Quando os espíritos batem à porta
Há alguns anos, uma ideia persistente me desafiou à
ação: entrelaçar, em um poema, três momentos de profunda
importância para a história do Espiritismo e do
Cristianismo. Três episódios que, embora distantes no
tempo e no espaço, compartilham um elo simbólico que não
pude ignorar: os toques. Em 1848, as irmãs Fox
ouviram batidas misteriosas na casa de Hydesville, nos
Estados Unidos, sinalizando o despertar do Espiritismo.
Em 1856, toques interromperam Allan Kardec, em Paris,
enquanto ele redigia os fundamentos da Doutrina
Espírita. E, ao abrir o Apocalipse, fui cativado pela
imagem de Jesus batendo à porta, ao pedir entrada na
morada de um cristão. Três cenas, três toques, e um
convite à reflexão que transpõe os séculos e nos convida
à escuta.
O marco inicial do Espiritismo é geralmente atribuído
aos eventos ocorridos em 31 de março de 1848, em
Hydesville, uma pequena vila no Estado de Nova York,
Estados Unidos. Na modesta residência da família Fox,
Kate, de 11 anos, e Margaret, de 14, começaram a ouvir
estranhas batidas e ruídos inexplicáveis que pareciam
vir das paredes e do chão da casa. Intrigadas e um tanto
assustadas, as meninas decidiram enfrentar o mistério.
Kate, com coragem e curiosidade, desafiou a fonte dos
sons a imitar os toques que ela mesma produzia com os
dedos. Para surpresa de todos, os ruídos responderam com
exatidão, replicando as batidas. Essa comunicação
inicial estabeleceu o primeiro contato consciente entre
os moradores da casa e uma entidade invisível.
Com o passar dos dias, a interação evoluiu. Margaret
teve a ideia de usar as batidas para estabelecer um tipo
de código rudimentar que permitisse formar palavras e
frases. A entidade revelou ser o espírito de um mascate
assassinado naquele local anos antes, enterrado no porão
da casa. Ele forneceu detalhes sobre sua vida, morte e
local de seu corpo. O episódio de Hydesville atraiu a
atenção da comunidade e, posteriormente, de
investigadores, marcando o início de um movimento que
logo se expandiria. Embora não fosse ainda o Espiritismo
como seria consolidado por Allan Kardec, esse fenômeno
estabeleceu o alicerce para o estudo mais profundo das
comunicações mediúnicas e das relações entre o mundo
físico e o espiritual.
Em 1856, durante os intensos estudos e registros que
dariam origem à codificação do Espiritismo, Allan Kardec
vivenciou um episódio peculiar em seus aposentos.
Enquanto trabalhava concentrado em seus escritos,
começou a ouvir batidas ou toques provenientes de
diversas partes do aposento, interrompendo repetidamente
sua tarefa. Essas manifestações não tinham origem
aparente e chamaram sua atenção de forma insistente. No
dia seguinte, intrigado, buscou esclarecimento
espiritual por meio da jovem médium Baudin, em uma
sessão mediúnica. Foi então informado de que aquelas
intervenções provinham de O Espírito Verdade, que
buscava alertá-lo sobre um equívoco em suas elaborações
doutrinárias. O Espírito, considerado guia espiritual de
Kardec, recomendava revisar e corrigir pontos
específicos que, caso permanecessem como estavam,
poderiam comprometer os fundamentos da Doutrina que
estava em formação.
Esse episódio revela a íntima supervisão espiritual que
permeou o trabalho do Codificador, bem como destaca o
caráter dinâmico e dialógico da construção do
Espiritismo. Longe de se basear apenas em opiniões
pessoais, a Doutrina foi elaborada sob uma constante
validação dos princípios trazidos pelos Espíritos
superiores. O fato de O Espírito Verdade interferir
diretamente no processo, corrigindo e orientando,
reforça a humildade de Kardec em acolher esses ajustes e
sua fidelidade à missão de codificar o Espiritismo com
precisão e universalidade. Além disso, o episódio
ilustra a importância do discernimento e da abertura ao
aperfeiçoamento doutrinário, pilares essenciais para a
evolução do conhecimento espiritual e humano.
A imagem de Jesus batendo à porta, como descrito em
Apocalipse, 3:20, é uma das mais profundas expressões do
amor e da paciência que promanam das dimensões
superiores. Ela revela um Cristo que busca
incessantemente suas ovelhas, não forçando a entrada,
mas aguardando que cada coração, por livre escolha,
abra-se à sua presença. As batidas representam os
inúmeros chamados que recebemos ao longo da vida, por
meio de um momento de reflexão, uma palavra amiga, uma
inspiração súbita ou uma circunstância desafiadora que
nos convida à introspecção. Cada toque é um lembrete do
cuidado do Divino Mestre, que respeita nosso
livre-arbítrio, mas não desiste de nós. Sua insistência
não é uma imposição, mas a manifestação de seu amor
incondicional, sempre disposto a entrar, cear e
estabelecer uma comunhão íntima com aqueles que o
acolhem.
Estar atentos a esses toques significa cultivar
sensibilidade espiritual para perceber os sinais sutis
de sua presença. Muitas vezes, os ruídos do mundo, as
preocupações cotidianas e as distrações interiores nos
impedem de ouvir as batidas suaves em nossas portas.
Contudo, um dia, inevitavelmente, o Cristo baterá,
convidando-nos à sua mesa de amor e aprendizado. Abrir a
porta é um gesto de entrega e confiança, que marca o
início de uma relação transformadora. Ao cear conosco,
Jesus oferece o alimento espiritual que sacia a alma e
renova nossas forças, enquanto também se faz próximo,
participando de nossas alegrias e dificuldades. Assim, a
passagem nos lembra que, em sua bondade infinita, Nosso
Mestre e Senhor está sempre por perto, esperando apenas
que, em nossa oração e vigilância, possamos estar sempre
em estado de alerta para abrirmos de forma incontinênti
a porta ao seu primeiro toque, a fim de recebê-lo na
casa de nosso coração. Dito isto, vamos ao poema:
OS TRÊS TOQUES
Foi em Hydesville que se ouviram toques,
Em mil oitocentos e quarenta e oito.
Na casa de tábuas da família Fox
Percutiram “raps”, toques e retoques
Vindos do invisível, de alguém muito afoito.
Com ele dialogam, no bate-rebate,
As adolescentes Kate e Margaret:
Descobrem que, em vida, o ente foi mascate,
Morto ali na casa, em traiçoeiro abate...
Logo em todo o mundo o fato foi manchete!
É o toque-atenção... E, para um mundo em choque,
Foi esse o primeiro e alvissareiro toque.
França. Agora estamos em mil oitocentos
E cinquenta e seis, na casa de Kardec.
Ele está escrevendo, nos seus aposentos,
Quando escuta toques, a princípio, lentos,
Que vêm colocar-lhe a redação em xeque.
No dia seguinte, por gentil menina,
A jovem Baudin – via mediunidade –,
Lhe é dito que aquela intervenção divina
Presente estaria sempre na Doutrina:
Vinha de seu Guia – O Espírito Verdade.
É o toque-razão... Um luminoso enfoque
Trouxe a todo o mundo esse segundo toque.
Mas quem toca o mundo agora é o próprio Cristo:
Ele vem joeirar, enfim, Sua seara.
Pois nenhuma ovelha, nenhum grão benquisto,
Que o Senhor Lhe deu, tal como foi previsto,
Deixará de ornar Sua real tiara.
E sussurra meigo ao coração do crente,
Envolvendo-o em Luz e Espiritualidade:
– Eis que estou à porta e bato suavemente,
Quem me ouvir a voz e abri-la, certamente,
Comigo estará por toda a Eternidade.
É o toque-emoção... Que o mundo inteiro o evoque,
Pois esse é o terceiro e derradeiro toque.
Mário Frigéri é poeta,
escritor, autor e youtuber com a mente e o coração
voltados para o esplendor do Evangelho e da Doutrina
Espírita. Campinas/SP.