Caridade para com os criminosos
“Socorro, socorro. Meu Deus. Nos ajudem. Precisamos de
vocês.”
O apelo acima ecoou (e talvez ainda ecoe) de forma
dilacerante, em dezembro de 2023, pelas dependências da
Penitenciária 1 da cidade de Presidente Venceslau(SP).
Proferidos por detentos que cometeram faltas graves
dentro da prisão ou que estejam ameaçados de morte por
companheiros de detenção, os gritos de desespero vieram
do setor conhecido como trem fantasma. Nele, os presos
ficam em total isolamento e na escuridão por períodos
mínimos de um mês, sem condições de higiene (dividem o
exíguo espaço com ratos e baratas) e sem direito a banho
de sol, o que, inclusive, vai contra o previsto na Lei
de Execução Penal (LEP).
Essas são apenas algumas das várias desumanidades que
reinam no local e que foram denunciadas aos órgãos
competentes. Pelo que apurou o repórter Josmar Jozino,
do portal de notícias UOL, houve vistoria no local, que
constatou o que ora narro. As explicações já estavam
sendo cobradas às entidades encarregadas de zelar pela
integridade dos presos em SP.
Quando li a respeito, tive a curiosidade de verificar,
no perfil que o UOL mantém numa rede social, os
comentários dos leitores a respeito do ocorrido.
Deparei-me com coisas do tipo: “As vítimas deles devem
ter gritado por socorro também. Eles tiveram pena?”, “É
só não roubar, matar, assaltar que você não vai pra
lá.”, “Também gritei quando a arma estava na minha
cabeça etc.”. Felizmente há também comentários
condenando tamanha barbárie, evidenciando que não é
assim que se reabilitam presos e deixando claro que,
assim, eles saem piores do que quando entraram e também
com um ódio mortal da estrutura social que os corrói
dessa maneira quando deveria reabilitá-los.
À mesma época, no bairro de Copacabana, Zonal Sul da
cidade do Rio de Janeiro, vários ladrões promoveram um
arrastão e roubaram os celulares de transeuntes. Um
empresário, ao tentar defender uma mulher da sanha
deles, foi agredido a socos. Após a prisão de alguns
deles, eu, assistindo à cena do agressor do empresário
sendo algemado e colocado no camburão, comentei, também
numa rede social, que o destino desses rapazes poderia
ter sido diferente se eles tivessem tido acesso à saúde,
educação e moradia de qualidade, trabalho digno etc.
Para quê? Fui alvo de toda sorte de impropérios.
Disseram para que eu levasse o bandido para casa;
desejaram que ele agredisse minha mãe e por aí vai.
Deduzi que seria inútil argumentar com quem só enxerga
os fatos pelo ângulo da vindita e apaguei meu
comentário.
Esses acontecimentos me remeteram a um dilacerante
artigo que li em 2016 e cujo link felizmente guardei.
Chama-se “O odor nauseante do presídio misturado ao
sangue”; foi escrito pelo juiz baiano Gerivaldo Neiva e
narra como é impactante aos sentidos humanos (olfato em
primeiro lugar) se deparar com o cotidiano dos
corredores e celas de um presídio. Segundo ele, a
“mistura nauseante de fezes, urina, esgoto, suor, roupas
sujas e emboloradas, doenças de pele e do couro
cabeludo, corpos sujos e comida azeda” provoca
constantes ânsias de vômito em quem se aventura a
visitar tais lugares. Isso sem falar no calor
insuportável, nos dentes podres dos detentos, nas
frieiras entre os dedos dos pés, entre outras imundícies
desumanas. Segundo Neiva, é quase nula a possibilidade
de esses homens saírem reabilitados quando cumprirem
suas penas. Sairão revoltados e, muitas vezes, cooptados
por facções criminosas. Além disso, voltarão para o meio
onde nasceram e, por conseguinte, se depararão com as
mesmas dificuldades de antes: falta de escolaridade e de
oportunidades de trabalho, preconceito social e
principalmente racial, já que a maioria da população
carcerária do nosso país é negra. Uma engrenagem que
resulta num círculo vicioso a arrastar o ex-presidiário
à reincidência e, muitas vezes, à morte trágica.
Régis, amigo de movimento espirita e funcionário do
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), foi
testemunha ocular da falta de humanidade com a qual os
detentos costumam ser tratados, muitas vezes por quem
deveria resguardá-los. Homens acusados de tráfico de
drogas e ligados a uma facção criminosa chegaram ao
fórum para tomar ciência de sentença junto ao juiz.
Vieram a bordo de uma viatura. Dia de sol escaldante no
RJ. Os policiais que conduziam o veículo foram comer
algo e deixaram-no debaixo do sol com os presos dentro
da caçamba, algemados, mal acomodados e suando em bicas.
Cerca de 40 minutos depois, voltaram e levaram os
detentos para serem arguidos pelo juiz. Régis, com o
senso de humanidade que lhe é peculiar, resolveu dar
água para os presos. Os homens da lei não gostaram e
protestaram. Régis foi firme e disse que, dentro do
fórum, quem mandava eram ele e os demais funcionários.
Os detentos, então, beberam água sob o protesto dos
agentes de segurança, que, findo o episódio, foram
embora escoltando os prisioneiros e batendo com os
coturnos no chão, tamanha a raiva.
Temos, no caso dos presídios e na situação enfrentada
por Régis, a questão grave do Estado fazendo papel de
bandido. E no episódio de Copacabana e também no da
cidade de Presidente Prudente, pessoas querendo ser
bandidas para eliminar os criminosos e rechaçando os
direitos humanos que, nas palavras do advogado e
pesquisador Caio Rivas, não existem para defender
bandidos, mas para que o Estado (e também a população em
geral) não vire bandido.
Por mais difícil que possa parecer, entendamos que
justiça não é vingança. E tenhamos sempre em mente que a
criminalidade que assola nosso país é fruto de uma
injustiça social secular, ou seja, remonta aos tempos da
escravidão. Ainda por cima, é potencializada pelo
capitalismo selvagem, que dilapida principalmente a vida
dos que têm poucos recursos materiais.
Talvez muita gente não se dê conta, mas muitos dos ditos
cidadãos de bem pelos quais passamos nos shoppings,
hotéis e restaurantes tenham muito mais a ver com a
violência estrutural de cada dia do que possamos
imaginar. No livro Globalização: as consequências
humanas, o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt
Bauman chama atenção para o fato de que o bandido
pé-de-chinelo existe porque o dinheiro que deveria
chegar até ele na forma de políticas públicas de
promoção social (saúde, educação, trabalho, moradia
etc.) desaparece nos desvãos da corrupção generalizada.
No entanto, ninguém teme encontrar, numa rua deserta e
escura, um empresário que participa de licitações
fraudulentas, um político que desvia dinheiro da merenda
escolar ou um executivo que superfatura obras. É devido
a estes bandidos de alto escalão, todavia, que existem
os assaltantes que invadem casas ou nos atacam nos
espaços públicos.
Em O Livro dos Espíritos, Allan Kardec indaga, na
questão 874, por que os homens entendem a justiça de
forma tão diversa. Os benfeitores espirituais respondem
que a razão está no fato de, ao sentimento de justiça,
misturarmos as nossas paixões. Por isso, acabamos por
enxergar a justiça sob o prisma do olho por olho dente
por dente, desejando que os criminosos morram ou sofram
horrores nas penitenciárias. Sei que não é nada
agradável sofrer um assalto e estar sob a mira de uma
arma e de um olhar varado de ódio (já passei por isso).
E presumo que deve ser terrível perder um ente querido
vitimado por uma violência dessas. Recordemo-nos, no
entanto, que torturar ou matar o malfeitor não traz de
volta a vida de quem ele matou. Além disso, é uma
solução nada civilizatória, que traz à tona o quão
sanguinários ainda somos, apesar do verniz social.
No livro Pelos caminhos de Jesus, o espírito
Amélia Rodrigues, no capítulo 8, narra um episódio no
qual um fariseu (sempre eles!) decide confrontar o
Cristo e o questiona acerca de darmos amor irrestrito e
perdão incessante até mesmo aos criminosos. Não deveria
ele, o criminoso, ser justiçado pelas autoridades
competentes? Jesus responde que “justiçar não significa
punir, revidar com o mal o mal que foi feito, tripudiar
sobre suas misérias e ulcerações morais. Justiçar deve
ser, antes de tudo, propiciar a oportunidade da
reparação, de educação moral do revel para a vida
digna”. E prossegue: “Punir é reagir com ódio, cobrar
erro com vingança, é ser pior que o delinquente, pois
que este é infeliz, enquanto o juiz, em nome da
sociedade e graças ao conhecimento que possui, deve ser
sadio emocionalmente e equilibrado nas suas decisões, a
fim de ser melhor do que o criminoso”.
Insistente e provocador, o fariseu indaga se seria
lícito deixar o criminoso à solta. Jesus arremata: “A
técnica do amor receita para o delinquente a terapia do
afastamento temporário da sociedade, qual ocorre com um
doente portador de contágio, a fim de ser devidamente
tratado para posterior reintegração na comunidade dos
sadios”.
Embora a terapia do amor reabilitador ainda seja uma
realidade distante, sabemos que oferecer ao delinquente
o acompanhamento necessário para que ele possa se
reerguer e reparar o mal que causou é a única saída se
de fato queremos viver numa sociedade regenerada, livre,
inclusive, das profundas desigualdades sociais que
insistimos em manter ao longo do tempo e que geram fome,
miséria, revolta, violência e criminalidade.
Em O Evangelho segundo o Espiritismo, terceira
obra publicada por Kardec, o espírito Isabel de França,
no item 13 do capítulo 11 – ‘Caridade para com os
criminosos’ – observa que devemos amar os criminosos
como criaturas de Deus, o que eles de fato o são, assim
como nós. E ressalta, com muita propriedade, que nós,
homens e mulheres que possuem (ou já deveriam possuir)
um pouco mais de estrutura social e moral, temos mais
responsabilidade do que aqueles a quem porventura
negarmos perdão. Afinal, eles não tiveram as
oportunidades que tivemos, muito menos a chance de
estudar sobre Deus como nós estudamos. Se nós, os
espíritas, falharmos nesse quesito e passarmos a crer
que bandido bom é bandido morto, muito mais nos será
pedido do que àquele que falha porque não recebeu amor e
seguridade social.
Bibliografia:
1. BAUMAN,
Zygmunt – Globalização: as consequências humanas,
1ª edição, 1999, Jorge Zahar Editora, Rio de Janeiro,
RJ.
2. FRANCO,
Divaldo Pereira – Pelos caminhos de Jesus, 1ª
edição, 1987, Leal Editora, Salvador, BA.
3. JOZINO,
Josmar – Detentos gritam por socorro em celas do “trem
fantasma” em presídio de SP. Disponível em link-1
4. KARDEC,
Allan – O Evangelho segundo o Espiritismo, 2ª
edição, 2018, Federação Espírita Brasileira (FEB),
Brasília, DF.
5. KARDEC,
Allan – O Livro dos Espíritos, 66ª edição, 1984,
Federação Espírita Brasileira (FEB), Brasília, DF.
6. NEIVA,
Gerivaldo – O odor nauseante do presídio misturado ao
sangue. Disponível em link-2
7. R7
– Homem
que deu soco em idoso em assalto em Copacabana é preso
no Rio de Janeiro. Disponível em link-3
8. RIVAS,
Caio – Direitos humanos não existem para defender
bandido, existem para impedir que o Estado se torne o
bandido. Disponível em link-4