Especial

por Ruy Ferreira

Jesus e Kardec estão realmente obsoletos?

Parte 2 e final


 

No Brasil em especial o básico, o fundamental, mesmo sem ser conhecido, estudado, pesquisado, é superado por ideias alienígenas. E, como me sinto um nativo espírita de raiz, ombreio com Kardec em sua afirmação de que “... trazendo nossa pedra ao edifício, colocamo-nos nas fileiras”. (O Livro dos Médiuns, cap. 3, grifo meu), exponho ideias próprias sobre o movimento espírita contemporâneo no Brasil e desnudo meus ombros para suportar a chibata manuseada por mãos variadas desde materialistas até espiritualistas.

Como espírita li, e releio sem regularidade, O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, O Evangelho segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno, A Gênese, A Prece segundo o Evangelho, Conselhos, reflexões e máximas de Allan Kardec, Instruções Práticas sobre as Manifestações Espíritas, O Espiritismo em sua mais simples Expressão, A Obsessão, O Principiante Espírita, O que é o Espiritismo, Obras Póstumas, Resumo da Lei dos Fenômenos Espíritas, Viagem Espírita em 1862, e toda a coleção da Revista Espírita (1858 a 1869).

E tento, no limite de minha capacidade intelectual, entender a Doutrina que abracei nesta vida. Amplio meus estudos individuais lendo o que aparece às mãos. Nada está excluído, desde que não me afaste do cerne doutrinário do amor ao próximo e a Deus como base e do espiritualismo. Ouço o que posso, sempre na mesma perspectiva.

Diante do advento dos meios digitais de informação me vi expandir ao infinito a possibilidade de conhecer cada vez mais sobre o Espiritismo. E aí comecei a olhar criticamente, e de forma cética, o que nas nuvens eletrônicas-digitais é ofertado aos borbotões. Coloquei um pé atrás da leitura indiscriminada e, com maior seletividade, busco entender as forças e lutas pelo poder que surgiram no movimento espírita a partir da liberação da Internet, e tento classificar, categorizar, colocar em caixas cada vertente, corrente ou movimento que se apresenta na rede. Até o momento não consegui chegar a bom termo.

As ideias de Jesus e Kardec foram desfiguradas pelas pessoas que tentam formar opiniões e conformar a sociedade?

Sim. São correntes de pensamento embutidas no conjunto da obra espírita que deixam as ideias de nossos precursores em segundo plano. Nem o amor ao próximo nem a caridade são bem vistas atualmente ou estão nos primeiros itens da agenda. Justificam-se, superficialmente, que isso se dá pelo livre-arbítrio, a viga-mestra que suporta o peso da doutrina e ampara o movimento desde sua gênese. Será mesmo?

Como se não bastassem as interpretações pessoais, as comunicações individuais sem universalização, as ideias novas tupiniquins, as ideias importadas, que se vão se avolumando no bojo do movimento espírita, como a de Jean Baptiste Roustaing em seu Os quatro Evangelhos, que ainda causa influência no Espiritismo brasileiro. Soma-se a “corrente ubaldista-panteísta” do italiano Pietro Ubaldi. Sem contar as interpretações da linha de Ramatis. E quem ache pouco, há neste tempo pós-moderno um crescente número de espíritas incorporando práticas esotéricas, espiritualistas e new ages, como orientalistas, paracientíficas, projeciologistas, apometria, cromoterapia, espiritismo “holístico” e o espiritismo neoesotérico e até o de autoajuda. Besteira tentar enquadrar os espíritas brasileiros em conservadores e progressistas.

O Espiritismo, agora, não é mais tão experimental e, principalmente, liberal como o praticado no tempo de encarnado de Kardec. E mesmo daqueles primeiros grupos intelectuais espíritas do Brasil. Aos poucos fomo-nos aproximando das crenças e práticas do Catolicismo e com isso melhor aceito na sociedade. Enquanto no viés ideológico se impregnou no movimento, durante os anos de 1960, uma tentativa de levar o Espiritismo nacional para o Socialismo, bem exemplificado pelo Movimento Universitário Espírita que se arrasta até hoje. Se não bastasse ver os resultados das eleições presidenciais de 2018 quando o Instituto Datafolha “apresentou como verdade” que 45% de eleitores espíritas são da opção socialista. É a profecia da Estatística imiscuindo-se na religião visando formar uma opinião pró-materialista.

Surgem no Brasil nomes que, intencionalmente ou não, levam o movimento para mais perto do materialismo. É a força da vontade pessoal de ativistas políticos que supera a mensagem de Jesus e a codificação de Kardec, abrindo assim espaços para ideologias nascidas do materialismo em pleno seio espírita.

De outro lado, nomes igualmente importantes levam o movimento espírita para as raias da Teologia da Prosperidade, tão cara ao movimento pentecostal-protestante nacional. A máxima da moral de Jesus “De graça recebestes, de graça deveis dar!” (Mateus 10,8) é jogada na lata do lixo e a mediunidade entra no rol do trabalho pago. Quadros pintados por renomados artistas são vendidos a preços acessíveis nos centros espíritas, assim como uma indústria poderosa e rica de escrita, edição, publicação e venda de livros, músicas e peças teatrais. É o vale tudo por dinheiro, explorando o lado de lá, o espiritual.

Para além dessas duas vertentes, há casas espíritas ofertando cursos práticos de mediunidade de cura, com currículo baseado na Física Quântica. Se a imposição das mãos, praticada por Jesus de Nazaré, não é considerada suficiente para irradiar fluidos sobre o paciente, agora livros e apostilas apresentam a correta coreografia para se aplicar um “passe”.

Perdeu-se a capacidade de universalizar o conhecimento dos Espíritos, buscando-a na comunicação inteligente com os entes espirituais, submetendo-as ao escrutínio de uma seleção, comparação e testagem com várias outras fontes. Hoje, basta a palavra de um espírito e, pronto, a verdade absoluta nos foi revelada!

Os espíritas oriundos de outras religiões não rompem com a moral católica ou protestante. Coloca-se em prática o que nas religiões de origem era só pregação. Somos os que praticam o que os católicos e protestantes pregam, mas, em muitos casos, não fazem. Temos agora castas sacerdotais que ainda não usam batinas, são médiuns ilustres acima de qualquer crítica, intelectuais que palestram e escrevem belos tratados vazios de base filosófica espírita, mas capazes de vender ideias distantes do Espiritismo, como se dele fossem orgânicas. Há os ativistas de causas mil, capazes de levantar bandeiras de luta em nome do Espiritismo, sem ao menos cuidar para que a mão esquerda não descubra o que fez a mão direita. A cada ação uma fotografia, um vídeo, uma publicação nas redes sociais.

Por fim, se alguém acredita que tudo começou ontem, repilo veementemente que não. Nem mesmo Allan Kardec foi livre de influenciadores de causas alienígenas ao Espiritismo. Lembremo-nos de Léon Denis, que foi operário em Tours e militou no movimento operário, autor de Socialismo e Espiritismo, lançado em 1924 quando se definia como socialista “evolucionista e não revolucionário”.

Estamos em tempos estranhos em que as opiniões de Divaldo Franco não nos representam. Pior, nem mesmo podem representar o Espiritismo no Brasil. Ele deve ser cancelado. Opa! Algo está errado com quem pensa assim ou não se indigna com tal pensamento.

Não entendem esses novéis adeptos que a ideia livre é individual, é parte do livre-arbítrio. Entretanto, é preciso estar preparado para suas respectivas consequências, inevitáveis e personalizadas.

Apesar disso, a doutrina permanece firme em seus princípios. Ou seja, nossas ideias são nossas e não podem ser impostas ao movimento espírita só porque é  a nossa vontade. Somente a comunicação inteligente com os espíritos nos dará a chance de progredir. Sem haver a universalização das comunicações, nenhum indivíduo pode falar em nome da Doutrina Espírita. Só Allan Kardec tem essa palavra até hoje.

Para concluir, deixo minha experiência de vida no campo do Espiritismo como mais um caminho trilhado, repleto de erros e acertos, mas incluindo o estudo da obra kardequiana, a prática da mediunidade em casa, em lugares e momentos que se fizeram necessários para ajudar a solucionar uma crise, a fé raciocinada em livros, palestras e corroborada em vivências capazes de convencer gente de qualquer estirpe, mesmo, como eu, os teimosos.

Participei de trabalhos em corrente magnética, imposição das mãos, atendendo sofredores, obsessores, limpando miasmas e fluidos tóxicos do ambiente mental e físico. Também, em atendimento fraterno de doentes e obsidiados. Não posso negar, imitei a prática de Eurípedes Barsanulfo; raramente consegui êxito, mas tentei.

E encerro citando um trecho publicado na Revista Espírita de 1864 em que Allan Kardec nos ensina que:

 

“[...] o Espiritismo não é uma concepção individual, um produto da imaginação; não é uma teoria, um sistema inventado para a necessidade de uma causa. [...] É, pois, resultado da observação, numa palavra, uma ciência, a ciência das relações entre os mundos visível e invisível, ciência ainda imperfeita, mas que diariamente se completa por novos estudos e que, tende certeza, tomará posição ao lado das ciências positivas.” (grifo meu)

 

Se não professamos uma teoria ou sistema, se nem mesmo ligamos a Doutrina dos Espíritos a uma causa, então devemos seguir as orientações de Kardec e permanecer na observação de fenômenos mediúnico com comunicações inteligentes, de maneira a buscar o avanço doutrinário e solidificar o que for por eles novamente corroborado.

Os modismos, as tentativas de transformar Jesus e Kardec em ativistas políticos, as arrancadas sobre a fé dos incautos, a venda de indulgências parecem novidades, mas são sim antigas tentativas vãs de usar o andaime do vizinho.

Vamos trazer de volta os Espíritos para nossos centros espíritas, evocando-os ou os recebendo de forma espontânea, para deles extrair comunicações inteligentes universais que façam progredir a Doutrina Espírita e solidifiquem a mensagem de Jesus, sob pena de aventureiros lançarem mão do legado de Kardec e dele fazerem proselitismo político-ideológico como andaime para amealhar poder temporal, ou até mesmo usá-lo para se enriquecerem no mundo material ou digital.


Ruy Ferreira, professor e administrador de sistemas de informação, reside em Maceió, Alagoas.

    

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita