Nós: os filhos do homem
Na rua onde moro,
há uma casa em reformas. Uma casa, aliás, que já vinha
precisando de uma ajeitada faz tempo. Na verdade, é uma
guaribada que ela está levando: está sendo pintada
(entre outros pequenos reparos) para ser alugada.
Espaçoso, com uma boa entrada de garagem e uma
residência menor aos fundos, o imóvel, se de fato fosse
passar pela reforma que imagino – daquelas dos programas
de TV por assinatura –, ficaria um espetáculo! Mas não é
o caso.
Passando em frente à casa
numa manhã, puxei conversa com Milton, o pedreiro que
dava um trato na fachada. Papeei com ele sobre o
trabalho que estava sendo feito. Ele disse que a casa
ficaria no jeito para ser alugada e que era especialista
em reformar casas. Foi então que fiz duas perguntas que
sempre quis fazer a um pedreiro: “E a sua casa? Você tem
casa própria?” A resposta foi negativa. Milton, como
grande parte da população socialmente menos favorecida,
mora de aluguel.
Aprofundei a conversa e
questionei se ele gostaria de ter uma residência para
chamar de sua e, é claro, ele disse sim, com o olhar
cheio de sonhos. Daí, prestei mais atenção ao homem que
conversava comigo, tão grandioso em sua simplicidade de
gente honesta e batalhadora. Negro (como boa parte de
seus colegas de ofício relegados a uma espécie de
racismo profissional que os confina a funções braçais) e
com apenas dois dentes, Milton é o retrato do brasileiro
que, apesar dos pesares, não deixa a peteca cair e vai
levando a vida como pode, embora ela se apresente
extremamente árdua.
Perguntei se ele era
casado e se a mulher trabalhava para ajudar nas
despesas. A resposta me entristeceu: a esposa é
cadeirante e ele cuida dela. Prossegui dizendo que viver
de aluguel não é fácil. E disse por experiência própria,
pois meus pais, antes de construírem a casa onde resido,
moraram em casa alugada por um bom tempo. Milton, então,
observou que não é nada fácil pôr a cabeça no
travesseiro todos os dias pensando se haverá ou não
dinheiro para pagar o próximo aluguel.
Saí chateado daquela
conversa e morrendo de vontade de ser milionário para
dar a Milton uma casa de presente num local de fácil
acesso e também lhe proporcionar um implante dentário
top de linha para que ele tivesse o ensejo de sorrir e
que o sorriso externasse a alegria interior de
finalmente morar no próprio teto. Entristece-me
sobremaneira a forma precária em que grande parte da
população brasileira vive.
Esse episódio me fez
lembrar uma música que jamais ouvi gravada, mas que
minha tia idosa, que mora comigo, sempre cantarola e
sobre a qual volta e meia conversamos. Chama-se “O
pedreiro Waldemar”, foi composta por Wilson Batista e
Roberto Martins e imortalizada na voz do sambista
Blecaute (1919-1983):
“Você
conhece o pedreiro Waldemar?
Não conhece?
Mas eu vou lhe apresentar
De madrugada toma o trem da Circular
Faz tanta casa e não tem casa pra morar
Leva marmita embrulhada no jornal
Se tem almoço, nem sempre tem jantar
O Waldemar, que é mestre no ofício
Constrói um edifício
E depois não pode entrar”.
Essa canção – na verdade,
uma marchinha de carnaval – é bem o retrato da
mentalidade escravagista que infelizmente ainda grassa
pelo país. E também é a fiel expressão de como o
capitalismo selvagem no qual ainda vivemos tira o
sossego da gente. Afinal, somos reféns de banqueiros,
juros escorchantes, financiamentos, parcelamentos,
baixos salários, trabalho incerto, boletos, tributos,
parcas condições de saúde e educação, lazer quase nulo
e, no caso do assunto em questão, muitas pessoas sem
condições de ter a tão sonhada casa própria. E muitas
vezes, quando conseguem ter um teto, será num local de
difícil acesso e sujeito a deslizamentos e enchentes,
como é tão comum em terras brasileiras.
Já pensaram o que é, para
os pedreiros, construírem casas e apartamentos nos quais
nunca irão morar? E quando digo construir, falo em fazer
a fundação, erguer paredes, emboçar, pintar, colocar
pisos e revestimentos... Tudo isso para que outras
pessoas – brancas, em sua maioria – habitem as novas
moradas com todo o conforto. Enquanto isso, Waldemar e
seus colegas voltarão para as casinhas humildes e
provavelmente alugadas. E dormirão inquietos,
preocupados com aluguel, conta de luz e afins, já que,
como é costumeiro nesse tipo de função, trabalham por
temporada.
Fica difícil recostar a cabeça no travesseiro e dormir
tranquilo. E isso, infelizmente, não é prerrogativa dos
Miltons e Waldemares. Muitos dos habitantes do Brasil
estão sujeito às idas e vindas do capitalismo e suas
garras, que deixam todos na incerteza de ter trabalho
digno e remunerado, comida na mesa e contas em dia. Isso
sem falar na sanha do mercado financeiro, que empresta
dinheiro a juros abusivos e toma de volta tudo e mais um
pouco caso não consigamos saldar o financiamento da casa
ou o empréstimo.
Tudo isso traz à tona do
meu pensamento uma frase de Jesus que está no Evangelho
de Mateus. É um dito no qual sempre penso quando reflito
sobre este mundo socialmente injusto: “As raposas têm
suas tocas e as aves do céu têm seus ninhos, mas o Filho
do homem não tem onde repousar a cabeça”.
Jesus vivia peregrinando
pelas cidades. Por isso, não tinha morada fixa. Sempre
se hospedava em casa de amigos. Diferentemente das
raposas e das aves, que têm seus covis e ninhos, Jesus
não tinha onde repousar a cabeça. Essa afirmação é uma
resposta ao que diz um escriba, homem especializado no
estudo da Lei de Moisés. Aparentemente empolgado com a
mensagem de vida eterna trazida pelo Cristo, o escriba
havia dito ao Rabi que o seguiria aonde quer que ele
fosse. Jesus, então, ressalta que a vida material dele
era incerta; ele dependia da boa vontade alheia para ter
onde se alimentar e repousar.
Mas como, à época do
Cristo, o povo judeu vivia sob o jugo de Roma, que lhe
impingia pesadas cargas tributárias, Jesus provavelmente
aproveitou a situação para jogar uma indireta e afirmar
que todas as pessoas são filhas do homem, tal qual ele,
e, por essa razão, têm direito a ter uma vida
materialmente estável, sem exploração, cobranças
injustas que enriquecem os poderosos e tornam a
população cada vez mais pobre. Uma vida na qual todos
possam ter o ensejo de descobrir os talentos que possuem
e colocá-los, com satisfação, a serviço do bem comum,
enriquecendo a todos de qualidade de vida material e
emocional.
Para fundamentar o que
digo e também para trazer esperança ao meu coração
sedento de justiça social, abro O Livro dos Espíritos,
de Allan Kardec e vou direto ao capítulo 11 da terceira
parte. Ele se chama ‘Lei de justiça, amor e caridade’.
Logo na questão que abre o tema (873), Kardec indaga se
“O sentimento de justiça está em a natureza ou é
resultado de ideias adquiridas”. Os benfeitores
espirituais são rápidos na resposta: “Está de tal modo
em a natureza, que vos revoltais à simples ideia de uma
injustiça”.
Talvez tenha sido por
isso que o fato de Milton não ter casa própria e nem uma
dentição completa e sadia me angustiou. Acho
extremamente injusto um homem viver construindo e
reformando casas alheias e ele mesmo não ter condições
de ter a sua própria casa e nem de se cuidar. É esse o
senso de justiça que deve ser tão natural a todos os
homens.
Mais adiante, na questão
876, Kardec pergunta qual seria a base da justiça, de
acordo com os critérios da lei natural, ou seja, a lei
de Deus. Resposta: “Disse o Cristo: Queira cada um para
os outros o que quereríeis para si mesmo”.
Segundo o relatório
“Desigualdade S.A”, publicado em 2024 pela Oxford
Committee for Famine Relief (Oxfam) – tradução:
Comitê de Oxford para o Alívio da Fome –, os
extremamente ricos criaram um poder monopolista muito
grande. Tudo em nome de lucros cada vez mais
exorbitantes, o que aumenta exponencialmente as
desigualdades sociais e vai tornar ainda mais difícil a
vida dos menos favorecidos. Isso significa que pessoas
como Milton tendem a ter uma vida cada vez mais pautada
em sacrifícios.
Para reverter esse quadro
de ganância, egoísmo e desamor, urge nos esforçarmos
para construir uma sociedade cada vez menos competitiva,
consumista e acumuladora. Precisamos de um mundo mais
colaborativo e equilibrado para que Milton, Waldemar,
eu, você e todos os filhos e filhas do homem tenham onde
deitar a cabeça. É isso que Jesus afirma quando declara
que devemos querer para os outros o que queremos para
nós próprios. Afinal, o mundo e suas benesses são de
todos, e não de uma minoria endinheirada.
Bibliografia:
1. KARDEC, Allan – O Livro dos
Espíritos – 60ª edição, 1984, Federação Espírita
Brasileira (FEB), Brasília, DF.
2. OXFAM – Desigualdade S.A. – Como o
poder corporativo divide nosso mundo e a necessidade de
uma nova era de ação pública. Disponível em: www.oxfam.org.br
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