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por Marcus Vinicius de Azevedo Braga

Rei dos reis


Nos idos de 1974, passados mais de meio século, o humorista Chico Anísio e Arnaud Rodrigues fizeram uma sátira ao movimento da tropicália e criaram uma dupla de cantores: “Baiano & Os Novos Caetanos”, e que traziam um repertório que misturava belas composições com deboche e humor da melhor qualidade.

No primeiro LP de 1974 tem-se a pérola “Folia de rei”, de autoria da dupla, belíssima, e que remete às comemorações religiosas de 6 de janeiro, tradição católica em todo país com visitas às residências da folia. A canção tem o seguinte verso final:

“Ai, eu partirei/Ai, eu voltarei/Vou confirmar a nova lei/Alegria em nome de Cristo/Porque Cristo foi o Rei dos reis.”

Essa expressão “Rei dos reis” referindo-se a Jesus se popularizou, sendo também o título de um filme de 1927 e um de 1961, e traduz a ideia de um Jesus com um poder que se sobrepunha aos monarcas de qualquer época, comparando sua ascendência ao poder político e econômico temporal.

Curiosamente, no evangelho, ao ser indagado por Pôncio Pilatos, um dirigente terreno: “― Você é o rei dos judeus?”, ele mesmo renega essa condição ao responder: “-Tu o dizes; sou rei; não nasci e não vim a este mundo senão para dar testemunho da verdade. Aquele que pertence à verdade escuta a minha voz.” Ou ainda, em outra parte a mesma resposta: “-Meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, a minha gente houvera combatido para impedir que eu caísse nas mãos dos judeus; mas o meu reino ainda não é aqui.”

Kardec, em O Evangelho Segundo o Espiritismo, dedica o capítulo II todo a essa discussão, de que Jesus era algo maior, transcendente, muito além de ser o “Rei dos reis”, pois era uma relação diferente daquela de realeza e seus súditos. Ainda Kardec elucida brilhantemente nesse capítulo:

(...) Nem sempre o título de rei implica o exercício do poder temporal. Dá-se esse título, por unânime consenso, a todo aquele que, pelo seu gênio, ascende à primeira plana numa ordem de ideias quaisquer, a todo aquele que domina o seu século e influi sobre o progresso da Humanidade. É nesse sentido que se costuma dizer: o rei ou príncipe dos filósofos, dos artistas, dos poetas, dos escritores etc. Essa realeza, oriunda do mérito pessoal, consagrada pela posteridade, não revela, muitas vezes, preponderância bem maior do que a que cinge a coroa real? Imperecível é a primeira, enquanto esta outra é joguete das vicissitudes; as gerações que se sucedem à primeira sempre a bendizem, ao passo que, por vezes, amaldiçoam a outra. Esta, a terrestre, acaba com a vida; a realeza moral se prolonga e mantém o seu poder, governa, sobretudo, após a morte.

Então, Jesus não era Rei no sentido que se pensava, situação por ele reafirmada, sendo ele uma liderança de um outro mundo, de uma outra perspectiva. Ela não era o “Rei dos reis”, pois não era um rei maior do que aqueles da Terra, e sim rei de uma realeza diferente, em que outras coisas importavam, valia um outro ponto de vista.

E por que isso é importante? Simples, se vemos em Jesus a reprodução de estruturas humanas, como o povo da época que esperava algum líder guerreiro para expulsar os romanos, passaremos a subordiná-lo a nossa lógica de poder, achando que ele tem um mando religioso e político em termos da vida social, em um poder extensivo aos que se arvoram a ser seus representantes na Terra. E esse filme nós já vimos o final.

O Espiritismo, que quebra paradigmas, traz Jesus como rei de um reino diferente, como uma liderança de uma vida maior, espiritual, perene, e que está preocupado com as coisas do espírito, como dito a Nicodemos ou na fala do dai a César o que é de César. Um reino ainda a ser construído, em outras bases.

Parece coisa pouca, mas enxergar Jesus como “Rei dos reis”, ou como Deus, ou ouras coisas que ouvimos por aí, é dissonante com a lógica espírita, e mais do que aceita, essa é uma verdade que precisa ser compreendida, pois a forma como vemos Jesus diz muito mais da nossa visão da espiritualidade do que sobre ele mesmo.           

 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita