Sem tempo e disposição para o bem
Há um tempo, compartilhei nas minhas redes sociais uma
postagem que dizia não importar o que de grave esteja
acontecendo no mundo (guerras, crimes, fanatismo etc.).
Motivo: o que as pessoas querem mesmo é pagar as contas
em dia e morrer.
Essa afirmativa me levou a vários locais. Uns físicos,
outros literários. Como representante do movimento
espírita progressista, já participei de alguns atos em
praça pública em prol da democracia e contra
autoritarismo, racismo, homofobia e congêneres. Em
todos, observei a quantidade de pessoas que passavam sem
dar importância ao que estava acontecendo. Não as
condeno. Também já agi dessa forma. Afinal, os
compromissos são tantos! Contas a pagar, horários a
cumprir, levar e buscar os filhos na escola, questões
profissionais, condução para pegar, trânsito
engarrafado, supermercado... Essa seria a parte física
da questão.
A primeira parada literária foi a canção “Panis Et
Circenses” (Pão e Circo), de Caetano Veloso e Gilberto
Gil. Gravada pelo grupo Os Mutantes em 1968, a música se
transformou num dos ícones do Tropicalismo, movimento
cultural que sacudiu a década de 1960. Diz ela:
“Eu quis cantar
Minha canção iluminada de sol
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
Mandei fazer
De puro aço luminoso um punhal
Para matar o meu amor e matei
Às cinco horas na avenida central
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
Mandei plantar
Folhas de sonho no jardim do solar
As folhas sabem procurar pelo sol
E as raízes procurar, procurar
Mas as pessoas na sala de jantar
Essas pessoas na sala de jantar
São as pessoas da sala de jantar
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer.”
Crítica sofisticada à acomodação da sociedade brasileira
à época da ditadura militar, “Panis Et Circenses”
permanece atual e válida tanto para nós como para os
demais habitantes do planeta. Afinal, a política do pão
e circo remonta à Roma antiga e provém de um verso do
escritor Juvenal, que criticava o povo da hoje capital
da Itália, mais interessado em comer e se divertir do
que nas questões políticas.
Embora tenha consultado um site que destrincha a letra à
luz dos tensos acontecimentos políticos da época, irei
me deter no simbolismo da alienação nossa de cada dia.
Na primeira estrofe, o protagonista da canção fala que
tentou cantar coisas belas e positivas e também buscou
esclarecer e iluminar as consciências alheias. No
entanto, as famílias estão ocupadas demais com suas
salas de refeições, rotinas e distrações costumeiras.
Vem, então, a segunda estrofe, na qual Caetano e Gil
radicalizam, pois quem narra a canção diz que mandou
fazer um punhal e matou o grande amor em praça pública
na hora do rush. A violência, todavia, estava (e ainda
está, infelizmente) tão naturalizada que ninguém dá
importância ao ato.
Por fim, o porta-voz planta sonhos (poesia, letra e
música) nos jardins de um célebre solar carioca que,
então, abrigava vários artistas recém-chegados à Cidade
Maravilhosa. Artistas estes que foram responsáveis por
grandes mudanças na cena cultural brasileira. Plantas
que sabiam procurar pelo sol para poder crescer. Em vão.
Novamente, as pessoas ocupadas apenas com o dia a dia
não estavam interessadas em reagir à mesmice e tentarem
dar um sentido maior às suas vidas monocórdias. Todas
ocupadas somente em nascer e morrer.
Prosseguindo nas paradas literárias, recorro ao livro Reforma
Íntima – a evolução em fase regenerativa, do
espírito Cairbar Schutel. Trata-se de uma obra na qual o
Bandeirante do Espiritismo responde a várias perguntas
dos médiuns que a psicografam. No capítulo dois, indagam
se existe felicidade no mundo dos maus. Um mundo como o
nosso, por exemplo, onde espíritos de baixo
desenvolvimento moral como nós acabam assimilando o mal
com mais facilidade. Cairbar dá uma complexa resposta,
da qual ressalto a afirmação de que não existe um mundo
mau ou dominado pelo mal. O que vemos, na nossa
atualidade, é grande parte da população mundial às
voltas com várias provas e expiações difíceis e
complexas. Por isso, segundo ele, nem pensam em
prejudicar o próximo, já que precisam resolver suas
próprias questões.
Não há como comentar o que Cairbar responde sem tecer
considerações acerca do capitalismo, sistema econômico
predominante no mundo atual. Baseado na propriedade
privada, nos meios de produção (terras, máquinas e
indústrias, por exemplo), no lucro a qualquer custo e na
acumulação de riquezas, o capitalismo resulta em divisão
de classes sociais (empresários e proletários),
distribuição desigual de bens e de renda, competição e,
por tabela, incertezas quando a trabalho permanente e
estável, acesso à moradia, saúde, lazer e educação de
qualidade etc. Isso para ser bem sucinto.
O que vemos ao redor, dentro de nossos lares e de nós
mesmos é um modo de vida que nos toma inseguros em
relação ao amanhã e consome nossas energias na busca
diária pelo pão de cada dia. Um cenário que,
convenhamos, rouba nosso tempo e nossa saúde física e
mental. A consequência é uma sociedade envolvida não
somente com resgates individuais, mas também consumida
por um cotidiano que, conforme ressalta Cairbar, nos
envolve em provas e expiações inerentes à imperfeição do
sistema capitalista e não deixa muito espaço para que
pensemos formas mirabolantes de prejudicar o próximo, a
não ser que sejamos criaturas bem nefastas, como uma
minoria infeliz (mas ruidosa), que vem causando toda
sorte de desgraças no mundo.
Só que aí recorremos a O livro dos espíritos, de
Allan Kardec. Mais precisamente, na parte que aborda a
questão do bem e do mal, capítulo destinado à Lei Divina
ou Natural (Lei de Deus). Na questão 642, Kardec
pergunta se, para agradar a Deus e assegurar boa posição
futura, basta ao homem não praticar o mal. A resposta
dos benfeitores espirituais é certeira: “Não: cumpre-lhe
fazer o bem no limite de suas forças, porquanto
responderá por todo mal que haja resultado de não haver
praticado o bem”.
A argumentação prossegue na pergunta 643, na qual Kardec
questiona se haverá quem, pela posição que ocupa, não
tenha condição de fazer o bem. Outra resposta
contundente: “Não há quem não possa fazer o bem. Somente
o egoísta nunca encontra ensejo de praticá-lo”.
Aparentemente parece haver contradição entre Cairbar e
Kardec. Notemos, no entanto, que o primeiro fala em
falta de tempo para praticar o mal enquanto o segundo
diz que não fazer o bem já é uma forma de dar
oportunidade para o mal proliferar. A questão é que o
capitalismo estressante em que estamos mergulhados nos
torna mais egoístas, utilitaristas e, por conseguinte,
sem tempo e sensibilidade para enxergar o outro como
companheiro de jornada. Principalmente quando levamos em
conta as provas e expiações que são geradas por ele e
que acabam nos tornando tensos, impacientes,
amedrontados e até pusilânimes. Um total contraponto a
Jesus, que atendia e acolhia a todos. Justamente por
isso, foi perseguido e condenado pelos poderosos de seu
tempo e também ignorado pelos que preferiram se manter
na cômoda indiferença.
A pergunta de O livro dos espíritos que mais me
chama atenção, todavia, é a 932, à qual, volta e meia,
recorro. É em sua argumentação que tentarei encontrar o
fiel da balança. Nela, Kardec questiona por que a
influência dos maus é mais forte que a dos bons. A
resposta diz que a razão reside no fato de os bons serem
fracos. Por isso, os maus se sobressaem devido à audácia
e à intriga. Quando os bons quiserem, serão em maioria.
Essa omissão à qual os benfeitores espirituais se
referem pode ser interpretada de várias formas, a meu
ver. Temos a omissão dos que simplesmente não querem se
envolver. A dor do próximo e os problemas que o mundo
enfrenta não lhes interessam, seja por indiferença ou
porque crerem já ter problemas demais. Há os que se
omitem por apatia. A vida já exigiu tanto deles que, a
certa altura, preferem se manter à parte. É uma espécie
de omissão desesperançada. Há também os que, conforme
ressalta Cairbar Schutel, estão tão envolvidos em
questões pessoais e familiares que têm a ver com débitos
de vidas pretéritas (Quem não?) e também com os
problemas trazidos por uma sociedade desigual,
materialista e competitiva que, de fato, não têm nem
tempo em fazer o mal, que dirá o bem! Soma-se a essas
variantes omissas o fato de boa parte da humanidade
ainda não fazer uma ideia concreta do que realmente seja
fazer o bem. É algo que ainda deixa muitos de nós cheios
de dedos, como se não soubéssemos onde pôr a mão para
dar início a algo que resulte num bem comum.
E como todos nós carregamos um misto de todos esses
motivos, cá estamos às voltas tanto com a necessidade de
atuar para que uma sociedade mais equânime floresça –
apesar dos percalços íntimos e das dores coletivas –
como com a ocupação de nascer e morrer, ou seja, pagar
as contas, educar os filhos, manter-se atualizado na
profissão, zelar pela harmonia familiar etc.
Não é uma tarefa fácil deixarmos de ser menos sala de
jantar e mais povo na rua (isto é, lúcidos e
participativos). Afinal, o modus operandi que
estrutura a sociedade capitalista ocidental não será
extinto da noite para o dia. Requer mudança de
mentalidade, educação questionadora e libertadora desde
as bases, participação cada vez mais efetiva na vida
política – não só pelo voto consciente, mas no
acompanhamento das pautas –, mudanças profundas na
relação patrão/empregado, novas formas de organização
social e econômica... Enfim, a lista é longa, e boa
parte dela irá se apresentando à medida que formos
transformando o mundo num lugar mais participativo e
solidário e menos competitivo e individualista.
Urge, porém, estarmos dispostos para tanto. Caso
contrário, seremos os omissos apáticos e conformados da
sala de jantar que serão levados de roldão pelos ventos
das mudanças. Nesse caso, não haverá saleiro, jarra,
bandeja ou comensal que resista. Que tal tomarmos
tenência desde agora para surfarmos nesses ventos que já
começaram a soprar?
Bibliografia:
1. ARRUDA,
Renata – Panis Et Circenses: significado do clássico
de Os Mutantes. Disponível em: LINK-1
2. GLASER,
Abel; GLASER, Adriana – Reforma íntima: a evolução em
fase regenerativa, 1ª edição, 2018, Casa Editora O
Clarim, Matão, SP.
3. KARDEC,
Allan – O livro dos espíritos, 60ª edição, 1984,
Federação Espírita Brasileira (FEB), Brasília, DF.
4. MENEZES,
Pedro – Capitalismo. Disponível em: LINK-2
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