Era uma vez um moço
ingênuo e feliz, vivendo
numa cidadezinha ingênua
e feliz, perto de Belo
Horizonte. O moço se
chamava Francisco
Cândido Xavier e não
desmentia o nome. A
cidadezinha, Pedro
Leopoldo, arrastava suas
horas de doce paz, entre
as missas de domingo e a
chegada do trem da
capital. Não se sabe
como, numa noite ou num
dia, Chico se mostrou
inquieto e desandou a
escrever. Terminando,
disse, apenas, à família
assustada: – "Não fui
eu. Alguém me empurrava
a mão". Desce esse dia
ou essa noite, Chico
Xavier perdeu o sossego
e também o de sua
cidade. Turistas
chegavam, atraídos pela
fama do moço-profeta.
Pedro Leopoldo ia
crescendo e Chico Xavier
ia ficando importante.
Nunca mais teve paz.
Nunca mais
pôde sair pela
rua, sem
ouvir um pedido
de saúde ou uma prece de |
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Foto publicada
em O Cruzeiro de 12/8/1944 |
gratidão. Se ao menos
fosse só isto. Era mais, muito
mais. Eram os curiosos do Rio,
de São Paulo e de Belo
Horizonte, pedindo consultas
ou detalhes pelo telefone
interurbano. Era a legião de
repórteres em busca de novas
mensagens. O representante da
editora insistindo por outros
livros. Os centros espíritas
de todo o país solicitando
pormenores. Uma vida infernal,
agitada, barulhenta sacudia o
pobre rapaz. |
As luzes dos lampiões da
cidadezinha nunca mais
dormiram sem a presença
de um estrangeiro,
rondando pelas ruas
dantes tão sossegadas.
Fixaremos, precisamente,
a violenta mudança de
vida de Chico Xavier e
da cidade de Pedro
Leopoldo. Não nos
interessa, embora pareça
estranho, o médium Chico
Xavier, mas a sua vida.
Os seus trabalhos
psicografados – ou não
psicografados – já foram
assunto de milhares de
histórias, divulgadas
desde 1935. Se são reais
ou forjadas, decidam os
cientistas. Se ele é
inocente ou culpado
dirão os juízes. Se ele
é casto, instruído,
bondoso, calmo, diremos
nós. Porque não somos
detetives do além.
Se os espíritos nos
ouvem, eles sabem que
não acreditamos em suas
mensagens, nem
desacreditamos de suas
virtudes literárias. A
verdade é que não temos
a bravura indispensável
para avançar sobre o
terreno pantanoso do
outro mundo e analisar
suas reais ou irreais
comunicações utilizando
aparelhos de escuta com
este pálido e sensitivo
Chico Cândido Xavier.
Desde que saímos daqui,
levávamos a inabalável
determinação de fazer
uma reportagem sem
complicações, apesar do
assunto em sua natureza
extra-terrena mostrar-se
absolutamente
complicado. Assim é que
o senhor, amigo, chegará
ao fim destas linhas sem
obter a certeza que há
tanto tempo procura: "É
Chico Xavier um impostor
ou não é?" E dirá: –
"Não conseguiram
desvendar o mistério!"
Sim, o mistério
continuará por muito
tempo. Eternamente. E
Chico Xavier morrerá,
sem revelar o segredo de
sua extraordinária
habilidade ao escrever
de olhos fechados, se é
mágico, ou de seu
fantástico virtuosismo,
ao chamar, além das
fronteiras da vida, as
almas dos imortais,
fazendo-os recordar os
velhos tempos da
Academia. Nossa intenção
é mostrar o homem. Sem o
espírito dentro de si,
nos momentos vulgares,
Chico Xavier é adorável,
cândido, maneiroso,
humilde, um anjo de
criatura. A frase de uma
vizinha define melhor: –
"Sabe, moço? O Chico é
um amor". Justamente
desse tipo desconhecido,
da parte anônima de sua
devassada vida, é que
tratamos, na hora e meia
que permanecemos em
Pedro Leopoldo. Para
começar, diremos que
Chico nunca teve uma
namorada.
O tempo de viagem de
Belo Horizonte a Pedro
Leopoldo não vai além de
hora e meia. A meio
caminho, encontramos a
fazenda federal onde
Chico Xavier é
datilógrafo. O motorista
não quer entrar. – "Aí,
não. Até os zebus são
atuados". O diretor,
Rômulo, está na horta,
sozinho. Ele nos dará,
talvez, esclarecimentos
sobre a vida de Chico e,
quem sabe, facilitará o
encontro com o
sensitivo. Ouve o
pedido. Depois,
lentamente, abana a
cabeça e o seu "não" é
inflexível, desde o
primeiro minuto. Alega
um milhão de coisas. Que
Chico anda cansado e
precisa repousar. Um de
nós lembra a
possibilidade dele,
diretor, dar umas férias
a Chico. – "O Chico
funcionário nada tem a
ver com o outro Chico".
Apresentadas as
despedidas, ele adverte:
– "Não creio que será
possível aos senhores um
encontro com ele. Creio
que vão esperar até
sexta-feira".
Voltamos a deslizar pela
estrada, neste sábado
negro. A cidade aparece
depois de uma curva. –
"Onde fica a casa do
Chico Xavier?" O menino
aponta a igreja. – "Ali,
na rua da matriz. Ele
mora com a família".
Encontraríamos, em
várias oportunidades, a
mesma designação do
pessoal do município:
ele. Todos apontavam
Chico, sem recorrer ao
nome. Ele só podia ser
ele. – "Minha irmã foi
curada por ele".
Ei-lo aqui, diante de
nós. Veio a pé da
fazenda e em sua
companhia um senhor do
Rio, que algumas vezes
vem passar semanas com o
médium. – "Gosto de
falar com ele. É um
rapaz de cultura.
Discute vários assuntos,
lê um pouco de inglês e
de francês. Devora os
livros com fúria.
Trouxe-lhe, há dias, "O
homem, esse
desconhecido" e ele não
gastou mais de quatro
horas e meia para ler o
volume gordo. É um
prazer para ele. Seu
único amor é o
espiritismo".
Chico, perto de nós, não
está ouvindo a palestra.
Conversa com Jean
Manzon. Devemos
esclarecer que não
dissemos qual a
organização jornalística
em que trabalhávamos.
Queríamos ver se o
espírito adivinhava. Não
houve oportunidade.
Chico parece ser um bom
sujeito. Suas ações,
mesmo fora do terreno
religioso propriamente
dito, são ações que o
recomendam como alma
pura e de nobres
sentimentos. Vão dizer,
os espíritas, que é
natural: todo o espírita
dever ser assim. Sei de
um que não teve dúvida
em abandonar a esposa, o
lar, sete filhos, um dos
quais doente do pulmão.
– "Na rua, entre seus
irmãos de seita, –
disse-me um dos filhos –
ele se mostrava
esplêndido, generoso,
cordial. Em casa, por
pouco não botava fogo
nas camas, à noite.
Parecia um verdadeiro
demônio. Guardava até
alface no cofre-forte”.
Já o Chico não é assim.
Sua nobreza de caráter
principia em casa. Todos
os seus irmãos e irmãs
louvam a sua generosa e
invariável linha de
conduta, protegendo-os,
hora a hora, dia a dia,
através dos anos,
trabalhando como um
mouro. Um de seus
sobrinhos sofre de
paralisia infantil.
Atirado a um berço,
chora eternamente.
Somente o Chico vai lá,
fazer companhia ao
garoto, às vezes uma
noite inteira.
– Chico!
– Que é, meu senhor?
– Você lê muito?
– Não. Só revistas e
jornais.
– O outro disse...
– Disse o quê?
– Nada.
Ele nos olha, surpreso,
quando a pergunta, como
um busca-pé, sai
correndo pela sala:
– Você, não pensa em se
casar, Chico?
– Eu, casar? (Dá uma
gargalhada) – Claro que
não.
– Não namora?
– Nunca.
– Por quê?
– Não há razões. Não
gosto. Tenho outras
preocupações. Ora, eu
namorando... Tinha
graça...
– Chico...
– Que é?
– É verdade que o padre
desafiou você para um
duelo verbal?
– Ele disse pra eu ir à
igreja discutir. Não é
lugar próprio.
– Você gosta do padre,
Chico?
E ele, o ingênuo e feliz
Chico, respondeu:
– Ué, eu gosto do padre,
mas ele não gosta de
mim.
– Chico...
– Que é?
– Onde estão suas
mensagens?
– Um irmão levou tudo,
em vista de tantas
complicações.
– Você vai ao Rio?
– Até agora, nada
resolvemos.
Possivelmente, mandarei
uma procuração.
Numa estante, os livros
de Chico. Versos de
Guerra Junqueiro,
Tolstoi e uma porção de
autores mortos. Na sala
do lado está a mesa onde
ele recebe as mensagens.
Uma papelada branca,
pronta para ser coberta
pelas mensagens do outro
mundo. Sexta-feira houve
mais uma sessão, desta
vez presidida pelo chefe
do executivo municipal.
Humberto de Campos não
compareceu mas o
Emmanuel, guia de Chico,
lá estava. Quem é
Emmanuel? Um romano que
existiu na mesma época
de Jesus e conta um
mundo de coisas
interessantes sobre a
Terra, naqueles tempos
de há dois mil anos.
– Ele dita?
– Vou psicografando as
mensagens. Há outros
médiuns, como um
norte-americano, que
ouve as vozes dos
espíritos tão alto que
os presentes também
escutam. Eu ouço. Os
outros, que estão perto,
não.
– Chico...
– Que é?
– Já teve oportunidade
de falar com espírito de
homens célebres?
– Homens célebres?
– Napoleão, para um
exemplo, já falou
consigo?
– Que eu saiba, não. Os
assuntos bélicos não são
freqüentes, nas
mensagens que recebo do
além. Há seis anos,
entretanto, meu guia
Emmanuel previu os
principais
acontecimentos que hoje
revolucionam a Terra.
Ele disse: – "A vitória
da força é fictícia".
O cavalheiro do Rio
acode:
– E o próprio Chico,
meses antes, previu a
queda da Itália. Ele
disse, categoricamente,
que a Itália seria a
primeira a cair. E a
Itália foi a primeira a
cair.
Pedro Leopoldo é a
cidadezinha de uma rua
grande e uma porção de
ruas pequenas,
convergindo para ela
como servos humildes do
rio principal. A casa de
Chico é uma das melhores
do lugar. Três quartos,
sala e cozinha. O
banheiro é lá fora, no
fundo do quintal, ao
lado do galinheiro.
Chico se levanta de
madrugada e vai dar
milho às galinhas.
Depois, sua irmã
solteira faz o café, que
ele toma com pão
dormido, porque o
padeiro ainda não
chegou. Apanha a pasta
de documentos da fazenda
federal, e vai andando
pela estrada, ainda
coberta pela neblina.
Volta para almoçar às
onze horas. O expediente
se encerra às dezoito
horas, mas Chico, nestes
dias de maior trabalho,
faz serão. Sua vida é
frugal. – "Quero que
compreendam o seguinte:
não vivo das mensagens
de além-túmulo. Tenho
necessidade de trabalhar
para sustentar minha
família. Se quase me
dedico inteiramente a
receber as comunicações,
ainda se entende. O
pior, entretanto, é a
onda de gente que vem do
Rio, de São Paulo e de
todos os Estados".
– Peregrinos?
– Mais ou menos. Não
posso deixar de
recebê-los, pois fico
pensando que vieram de
longe e necessitam de
consolo. Isto leva
tempo, toma tempo. Como
se não bastassem essas
preocupações, o telefone
interurbano não pára dia
e noite. – "Chico, Rio
está chamando... Chico,
Belo Horizonte está
chamando... Chico, São
Paulo está chamando...
Chico, Cachoeira está
chamando..." Evito
atender, mesmo
constrangido. Meu Deus!
Eu não quero nada, senão
a paz dos tempos
antigos, o silêncio de
outrora. Quero ser de
novo aquele Chico
sossegado e tranqüilo
que apenas se preocupava
com as coisas simples...
– Impossível a viagem de
volta...
– Impossível? Não, não é
impossível. Eu voltarei
a ser aquele sossegado
Chico. Não tenha dúvida.
O repórter imagina, a
essa altura, que ele
acredita na
possibilidade de suas
comunicações com o além
serem repentinamente
suspensas. Vai perguntar
ao Chico, mas uma
senhora de cor negra
entra na sala,
carregando um benjamim
de olhos assustados.
– "Trago para o senhor,
Seu Chico..."
Ele segura com trinta
mãos, cheio de cuidados,
o bebê e o bebê faz um
berreiro dos diabos,
agita as pernas, sacode
as pernas dentro da
prisão dos braços de
Chico. Ele sorri e
devolve o menino à mãe.
– Meu sobrinho – explica
o profeta Chico – é
nervoso e fica deste
jeito. Sabe por quê? ele
sofre de paralisia
infantil.
– Não tratam dele?
– Não temos recursos. Já
deixei claro que não
recebo um centavo pelas
edições dos livros que
me chegam do além.
Assino um documento
autorizando a livraria
da Federação Espírita
Brasileira a editá-los
e, somente após ficarem
impressos, recebo uns
cinco ou dez exemplares,
para dar aos amigos.
Vamos atravessando a
sala e entramos num dos
quartos. Na parede,
prateleiras repletas de
livros. Remédios à base
de homeopatia, que Chico
recomenda. Não sei por
que os espíritos
manifestam estranha
aversão pela alopatia e
suas drogas, receitando
sempre combinações
homeopáticas. Perto dos
vidros, um armário cheio
de livros. As obras de
guerra contra a Santa
Sé, assinadas por Guerra
Junqueiro, ainda em
vida. Os livros de
Flammarion e de Allan
Kardec, mas não os
psicografados,
misturados com volumes
de propaganda
anticlerical. Na parede,
dependurado, um velho
pandeiro.
– Quem toca pandeiro
nesta casa?
Chico sorri o sorriso
beatífico e diz que não
é ele.
– Alguns espíritos?
O sorriso beatífico
desaparece.
– Os espíritos não tocam
pandeiro.
Saímos para a rua, hoje,
sábado movimentado. O
povo de Pedro Leopoldo
passeia diante da Igreja
que domina de forma
esquisita a casa do
humilde psicógrafo que
Clementino de Alencar,
certo dia, foi roubar de
sua vida serena há dez
anos. Hoje, Pedro
Leopoldo é a Jerusalém
do credo de Kardec. Já
tem hotel e telefone. O
povo de lá, por estranho
que possa parecer a quem
não conhece pessoalmente
o nosso amigo Chico,
revela invariável
amizade. Será orgulho
pela celebridade que ele
deu ao município? Sim,
porque antes de Chico,
Pedro Leopoldo nem
existia nos mapas de
Minas Gerais. Gostam
dele, de seus modos, de
sua cara asiática, onde
um dos olhos empalideceu
subitamente, como um
farol apagado em pleno
caminho da luz. A cidade
tem uns treze mil
habitantes, contadas as
aldeias próximas, mas,
espíritas, uns quatro ou
cinco. Todos apreciam
Chico, gregos e
troianos. Gostam, mas
preferem não rezar o seu
catecismo. Ele não se
importa. Não procura
convencer ninguém à
força de seu estranho e
discutido poder. Quando
a carta precatória,
intimando-o a depor,
chegou a Pedro Leopoldo,
Chico leu devagarinho e
abanou a cabeça. – "Eu
não posso mandar uma
intimação judicial às
almas!" E não deu mais
importância ao caso.
Até à volta, sereno
Chico. De todas as
pavorosas complicações,
você é o menos culpado.
Parece uma caixa de
fósforo num mar bravio.
Uma velha beata de Pedro
Leopoldo me disse que
isto é castigo: –
"Castigo, sim, nhô
moço... Antão, ele
telefona pro inferno e
manda chamar os
espíritos e depois num
quer se aborrecer?"
Já o trombonista de
Pedro Leopoldo deve
pensar diferente: – "Por
que será que o Chico só
sabe receber mensagens
escritas? Por que não
recebe músicas de
Beethoven, de Chopin, de
Carlos Gomes?"
Ele, o moço amável de
Pedro Leopoldo, não dá
maior atenção aos
comentários e vai
levando como pode a sua
vida. É pena,
entretanto, que ele não
tenha as qualidades
artísticas que vão além
do terreno literário. Se
fosse assim, Pedro
Leopoldo teria,
senhores, não apenas o
psicógrafo Chico, mas
também o músico Chico, o
pintor Chico, o profeta
Chico. Isto mesmo: o
profeta Chico.
(Texto
publicado original na
revista O Cruzeiro de 12
de agosto de 1944.)
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