Especial

por Ruy Ferreira

Jesus e Kardec estão realmente obsoletos?

Parte 1


 

Antes de mais nada é necessário explicar o adjetivo obsoleto aos influencers da moda, conhecidos formadores de opinião e de comportamento social; afinal, a velocidade da mudança atual é tamanha que nada de ontem é a mesma coisa hoje.

Os dicionários (coisa antiga demais) definem o significado de obsoleto como: - Que está ultrapassado; sem uso; distante da moda atual. - Que se encontra fora de uso; arcaico, antigo.

Logo, este ensaio trata das ideias de duas figuras que estão – para muitos – completamente fora da moda: Jesus de Nazaré e Allan Kardec. Aqui vistos em sentido estrito (stricto sensu) do Espiritismo, a doutrina codificada por Kardec com base nas eternas mensagens de Jesus.

Outra coisa fundamental para entender o escrito é a identidade do autor. Como medimos o próximo pela nossa própria régua moral, apresento a minha régua para facilitar o julgamento do leitor: liberal nas ideias socioeconômicas e políticas; respeitador do livre-arbítrio do próximo de forma irrestrita; espírita como única religião professada na vida, ou seja, antimaterialista e por conseguinte antiateísta, completamente.

Sabendo medir o autor, fica mais fácil ler e medir os dois personagens principais do texto aqui exposto: Jesus e Kardec. Afinal, o primeiro – o carpinteiro – aqui esteve com a missão de anunciar o Reino de Deus nos tempos presentes dEle. Apresentou aos judeus de dois mil anos passados que Deus é bom e misericordioso, facultando a todos alcançar a salvação. Em outras palavras, Jesus traz Deus para perto do homem e, com isso, busca fortalecer o ser humano para ser capaz de vencer a dor e o sofrimento. Era um judeu completo, apesar de ser nativo do desprezado lugarejo de Nazaré, e dialogava com Deus e com os habitantes da pequena vila com a mesma facilidade. Realizou ações de transformação moral da sociedade, pregou a fraternidade entre as pessoas e nunca se envolveu com política ou governo. Nada escreveu, nem fundou religião alguma.

Allan Kardec é o pseudônimo do professor, tradutor e escritor francês Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869). Nascido em uma antiga família de orientação católica de classe média, teve estudos refinados na Escola de Pestalozzi, na Suíça, e tornou-se um ativo propagador daquele método de ensino, que tão grande influência teve na reforma do ensino na França e na Alemanha. Metódico, pesquisador do magnetismo animal, interessou-se pelos fenômenos mediúnicos em 1854 e codificou a Doutrina Espírita, por meio de obras filosóficas, experimentais (parte fenomênica), inclusive questões religiosas, éticas e comportamentais do ser humano. Era positivista convicto, antimaterialista, nunca deixou de ser católico, apesar de perseguido pela Igreja, falava e traduzia mais de nove idiomas, era educador reformista na França, planejando a educação voltada para a democracia.

Kardec é contemporâneo de ideias e pessoas que influenciaram o Pensamento Ocidental como Karl Max (um dos autores do “O Manifesto comunista” – 1848), Charles Darwin (um dos autores que estabeleceram a ideia de que todos os seres vivos descendem de um ancestral em comum – 1859), Auguste Comte (criador do Sistema de Filosofia Positiva – 1848) e viveu intensamente nesse caldo cultural de meados do Século XIX.

Jesus de Nazaré – o Cristo – trouxe até nós a máxima que, aprendendo a amar a si mesmo, o ser humano passa a ser capaz de amar ao próximo. Em lugar de temer a Deus, amá-lo é a primeira premissa do amor incondicional. Antiga? Sim, afinal são mais de dois mil anos passados. Mas está obsoleta?

Por outro lado, é necessário entender a diversidade de opiniões por meio das quais o Espiritismo abriu e ainda abre o caminho como o Consolador prometido por Jesus. São inserções de outras religiões por um lado, de outro os materialistas tentando combater o corpo de ideias espíritas, e ainda os armados com uma Ciência pretensamente neutra, mas carregada de preconceitos de seus membros, de muitas Filosofias originadas de uma diversidade sem limites, associando tudo isso à ignorância desejada e imposta de um ser humano dominado por outros, formando o caldo onde aflora a Doutrina dos Espíritos, desde 1857 até hoje.

Hoje as agendas de influenciadores e formadores de opinião estão postas na mesa da sociedade, em que o simples discordar causa nada menos que o cancelamento social e virtual de quem ousa discordar do pensamento do restrito time de membros natos do establishment (conjunto de forças que possuem larga influência decisória dentro de uma sociedade). Sejam elas globalistas, econômicas ou ideológicas.

Assim, o que se apresenta na imprensa, nas redes sociais, na Internet em especial, são tópicos tão direcionados que não sobra espaço para temas de dimensão maior, aqueles que transcendem o dia de hoje, o tempo presente. A evolução moral do ser humano não cabe mais na agenda. Jesus não tem mais interlocutores entre os novos formadores de opinião. As ideias de Cristo não são mais importantes, afinal as pequenas causas estão expostas na vitrine e não cabe mais o pensar grande, no todo. E aí, é lógico, são excluídos em nome de causas novas, ou pior, exigem que se refaça a ideia original por conta do entendimento dessa ou daquela importante persona real ou virtual. Eles estão obsoletos.

Como me amar, sem antes amar e defender em ativismo rebelde a foca da Antártica? Onde cabe o próximo em nosso cotidiano se ele se transformou em um avatar, virtual, nas nuvens? Como amar a Deus sem antes amar o consumo de bens?

Reformar a Bíblia é tema de debate, com gente jogando tempo e recursos no lixo, afinal ela não mais atende as novas demandas de minorias, por exemplo. Vamos mudar o Novo Testamento para que ele se transforme na base para a ação política. E por aí a agenda vai impondo a necessidade de fazer algo que realmente não é necessário fazer. Mas, atende ao interesse de alguém.

No Espiritismo, desde sua chegada, em língua portuguesa, na Bahia em 1865, movimentos internos e externos tentam desesperadamente mudar o fundamento básico da doutrina codificada por Kardec. Claro que em 1860 no Rio de Janeiro já havia publicações e associações espíritas funcionado em língua francesa. Até mesmo Kardec comentou sobre o que por aqui se fazia com o Espiritismo. Em suas palavras, depois de afirmar que a reportagem nada sabia da teoria do Espiritismo, ainda assim elogiou a divulgação ocorrida:

 

“Verificamos, com satisfação que a ideia espírita faz progressos sensíveis no Rio de Janeiro, onde ela conta com numerosos representantes, fervorosos e devotados. A pequena brochura Le Spiritisme dans sa plus simple expression (O Espiritismo na sua mais simples expressão), publicada em língua portuguesa, contribuiu, não pouco, para ali espalhar os verdadeiros princípios da Doutrina.” (Revista Espírita de 1863).

 

No Rio de Janeiro, quando da criação do primeiro grupo espírita, a “Sociedade de Estudos Espiríticos” - Grupo Confúcio, em 1873, estava previsto em seus estatutos que deviam seguir os princípios e as formalidades expostos em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns, de Allan Kardec. Três anos foram suficientes para o fim do Grupo Confúcio e sua substituição pela “Sociedade de Estudos Espíritas Deus, Cristo e Caridade”, que em seu programa doutrinário acrescentava, além da obra codificada por Allan Kardec, o estudo da obra Os Quatro Evangelhos, de Jean-Baptiste Roustaing. Somos assim, desde a Codificação.

De lá para cá esse segmento de princípios foi mudando ao sabor de interesses pessoais, de luta pelo domínio e poder de grupos e associações, de influência externa de outras culturas e religiões, e principalmente por conta da enorme vaidade dos adeptos da doutrina.

Jesus foi sendo transformado de Filho de Deus para Rei dos Judeus, desembocando em um revolucionário político, nos dias atuais. Kardec não teve melhor destino, pois leio inúmeros textos publicados em endereços espíritas que é preciso revisar e atualizar os livros da lavra do Codificador. Vamos reformar as ideias de Jesus e Kardec para serem enquadradas no politicamente correto, de sorte a se ajustar na agenda atual, e, principalmente, colocando sua pena a serviço de aspirações ideológicas alienígenas ao espiritualismo, como o materialismo.

O jornalista baiano Teles de Menezes, ao pôr em funcionamento o primeiro Centro Espírita no Brasil, usando as obras O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns em língua francesa, sentiu a mão pesada da Igreja Católica Romana, que pressionou o governo a não aprovar o estatuto da casa espírita, por ser uma afronta à religião oficial do Império do Brasil. Assim nasceu o Espiritismo no país, e isso se repetiu no Rio de Janeiro quando da fundação do Grupo Confúcio, considerado ilegal e visto como crime.

Para aqueles pioneiros a barreira maior para a difusão e prática era a língua francesa. Mas Teles de Menezes em 1874 já esperneava ao relatar o ano findado na Associação Espirítica Brasileira com estas palavras: “Os preconceitos, infelizmente arraigados no ânimo do maior número, têm sido um dos grandes obstáculos à propagação das salutares e regeneradoras doutrinas da filosofia espirítica.” Isso mesmo, preconceitos!

O primeiro espírita do Brasil vivia o Espiritismo e sonhava com o seu futuro: “Essas novas gerações verão aparecer o amor e a liberdade, símbolos nobres da regeneração humana; e então, no meio da crença universal em Deus, as duas imensas chagas, que tanto corroem a vida social - o egoísmo e o orgulho -, desaparecerão. Essa feliz transformação será devida ao Espiritismo - operar-se-á pela aceitação universal de sua filosofia.” Claro que esse futuro ainda não chegou.

Voltando a Kardec, lembremos que ele estava imerso no que hoje chamamos de “inchaço do pensamento”, fenômeno desenvolvido no século XIX, em que uma enorme profusão de ideias fervilhava, todas querendo resolver os problemas do mundo. E se hoje o Codificador aqui tentasse pesquisar e escrever O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns? Seria proibido pelos novéis religiosos normativos das associações espíritas, afinal onde se viu usar “colaboradoras” como as irmãs Julie e Caroline Baudin, de 14 e 16 anos! Uma excrescência usar crianças e adolescentes como médiuns para estabelecer os fundamentos do Espiritismo!

(A conclusão deste artigo será publicada na edição 905, no próximo domingo.)


Ruy Ferreira, professor e administrador de sistemas de informação, reside em Maceió, Alagoas.

    

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita