Entes queridos que partem
Tinha chegado nem havia uma hora ao trabalho em 31 de
maio de 2017 quando o telefone toca. É um amigo que mora
a mais de 200 km da minha cidade.
Dizia que no fim do dia anterior tinham tido a reunião
mediúnica habitual e que ao término dela uma senhora, a
D. Fátima, uma professora reformada, referiu algo que
ela própria não sabia se valia a pena partilhar:
tinha-lhe aparecido há minutos um Espírito, uma senhora
que lhe disse ser Júlia, com um aspeto que lhe lembrou a
minha mãe. Adianta que não sabe se fará qualquer sentido
para mim, mas o Espírito deixou um recado telegráfico
dizendo com um sorriso a D. Fátima - que não a conheceu
nem terá alguma vez ouvido falar dela - estar de
passagem. Acrescentou que o Dr. Osório também.
Sim, recordei-me logo de conversas sobre o Dr. Osório,
na década de 1980. A minha mãe, ao chegar do trabalho no
Instituto de Oncologia da cidade do Porto, falava dele,
um administrador importante na fase inicial deste
instituto, que não conheci pessoalmente. Nessa altura
teria cerca de 18 anos de idade e era estudante.
Recordo-me de que a minha mãe se sentia contrariada com
algumas decisões. Os desabafos de há 30 anos eram
naturais. Só podia ser ele, concluí. Percebi que terá
acentuado isso apenas para que eu tivesse a confirmação
da identidade dela. Se isto não acontecesse,
possivelmente nunca mais me voltaria a lembrar das
referências antigas ao Dr. Osório, mas torna-se curioso
ela referi-lo, pois implicitamente é como se me dissesse
que, apesar das discordâncias, agora ambos se entendem
e, por vezes, até desempenham tarefas comuns.
A minha mãe tinha desencarnado em novembro de 2013. Vim
a saber por outra manifestação mediúnica verosímil
ocorrida noutro grupo mediúnico no início de 2014 que
demorou alguns meses a ganhar lucidez na vida
espiritual. É verdade que não precisava dessa ocorrência
mediúnica para saber que a vida espiritual é uma
realidade, mas ocorreu e devo partilhá-la.
Sensível e recorrente, a despedida da vida corporal de
alguém que nos é mais próximo é uma das experiências de
vida comum a toda a gente.
A emoção estremece e surge um sentimento de impotência
face à vontade de continuar a interação com essa pessoa
que acabou de concluir a passagem terrena.
Tornou-se habitual referir que se perdeu o ente querido,
mas perdeu-se apenas de vista, visto está que as
evidências insofreáveis da continuidade da vida além da
morte do corpo material abundam. Sendo lei da natureza
ainda pouco conhecida da população encarnada da Terra,
não se compadece com crenças materialistas e afins. O
fenómeno surge, e o ser espiritual, ou Espírito,
sente-se a existir na dimensão espiritual. Quando
impreparado, situação mais frequente, fica surpreendido,
antes confuso, até que começa a perceber a sua situação.
O mais importante nessas alturas são a facilidade de
mobilizar os bons sentimentos. Eles proporcionam
percepções que de outro modo se atrofiam. São dados
experimentais recorrentes.
Na verdade, não perdemos os entes queridos que partem.
Nunca foram nossa propriedade. São filhos da vida
imorredoura, como nós próprios. Eles continuam, após uma
fase de reabilitação e de entendimento da nova dimensão
de vida, a desenvolver trabalho útil, a amar ainda mais
aqueles que ficaram neste plano denso, sem perderem de
vista as leis sábias que nos matriculam nas aulas de
amor e sabedoria da vida terrena, embora o nosso lar
natural seja a vida espiritual.
Aqueles que partem do plano material podem ser
auxiliados pelos que permanecem por cá mais algum tempo.
Abandonando sentimentos de tristeza contumazes e outros
da mesma natureza vibratória, sentem-se reconfortados ao
sentir mais ou menos claramente o que lembramos deles
com carinho, gratidão e amor elevado. Essas são as
verdadeiras preces úteis, as missivas telepáticas de
afeto feliz que eles recolhem com muito agrado.
Compreende-se que, quando partimos da vida terrena e nos
esforçamos no período de adaptação à nova vida, se
sentimos que somos causa de tristeza e dor aos que
amamos – sejam filhos, sejam pais – enfrentamos mais
dificuldades nesse esforço de elevação interior. Não há
necessidade.
Por vezes, temos de ter uma vista mais abrangente da
realidade para não sermos ingratos. Por exemplo, no caso
dos pais que partem, apesar de tudo, devem ser
valorizadas as experiências de vida comuns de numerosos
anos, não o período de ausência material. Sentindo-as
com gratidão, são um património espiritual valioso que a
vida ofereceu, com peso mais elevado no prato da balança
da sua presença do que no da sua ausência nas aulas
práticas da vida terrena. Isto, num aspeto quantitativo,
porque se considerarmos o aspeto qualitativo, isso
recrudesce. O período de infância em que os nossos pais
nos protegeram e educaram tem maior importância face à
condição dependente das primeiras faixas etárias.
Há que mitigar a tristeza que a sua ausência material
possa causar. Sem pressa e nos ritmos normais, a
sabedoria da vida deverá permitir o reencontro, sendo
certo que quem pense em abreviar a vida material na
ideia de estar junto de quem ama apenas se distanciará
mais tempo, adiando a oportunidade de reabraçar os seres
amados. Aceitar as leis da natureza revela sabedoria. O
percurso evolutivo entende-se em milhões de anos, nunca
em algumas décadas.
Jorge Gomes, escritor e
ex-vice-presidente da Federação Espírita Portuguesa,
reside na cidade do Porto, Portugal.
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