelas autoridades competentes? Jesus responde que “justiçar não significa punir, revidar com o mal o mal que foi feito, tripudiar sobre suas misérias e ulcerações morais. Justiçar deve ser, antes de tudo, propiciar a oportunidade da reparação, de educação moral do revel para a vida digna”. E prossegue: “Punir é reagir com ódio, cobrar erro com vingança, é ser pior que o delinquente, pois que este é infeliz, enquanto o juiz, em nome da sociedade e graças ao conhecimento que possui, deve ser sadio emocionalmente e equilibrado nas suas decisões, a fim de ser melhor do que o criminoso”.

Insistente e provocador, o fariseu indaga se seria lícito deixar o criminoso à solta. Jesus arremata: “A técnica do amor receita para o delinquente a terapia do afastamento temporário da sociedade, qual ocorre com um doente portador de contágio, a fim de ser devidamente tratado para posterior reintegração na comunidade dos sadios”.

Embora a terapia do amor reabilitador ainda seja uma realidade distante, sabemos que oferecer ao delinquente o acompanhamento necessário para que ele possa se reerguer e reparar o mal que causou é a única saída se de fato queremos viver numa sociedade regenerada, livre, inclusive, das profundas desigualdades sociais que insistimos em manter ao longo do tempo e que geram fome, miséria, revolta, violência e criminalidade.

Em O Evangelho segundo o Espiritismo, terceira obra publicada por Kardec, o espírito Isabel de França, no item 13 do capítulo 11 – ‘Caridade para com os criminosos’ – observa que devemos amar os criminosos como criaturas de Deus, o que eles de fato o são, assim como nós. E ressalta, com muita propriedade, que nós, homens e mulheres que possuem (ou já deveriam possuir) um pouco mais de estrutura social e moral, temos mais responsabilidade do que aqueles a quem porventura negarmos perdão. Afinal, eles não tiveram as oportunidades que tivemos, muito menos a chance de estudar sobre Deus como nós estudamos. Se nós, os espíritas, falharmos nesse quesito e passarmos a crer que bandido bom é bandido morto, muito mais nos será pedido do que àquele que falha porque não recebeu amor e seguridade social.

 

Bibliografia:

1. BAUMAN, Zygmunt – Globalização: as consequências humanas, 1ª edição, 1999, Jorge Zahar Editora, Rio de Janeiro, RJ.

2. FRANCO, Divaldo Pereira – Pelos caminhos de Jesus, 1ª edição, 1987, Leal Editora, Salvador, BA.

3. JOZINO, Josmar – Detentos gritam por socorro em celas do “trem fantasma” em presídio de SP. Disponível em link-1

4. KARDEC, Allan – O Evangelho segundo o Espiritismo, 2ª edição, 2018, Federação Espírita Brasileira (FEB), Brasília, DF.

5. KARDEC, Allan – O Livro dos Espíritos, 66ª edição, 1984, Federação Espírita Brasileira (FEB), Brasília, DF.

6. NEIVA, Gerivaldo – O odor nauseante do presídio misturado ao sangue. Disponível em link-2

7. R7 – Homem que deu soco em idoso em assalto em Copacabana é preso no Rio de Janeiro. Disponível em link-3

8. RIVAS, Caio – Direitos humanos não existem para defender bandido, existem para impedir que o Estado se torne o bandido. Disponível em link-4


    

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita