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por Marcus Vinicius de Azevedo Braga

 

Evangelho ao pé-da-letra


Igor gabava-se de praticar o evangelho ao pé-da-letra. Cumpria as designações de Jesus à risca, sem espaço para interpretações ou para adaptações. Fidelidade sempre!

Diante de uma divergência na casa espírita, instaurava logo a contenda, invocando que Jesus não veio trazer a paz e sim a espada. Frente a um amigo em dificuldades, sacava logo que quem com ferro fere, com ferro será ferido, para justificar as mazelas apresentadas.

E assim, combinando literalidade com conveniência, Igor ia seguindo seu caminho na trilha do evangelho, justificando seus posicionamentos e jogando evangelho nas pessoas com força, pintando um Jesus do Igor, bem diferente da sua essência.

Certo dia, à noite, durante um sonho, viu a figura de Jesus a lhe dizer: “-Igor, prenda-se a essência da minha vida ao ler o evangelho! Você verá que não era isso que eu queria dizer!”

Sobressaltado, Igor acorda e indignado reclama: “-Ora, mas até Jesus quer contrariar o que está escrito no evangelho! Que absurdo!”

Apesar de espíritas, vivemos em uma sociedade marcada por séculos de um cristianismo preso a formalidades, ritos, discursos de força e intimidadores, nos quais o evangelho se torna um livro sagrado e inquestionável, o que dá força a essa visão de literalidade que mais distorce do que fideliza.

E isso nos contamina também. Basta ver como nos reportamos, por vezes, as perguntas de O Livro dos Espíritos, decoradas, até no número, e tomadas por vezes fora do contexto.

Essa fidelidade a trechos isolados de forma descontextualizada é na verdade uma forma de interpretação, e com grande potencial de deturpação e manipulação, moldando a conveniência das verdades que se quer vender.

Tanto no evangelho de Jesus quanto no Espiritismo, interessa a percepção da essência da mensagem, fruto de um estudo aprofundado e harmonizado desse conjunto de conhecimentos.

A mensagem de Jesus é o amor. Em uma forma profunda e complexa. Isso é mais sagrado do que qualquer livro. O estudo dos seus ditos, de seus atos, ao longo do evangelho, reforça isso. Algo diferente pode ser desde problemas de tradução até mudanças ao longo das diversas versões, ou mesmo uma interpretação enviesada, daquelas que transforma Deus em um senhor dos exércitos.

Infelizmente, essa adesão a literalidade ainda encontra espaço num mundo que busca bulas para regular os cotidianos, o que nos faz ler o evangelho e as obras espíritas com um olhar estranho ao que preconiza o próprio Espiritismo. Sutilezas, que revelam que também estamos um tanto distantes ainda de entender a essência do Espiritismo. 

Trechos isolados que já motivaram tantos enganos e equívocos são armadilhas que pela pretensão de proteger a essência dos evangelhos se tornam, ao fim, uma fuga dessa essência, como instrumento de imposição de ideias, as vezes bem estranhas, ainda que palatáveis.

Importa que o pé-da-letra não se converta em um pé na porta, pela truculência das ideias absurdas que insistem em se sobrepor à razão, contrariando não só a raiz da mensagem de Jesus, mas a ferramenta de segurança que Kardec nos legou, diante dessas dúvidas interpretativas.
 
 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita