Antes de mais nada é necessário explicar o adjetivo
obsoleto aos influencers da moda, conhecidos
formadores de opinião e de comportamento social; afinal,
a velocidade da mudança atual é tamanha que nada de
ontem é a mesma coisa hoje.
Os dicionários (coisa antiga demais) definem o
significado de obsoleto como: - Que está ultrapassado;
sem uso; distante da moda atual. - Que se encontra fora
de uso; arcaico, antigo.
Logo, este ensaio trata das ideias de duas figuras que
estão – para muitos – completamente fora da moda: Jesus
de Nazaré e Allan Kardec. Aqui vistos em sentido estrito
(stricto sensu) do Espiritismo, a doutrina codificada
por Kardec com base nas eternas mensagens de Jesus.
Outra coisa fundamental para entender o escrito é a
identidade do autor. Como medimos o próximo pela nossa
própria régua moral, apresento a minha régua para
facilitar o julgamento do leitor: liberal nas ideias
socioeconômicas e políticas; respeitador do
livre-arbítrio do próximo de forma irrestrita; espírita
como única religião professada na vida, ou seja,
antimaterialista e por conseguinte antiateísta,
completamente.
Sabendo medir o autor, fica mais fácil ler e medir os
dois personagens principais do texto aqui exposto: Jesus
e Kardec. Afinal, o primeiro – o carpinteiro – aqui
esteve com a missão de anunciar o Reino de Deus nos
tempos presentes dEle. Apresentou aos judeus de dois mil
anos passados que Deus é bom e misericordioso,
facultando a todos alcançar a salvação. Em outras
palavras, Jesus traz Deus para perto do homem e, com
isso, busca fortalecer o ser humano para ser capaz de
vencer a dor e o sofrimento. Era um judeu completo,
apesar de ser nativo do desprezado lugarejo de Nazaré, e
dialogava com Deus e com os habitantes da pequena vila
com a mesma facilidade. Realizou ações de transformação
moral da sociedade, pregou a fraternidade entre as
pessoas e nunca se envolveu com política ou governo.
Nada escreveu, nem fundou religião alguma.
Allan Kardec é o pseudônimo do professor, tradutor e
escritor francês Hippolyte Léon Denizard Rivail
(1804-1869). Nascido em uma antiga família de orientação
católica de classe média, teve estudos refinados na
Escola de Pestalozzi, na Suíça, e tornou-se um ativo
propagador daquele método de ensino, que tão grande
influência teve na reforma do ensino na França e na
Alemanha. Metódico, pesquisador do magnetismo animal,
interessou-se pelos fenômenos mediúnicos em 1854 e
codificou a Doutrina Espírita, por meio de obras
filosóficas, experimentais (parte fenomênica), inclusive
questões religiosas, éticas e comportamentais do ser
humano. Era positivista convicto, antimaterialista,
nunca deixou de ser católico, apesar de perseguido pela
Igreja, falava e traduzia mais de nove idiomas, era
educador reformista na França, planejando a educação
voltada para a democracia.
Kardec é contemporâneo de ideias e pessoas que
influenciaram o Pensamento Ocidental como Karl Max (um
dos autores do “O Manifesto comunista” – 1848), Charles
Darwin (um dos autores que estabeleceram
a ideia de que todos os seres vivos descendem de um
ancestral em comum – 1859), Auguste Comte (criador do
Sistema de Filosofia Positiva – 1848) e viveu
intensamente nesse caldo cultural de meados do Século
XIX.
Jesus de Nazaré – o Cristo – trouxe até nós a máxima
que, aprendendo a amar a si mesmo, o ser humano passa a
ser capaz de amar ao próximo. Em lugar de temer a Deus,
amá-lo é a primeira premissa do amor incondicional.
Antiga? Sim, afinal são mais de dois mil anos passados.
Mas está obsoleta?
Por outro lado, é necessário entender a diversidade de
opiniões por meio das quais o Espiritismo abriu e ainda
abre o caminho como o Consolador prometido por Jesus.
São inserções de outras religiões por um lado, de outro
os materialistas tentando combater o corpo de ideias
espíritas, e ainda os armados com uma Ciência
pretensamente neutra, mas carregada de preconceitos de
seus membros, de muitas Filosofias originadas de uma
diversidade sem limites, associando tudo isso à
ignorância desejada e imposta de um ser humano dominado
por outros, formando o caldo onde aflora a Doutrina dos
Espíritos, desde 1857 até hoje.
Hoje as agendas de influenciadores e formadores de
opinião estão postas na mesa da sociedade, em que o
simples discordar causa nada menos que o cancelamento
social e virtual de quem ousa discordar do pensamento do
restrito time de membros natos do establishment (conjunto
de forças que possuem larga influência decisória dentro
de uma sociedade). Sejam elas globalistas, econômicas ou
ideológicas.
Assim, o que se apresenta na imprensa, nas redes
sociais, na Internet em especial, são tópicos tão
direcionados que não sobra espaço para temas de dimensão
maior, aqueles que transcendem o dia de hoje, o tempo
presente. A evolução moral do ser humano não cabe mais
na agenda. Jesus não tem mais interlocutores entre os
novos formadores de opinião. As ideias de Cristo não são
mais importantes, afinal as pequenas causas estão
expostas na vitrine e não cabe mais o pensar grande, no
todo. E aí, é lógico, são excluídos em nome de causas
novas, ou pior, exigem que se refaça a ideia original
por conta do entendimento dessa ou daquela importante
persona real ou virtual. Eles estão obsoletos.
Como me amar, sem antes amar e defender em ativismo
rebelde a foca da Antártica? Onde cabe o próximo em
nosso cotidiano se ele se transformou em um avatar,
virtual, nas nuvens? Como amar a Deus sem antes amar o
consumo de bens?
Reformar a Bíblia é tema de debate, com gente jogando
tempo e recursos no lixo, afinal ela não mais atende as
novas demandas de minorias, por exemplo. Vamos mudar o
Novo Testamento para que ele se transforme na base para
a ação política. E por aí a agenda vai impondo a
necessidade de fazer algo que realmente não é necessário
fazer. Mas, atende ao interesse de alguém.
No Espiritismo, desde sua chegada, em língua portuguesa,
na Bahia em 1865, movimentos internos e externos tentam
desesperadamente mudar o fundamento básico da doutrina
codificada por Kardec. Claro que em 1860 no Rio de
Janeiro já havia publicações e associações espíritas
funcionado em língua francesa. Até mesmo Kardec comentou
sobre o que por aqui se fazia com o Espiritismo. Em suas
palavras, depois de afirmar que a reportagem nada sabia
da teoria do Espiritismo, ainda assim elogiou a
divulgação ocorrida:
“Verificamos, com satisfação que a ideia espírita faz
progressos sensíveis no Rio de Janeiro, onde ela conta
com numerosos representantes, fervorosos e devotados. A
pequena brochura Le
Spiritisme dans sa plus simple expression (O
Espiritismo na sua mais simples expressão),
publicada em língua portuguesa, contribuiu, não pouco,
para ali espalhar os verdadeiros princípios da
Doutrina.” (Revista
Espírita de 1863).
No Rio de Janeiro, quando da criação do primeiro grupo
espírita, a “Sociedade de Estudos Espiríticos” - Grupo
Confúcio, em 1873, estava previsto em seus estatutos que
deviam seguir os princípios e as formalidades expostos
em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos
Médiuns, de Allan Kardec. Três anos foram
suficientes para o fim do Grupo Confúcio e sua
substituição pela “Sociedade de Estudos Espíritas Deus,
Cristo e Caridade”, que em seu programa doutrinário
acrescentava, além da obra codificada por Allan Kardec,
o estudo da obra Os Quatro Evangelhos, de
Jean-Baptiste Roustaing. Somos assim, desde a
Codificação.
De lá para cá esse segmento de princípios foi mudando ao
sabor de interesses pessoais, de luta pelo domínio e
poder de grupos e associações, de influência externa de
outras culturas e religiões, e principalmente por conta
da enorme vaidade dos adeptos da doutrina.
Jesus foi sendo transformado de Filho de Deus para Rei
dos Judeus, desembocando em um revolucionário político,
nos dias atuais. Kardec não teve melhor destino, pois
leio inúmeros textos publicados em endereços espíritas
que é preciso revisar e atualizar os livros da lavra do
Codificador. Vamos reformar as ideias de Jesus e Kardec
para serem enquadradas no politicamente correto, de
sorte a se ajustar na agenda atual, e, principalmente,
colocando sua pena a serviço de aspirações ideológicas
alienígenas ao espiritualismo, como o materialismo.
O jornalista baiano Teles de Menezes, ao pôr em
funcionamento o primeiro Centro Espírita no Brasil,
usando as obras O Livro dos Espíritos e O
Livro dos Médiuns em língua francesa, sentiu a mão
pesada da Igreja Católica Romana, que pressionou o
governo a não aprovar o estatuto da casa espírita, por
ser uma afronta à religião oficial do Império do Brasil.
Assim nasceu o Espiritismo no país, e isso se repetiu no
Rio de Janeiro quando da fundação do Grupo Confúcio,
considerado ilegal e visto como crime.
Para aqueles pioneiros a barreira maior para a difusão e
prática era a língua francesa. Mas Teles de Menezes em
1874 já esperneava ao relatar o ano findado na
Associação Espirítica Brasileira com estas palavras: “Os
preconceitos, infelizmente arraigados no ânimo do maior
número, têm sido um dos grandes obstáculos à propagação
das salutares e regeneradoras doutrinas da filosofia
espirítica.” Isso mesmo, preconceitos!
O primeiro espírita do Brasil vivia o Espiritismo e
sonhava com o seu futuro: “Essas novas gerações verão
aparecer o amor e a liberdade, símbolos nobres da
regeneração humana; e então, no meio da crença universal
em Deus, as duas imensas chagas, que tanto corroem a
vida social - o egoísmo e o orgulho -, desaparecerão.
Essa feliz transformação será devida ao Espiritismo -
operar-se-á pela aceitação universal de sua filosofia.”
Claro que esse futuro ainda não chegou.
Voltando a Kardec, lembremos que ele estava imerso no
que hoje chamamos de “inchaço do pensamento”, fenômeno
desenvolvido no século XIX, em que uma enorme profusão
de ideias fervilhava, todas querendo resolver os
problemas do mundo. E se hoje o Codificador aqui
tentasse pesquisar e escrever O Livro dos Espíritos e O
Livro dos Médiuns? Seria proibido pelos novéis
religiosos normativos das associações espíritas, afinal
onde se viu usar “colaboradoras” como as irmãs Julie e
Caroline Baudin, de 14 e 16 anos! Uma excrescência usar
crianças e adolescentes como médiuns para estabelecer os
fundamentos do Espiritismo!
(A conclusão deste
artigo será publicada na edição 905, no próximo
domingo.)
Ruy Ferreira,
professor e administrador de sistemas de informação,
reside em Maceió, Alagoas.