“O Livro dos Espíritos”, obra principal do
Espiritismo, completa nesta data – 18 de
abril de 2007 - 150 anos de existência. Essa
é a razão deste artigo, que publicamos
trinta anos atrás na Folha de Londrina,
abrindo uma série de seis longos estudos em
que buscamos mostrar uma parte da história
do Espiritismo e seu arcabouço filosófico.
Na Folha, os artigos ocuparam página
inteira e foram publicados no período de 24
a 30 de abril de 1977, quando então se
comemorava o aniversário de 120 anos d´O
Livro dos Espíritos.
ANTECEDENTES
HISTÓRICOS
Em
princípios de 1857 entravam para o prelo da
Livraria Dentu, no Palácio Real, em Paris,
os originais da obra que seria o marco do
Espiritismo moderno. Depois de vários
trabalhos de revisão e melhoramentos,
finalmente ela era dada à luz. A primeira
edição, de grande valor histórico para os
seguidores e simpatizantes da Doutrina
Espírita, apareceu em formato grande, com
176 páginas e 501 perguntas, sendo o assunto
distribuído em duas colunas por página, uma
destinada às perguntas, outra às respostas.
A matéria do livro estava dividida em três
partes: “Doutrina Espírita”, “Leis Morais” e
“Esperanças e Consolações”. No momento de
publicá-lo, o autor ficou embaraçado em
resolver como o assinaria, se com seu nome
civil – Hippolyte Léon Denizard Rivail – ou
se com um pseudônimo. Seu biógrafo, Henri
Sausse, informa que o professor Rivail,
sendo muito conhecido do mundo científico em
virtude de trabalhos anteriormente
publicados, e podendo com isso causar
confusão e talvez até mesmo prejudicar o
êxito do empreendimento, decidiu assiná-la
com o nome de Allan Kardec, que ele tivera
anteriormente numa encarnação como sacerdote
druida, entre os celtas. Esse pseudônimo
seria conservado nas publicações de outras
obras espíritas e se popularizaria no mundo
inteiro.
A obra
alcançou um êxito surpreendente, tanto que o
cronista francês G. du Chalard, num artigo
publicado em 11 de junho de 1857 no “Courier
de Paris”, escrevia, entre outras coisas:
“‘O
Livro dos Espíritos’, do Sr. Allan
Kardec, é uma página nova do grande livro do
infinito, e estamos convencidos de que essa
página será assinalada. A todos os
deserdados da Terra, a todos quantos avançam
ou caem, regando com as lágrimas o pó da
estrada, diremos: Lede ‘O Livro dos
Espíritos’; ele vos tornará mais fortes.
Também aos felizes, aos que em seu caminho
só encontram as aclamações e os sorrisos da
fortuna, diremos: Estudai-o, e ele vos
tornará melhores”.
A primeira
edição imediatamente se esgotou. A obra foi
reeditada em março de 1860, revista,
corrigida e bem ampliada. O livro passou a
contar, então, com 1.019 perguntas e
respostas, que permanecem até os nossos
dias. Conquanto Allan Kardec repetisse que o
mérito da obra cabia todo aos Espíritos que
o ditaram, é inegável que a ele é que coube
a ingente tarefa de organizar e ordenar as
perguntas sobre os mais variados assuntos,
que vão desde o mais simples aos mais
complexos problemas do conhecimento humano.
A Allan Kardec se devem ainda a distribuição
didática das matérias contidas no texto, a
redação dos comentários feitos às respostas
dos Espíritos, geralmente expostos com
clareza e concisão, a precisão com que
intitulou os capítulos e os subcapítulos, as
elucidações complementares, as notas e
observações que encontramos seguidamente na
obra, e por fim a matéria contida na
“Introdução” e na “Conclusão”, que por si
sós constituem o perfil do Espiritismo, sua
natureza, seu objetivo e suas finalidades.
A IMPORTÂNCIA DO LIVRO
“O Livro
dos Espíritos” marca realmente o surgimento
do Espiritismo moderno. Em diversos autores
encontramos tal afirmação, a começar pela
biografia de Allan Kardec publicada na
“Revista Espírita” em maio de 1869, dois
meses após a desencarnação daquele que é
considerado o Codificador do Espiritismo.
Transcrevemos daquela publicação os trechos
a seguir:
“Durante os
primeiros anos em que se tratou de fenômenos
espíritas, estes constituíram antes objeto
de curiosidade do que de meditações sérias.
‘O Livro dos Espíritos’ fez com que o
assunto fosse considerado sob aspecto muito
diverso. Abandonaram-se as mesas girantes,
que tinham sido apenas um prelúdio, e
começou-se a atentar na doutrina, que
abrange todas as questões de interesse para
a humanidade. Data do aparecimento de ‘O
Livro dos Espíritos’ a fundação do
Espiritismo que, até então, só contara com
elementos esparsos, sem coordenação e cujo
alcance nem toda gente pudera apreender. A
partir daquele momento a doutrina prendeu a
atenção de homens sérios e tomou rápido
desenvolvimento. Em poucos anos aquelas
idéias conquistaram inúmeros aderentes em
todas as camadas sociais e em todos os
países. Esse êxito sem precedentes decorreu
sem dúvida da simpatia que tais idéias
despertaram, mas também é devido, em grande
parte, à clareza com que foram expostas e
que é um dos característicos dos escritos de
Allan Kardec”.
O próprio
autor de “O Livro dos Espíritos” escreveria,
dez anos após a primeira publicação: “‘O
Livro dos Espíritos’ só teve consolidado
o seu crédito por ser a expressão de um
pensamento coletivo, geral. Em abril de 1867
completou o seu primeiro período decenal.
Nesse intervalo, os princípios fundamentais,
cujas bases ele assentara, foram
sucessivamente completados e desenvolvidos,
por virtude da progressividade do ensino dos
Espíritos. Nenhum, porém, recebeu desmentido
da experiência; todos, sem exceção,
permaneceram de pé, mais vivazes do que
nunca, enquanto que, de todas as idéias
contraditórias que alguns tentaram
fazer-lhe, nenhuma prevaleceu, precisamente
porque, de todos os lados, era ensinado o
contrário. Este o resultado característico
que podemos proclamar sem vaidade, pois que
jamais nos atribuímos o mérito de tal fato”.
(Introdução à 1a edição de
“A Gênese”, publicada em janeiro de 1868.)
Alicerce da
Doutrina Espírita, a obra em apreço dá as
diretrizes, o delineamento da estrutura
doutrinária, o verdadeiro arcabouço
filosófico dessa ciência. Esse aspecto é
interessante notar, mormente para os
leitores que não se aprofundaram no
conhecimento dessa ciência.
Um
conhecido escritor espírita, o professor J.
Herculano Pires, tradutor para nossa língua
da edição de “O Livro dos Espíritos”
publicada pela LAKE – Livraria Allan Kardec
Editora, assim se expressou no prefácio à
edição comemorativa do primeiro centenário
da obra, dada a lume em 18 de abril de 1957:
“´O
Livro dos Espíritos’ não é apenas a
pedra fundamental ou o marco inicial da nova
codificação, porque é o seu próprio
delineamento, o seu núcleo central e ao
mesmo tempo o arcabouço geral da doutrina.
Examinando-o, em relação às demais obras de
Kardec, que completam a codificação,
verificamos que todas essas obras partem do
seu conteúdo. Podemos definir as várias
zonas do texto, correspondentes a cada uma
delas. Assim, como na Bíblia, há o núcleo
central do Pentateuco, e no Evangelho o do
ensino moral do Cristo, em ‘O Livro dos
Espíritos’ podemos encontrar uma
parte que se refere a ele mesmo, ao seu
próprio conteúdo: é o constante dos Livros I
e II até o capítulo quinto. Esse núcleo
representa dentro da esquematização geral da
codificação, que encontramos no livro, a
parte que a ele corresponde. Quanto aos
demais, verificamos o seguinte:
1º) O
Livro dos Médiuns, seqüência natural
deste livro, que trata especialmente da
parte experimental da doutrina, tem a sua
fonte no Livro II, a partir do capítulo
sexto até o final. Toda a matéria contida
nessa parte é reorganizada e ampliada
naquele livro, principalmente a referente ao
capítulo nono: ‘Intervenção dos Espíritos no
mundo corpóreo’.
2º) O
Evangelho segundo o Espiritismo é uma
decorrência natural do Livro III, em que são
estudadas as leis morais, tratando-se
especialmente da aplicação dos princípios da
moral evangélica, bem como os problemas
religiosos da adoração, da prece e da
prática da caridade. Nessa parte, o leitor
encontrará, inclusive, as primeiras formas
de ‘Instruções dos Espíritos’, comuns àquele
livro, com a transcrição de comunicações por
extenso e assinadas, sobre questões
evangélicas.
3º) O
Céu e o Inferno decorre do Livro IV,
‘Esperanças e Consolações’, em que são
estudados os problemas referentes às penas e
aos gozos terrenos e futuros, inclusive com
a discussão do dogma das penas eternas e a
análise de outros dogmas, como o da
ressurreição da carne e os do paraíso,
inferno e purgatório.
4º) A
Gênese, os Milagres e as Predições
relaciona-se aos capítulos II, III e IV do
Livro I, e capítulos IX, X e XI do Livro II,
assim como a partes dos capítulos do Livro
III que tratam dos problemas genésicos e da
evolução física da Terra. Por seu sentido
amplo, que abrange ao mesmo tempo as
questões da formação e do desenvolvimento do
globo terreno e as referentes a passagens
evangélicas e escriturísticas, esse livro da
codificação se ramifica de maneira mais
difusa que os outros, na estrutura da
obra-mater”. (Prefácio à edição do
Centenário de “O Livro dos Espíritos”,
LAKE, em 18.4.1957.)
Examinada,
sob uma forma muito geral, a estrutura de “O
Livro dos Espíritos”, não se pode desprezar
o fato de que os Espíritos ressaltam
freqüentemente estar atualíssimo “O Livro
dos Espíritos” em face dos conhecimentos
atuais, apesar de ter sido escrito há 150
anos. O mesmo autor acima referido, J.
Herculano Pires, expenderia, em 1975, as
seguintes observações: “Desde 1857, quando
foi publicado ‘O Livro dos Espíritos’, até
hoje, nenhum dos princípios do Espiritismo
foi desmentido pela Ciência ou pela
Filosofia. Pelo contrário, todos eles têm
sido sistematicamente confirmados por ambas.
Quanto à Religião, nunca teve condições de
contradizer o Espiritismo de maneira
positiva, tentando assim fazê-lo de maneira
autoritária ou dogmática, sempre no
interesse particular dos princípios de cada
seita. Hoje o avanço das Ciências e da
Filosofia confirma de maneira inegável e
impressionante a legitimidade da Doutrina
Espírita. As descobertas mais recentes da
Parapsicologia, da Física, da Biologia nada
mais fazem do que comprovar a verdade dos
princípios espíritas, sem que os
investigadores tivessem essa intenção. Até
mesmo quando pensam haver negado o
Espiritismo, os investigadores, sem o saber,
o estão comprovando. Isso prova a solidez da
obra de Kardec”. (“A Pedra e o Joio”, Ed.
Cairbar, 1ª edição, 1975, pág. 8.)
ARCABOUÇO FILOSÓFICO DO ESPIRITISMO
Sendo o
compêndio dos ensinamentos trazidos pelos
Espíritos Superiores, deveria “O Livro dos
Espíritos” apresentar os fundamentos, as
bases da filosofia espírita. E, sem dúvida,
ele os apresenta, atentos aos seguintes
pontos básicos da Doutrina Espírita:
1º) Crença
na existência de Deus, apresentando-o como o
Criador Supremo e a causa primária de tudo o
que existe. Sem preocupação de limitar ou
restringir seu conceito sobre o Criador
Supremo, nem de apresentá-lo com os vícios
próprios do antropomorfismo, os Espíritos O
apresentam como sendo a inteligência suprema
e enumeram alguns de seus atributos, a
saber: eterno, imutável, imaterial, único,
todo-poderoso, onisciente, soberanamente
justo e bom. Mas o assunto não se esgota aí,
pois a obra analisa amplamente as várias
correntes do pensamento filosófico que
trataram do tema e discute as provas de sua
existência.
2º) Ensino
da existência e imortalidade da alma,
definindo esta como sendo um Espírito
encarnado, do qual o corpo físico não é mais
do que um invólucro. Trata da natureza do
homem, informando que há nele três
elementos: o corpo, ou ser material
semelhante ao dos animais e animado pelo
mesmo princípio vital; a alma, ou ser
imaterial, que sobrevive à morte do corpo, e
finalmente o laço que une a alma ao corpo,
de natureza semimaterial, que o Espiritismo
denominou perispírito. Pela primeira vez a
alma era examinada experimentalmente, sendo
sua imortalidade não o fruto de uma teoria
preconcebida, mas o resultado da própria
manifestação dos seres espirituais, que,
após o fenômeno da morte, vinham dar o
testemunho de sua sobrevivência.
3º) Ensino
da lei de reencarnação, ou doutrina da
pluralidade das existências, que
justificaria, segundo os Espíritos, a marcha
ascensional do progresso. Todos os Espíritos
se melhoram, devendo assim passar pelos
diferentes graus de hierarquia espiritual.
Mas esse melhoramento se verificará pela
encarnação do Espírito nos mundos corporais.
Essa passagem pela vida material, que a uns
é imposta como uma expiação e a outros como
prova ou missão, é uma espécie de depurador
de que os Espíritos saem mais ou menos
purificados. Deixando o corpo, a alma volta
ao mundo dos Espíritos, que é o mundo
normal, primitivo, eterno, preexistente e
sobrevivente a tudo.
É
interessante notar que o Espiritismo não
aceita a antiqüíssima teoria da
Metempsicose, divulgada pela Escola
Pitagórica. O Espiritismo assevera que a
encarnação dos Espíritos verifica-se sempre
na espécie humana, sendo erro acreditar que
a alma ou espírito possa encarnar-se num
corpo animal. As diferentes existências
corporais do Espírito são sempre
progressivas e jamais retrógradas,
dependendo a rapidez de seu progresso dos
esforços que faz por chegar à perfeição.
Assim sendo, as qualidades da alma são as do
espírito, o que significa dizer que o homem
de bem é a encarnação de um bom Espírito, ao
passo que o homem perverso é a encarnação de
um Espírito impuro. No mesmo passo, as
inclinações, as tendências, as
predisposições inatas se originam do
conhecimento anteriormente adquirido pelo
Espírito, em precedentes encarnações.
4º) Ensino
sobre a pluralidade dos mundos habitados, um
corolário da multiplicidade das encarnações
do Espírito, visto que os mundos também
estão submetidos à lei do progresso e servem
de estágios de evolução, como as escolas
servem de aprendizado nas várias fases de
formação do homem. Nosso planeta não seria,
segundo o ensino espírita, nem o mais
adiantado nem o mais atrasado dos mundos
habitados que rolam pelos espaços infinitos.
A Terra seria o que os Espíritos denominaram
planeta de provas e expiações, onde o mal
ainda predomina, mas dará lugar, muito
breve, ao império do bem. Assim como foi um
planeta primitivo em seus primórdios, ela
será um dia um mundo feliz, graças à
regeneração e melhoramento moral de seus
habitantes, através das vidas sucessivas.
5º) Por
fim, a lei de comunicabilidade dos Espíritos
com o mundo corporal, que o Espiritismo
apresenta como um de seus mais importantes
aspectos, do ponto de vista da comprovação
de seus ensinos.
A
mediunidade, faculdade que permite ao homem
servir de intermediário aos Espíritos
desencarnados, é exaustivamente analisada na
obra “O Livro dos Espíritos” e naquela que
lhe complementa esses ensinos, “O Livro dos
Médiuns”, publicada em 1861. Apresentando os
variados tipos de fenômenos que podem
resultar desse intercâmbio entre os dois
mundos, informa a Doutrina Espírita os
matizes da influência que os seres
desencarnados exercem sobre todos nós,
através do pensamento e da inspiração.
A
mediunidade é para o Espiritismo o que o
telescópio significa para a Astronomia e o
microscópio para a Biologia, na comparação
de Allan Kardec. Toda uma literatura
espírita surgiu mediante esse processo,
destacando-se as obras psicografadas no
Brasil pelo médium Francisco Cândido Xavier,
dentre as quais uma serviria de tema para a
apreciada novela de televisão, “A Viagem”,
de Ivani Ribeiro.
Tudo isso é
assunto, é o tema, é a preocupação de “O
Livro dos Espíritos”, que trataria também da
questão moral, afirmando que a moral dos
Espíritos Superiores se resume, como a do
Cristo, nesta máxima evangélica: “Fazer aos
outros o que queremos que os outros nos
façam”, ou seja, fazer o bem e não fazer o
mal.
Nesse princípio –
ensinam eles – o homem encontrará sempre a
regra universal de conduta, nas grandes como
nas pequeninas ações, e será justamente a
aplicação dessa máxima que fará com que o
reino do bem se instale um dia na Terra,
conforme assinala a última questão da obra. |