Evangelho ao pé-da-letra
Igor gabava-se de praticar o evangelho ao pé-da-letra.
Cumpria as designações de Jesus à risca, sem espaço para
interpretações ou para adaptações. Fidelidade sempre!
Diante de uma divergência na casa espírita, instaurava
logo a contenda, invocando que Jesus não veio trazer a
paz e sim a espada. Frente a um amigo em dificuldades,
sacava logo que quem com ferro fere, com ferro será
ferido, para justificar as mazelas apresentadas.
E assim, combinando literalidade com conveniência, Igor
ia seguindo seu caminho na trilha do evangelho,
justificando seus posicionamentos e jogando evangelho
nas pessoas com força, pintando um Jesus do Igor, bem
diferente da sua essência.
Certo dia, à noite, durante um sonho, viu a figura de
Jesus a lhe dizer: “-Igor, prenda-se a essência da minha
vida ao ler o evangelho! Você verá que não era isso que
eu queria dizer!”
Sobressaltado, Igor acorda e indignado reclama: “-Ora,
mas até Jesus quer contrariar o que está escrito no
evangelho! Que absurdo!”
Apesar de espíritas, vivemos em uma sociedade marcada
por séculos de um cristianismo preso a formalidades,
ritos, discursos de força e intimidadores, nos quais o
evangelho se torna um livro sagrado e inquestionável, o
que dá força a essa visão de literalidade que mais
distorce do que fideliza.
E isso nos contamina também. Basta ver como nos
reportamos, por vezes, as perguntas de O Livro dos
Espíritos, decoradas, até no número, e tomadas por
vezes fora do contexto.
Essa fidelidade a trechos isolados de forma
descontextualizada é na verdade uma forma de
interpretação, e com grande potencial de deturpação e
manipulação, moldando a conveniência das verdades que se
quer vender.
Tanto no evangelho de Jesus quanto no Espiritismo,
interessa a percepção da essência da mensagem, fruto de
um estudo aprofundado e harmonizado desse conjunto de
conhecimentos.
A mensagem de Jesus é o amor. Em uma forma profunda e
complexa. Isso é mais sagrado do que qualquer livro. O
estudo dos seus ditos, de seus atos, ao longo do
evangelho, reforça isso. Algo diferente pode ser desde
problemas de tradução até mudanças ao longo das diversas
versões, ou mesmo uma interpretação enviesada, daquelas
que transforma Deus em um senhor dos exércitos.
Infelizmente, essa adesão a literalidade ainda encontra
espaço num mundo que busca bulas para regular os
cotidianos, o que nos faz ler o evangelho e as obras
espíritas com um olhar estranho ao que preconiza o
próprio Espiritismo. Sutilezas, que revelam que também
estamos um tanto distantes ainda de entender a essência
do Espiritismo.
Trechos isolados que já motivaram tantos enganos e
equívocos são armadilhas que pela pretensão de proteger
a essência dos evangelhos se tornam, ao fim, uma fuga
dessa essência, como instrumento de imposição de ideias,
as vezes bem estranhas, ainda que palatáveis.
Importa que o pé-da-letra não se converta em um pé na
porta, pela truculência das ideias absurdas que insistem
em se sobrepor à razão, contrariando não só a raiz da
mensagem de Jesus, mas a ferramenta de segurança que
Kardec nos legou, diante dessas dúvidas interpretativas.
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