Relendo a missiva
No distante 1964, a Federação Espírita Brasileira-FEB
lançou a obra Estante da vida, psicografia de
Francisco Cândido Xavier e escrita pelo espírito que
utiliza o pseudônimo de Irmão X. Uma obra ímpar, mas
destaca-se para fins deste artigo a crônica de número
33, intitulada “Missiva fraterna”.
Nela, o autor se reporta ao médium pelo qual ele se
comunica habitualmente, para lhe dar conselhos, em
especial no sentido de que a mediunidade não o torna
melhor do que os outros, portador de privilégios, e que
cabe a ele enfrentar os desafios cotidianos de qualquer
espírito encarnado, isso de forma bem resumida. Vale a
leitura do texto original.
Apesar de terem transcorridos mais de seis décadas desse
texto, no atual 2024 se vê que a sua essência não foi
aprendida ainda. O texto busca humanizar o médium e a
mediunidade, uma atividade de construção do processo
evolutivo como outras, mas insistimos em colocá-la num
pedestal, ressuscitando antigas práticas de povos
ancestrais em relação à prática mediúnica.
E pululam médiuns semidivinizados, credenciados a serem
porta-vozes inquestionáveis, alheios a qualquer
escrutínio e, ainda, seguidos por pessoas sequiosas de
curas ou mensagens reveladoras, para aplacar nossas
dores ou dúvidas existenciais.
Muitos desses não são nem legítimos em seus fenômenos e
outros exploram a boa-fé das pessoas em interesses
econômicos, e achamos, no Espiritismo, que esses
problemas com a prática mediúnica só se encontram do
lado de fora, fazendo-nos baixar ainda mais a precaução
diante desses problemas, em uma pretensa sensação de
segurança.
A humanização do médium trazida na mensagem do Irmão X
tem esse curioso intertexto, de um espírito que relembra
a fragilidade do médium, mas que ao mesmo tempo nos
relembra a fragilidade de todos os médiuns, e que
colocar as fichas de forma acrítica em um medianeiro
pode arrastar todos nós ao fosso da ilusão.
Desejamos um canal direto e confiável das orientações do
Alto, e vemos nesses médiuns esse papel, o que traria
exclusivismos distantes do que propõe a discussão
espírita, que, pelo contrário, traz uma postura um tanto
indigesta de crer com uma fé raciocinada, algo por vezes
oneroso demais em um mundo onde andamos cansados e
queremos algo mais simples e mastigado.
A busca por santos de pés-de-barro não é uma
exclusividade nossa, dos espíritas, ainda que devesse
ser estranha a nós. Ora, mas então não podemos confiar
em ninguém? diriam alguns. Na verdade, o problema é
confiarmos em tudo que aparece de forma acrítica e isso
é bem diferente de ser um incrédulo, sendo apenas uma
pessoa prudente.
Por isso Kardec preconizava o estudo sistemático aos
médiuns ostensivos ou não, como forma de emancipação
nessa trajetória de autoconhecimento no rumo da
evolução. Menos hierarquia, menos endeusamentos, menos
verdades absolutas. Essa é a essência do Espiritismo e
que nos distingue de outras denominações.
Mas, se quisermos, ao contrário das verdades límpidas da
missiva fraterna, continuar acreditando que os médiuns
são seres à parte da Criação, beatificados, que
funcionam como portais absolutos das verdades divinas,
encontraremos muitas vozes a fazer coro, olhando de cara
feia para essa discussão, dizendo ser qualquer
questionamento falta de caridade, abaixando escudos para
uns e erguendo muros para outros.
Felizmente, a realidade sempre bate à porta, mostrando
que os médiuns são humanos com suas fragilidades
naturais, e trazendo a mágoa da decepção para quem via
ali uma fração da divindade. É preciso reler a “Missiva
fraterna” sessenta anos depois, não como uma releitura,
mas como um reforço de leitura, pois a lição ainda está
distante.
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