JOSÉ CARLOS
MONTEIRO DE
MOURA
jcarlosmoura@terra.com.br
Belo Horizonte,
Minas Gerais
(Brasil)
Até quando?
1. A famosa expressão
com que Cícero abre as
suas não menos famosas
Catilinárias, quosque
tandem? (até
quando?), dirigidas a
Sergius Lucius Catilina,
acusado de insurreição
contra a república
romana, aplica-se, na
íntegra, à postura de
total intransigência, de
pseudo-supremacia e de
incontestável
radicalismo que a Igreja
Católica vem
desenvolvendo, ao longo
dos séculos, em relação
aos demais segmentos do
Cristianismo. Isso se se
fizer abstração do que
ela fez ao Islamismo, às
religiões dos povos
colonizados e
catequizados por
espanhóis e portugueses,
e às religiões
orientais.
As duas últimas atitudes
do Papa Bento XVI
revelam quanto a Igreja
ainda se acha presa a
essas idéias e atitudes.
A primeira, que ele
justificou como medida
para “agradar aos
tradicionalistas” – a
missa em latim – não
ultrapassa os recintos
dos templos católicos, e
não dizem respeito às
demais religiões. Graças
a Deus, muito embora o
empenho de alguns
companheiros, o
Espiritismo conseguiu,
até esta data, ver-se
livre desse tipo de
cerimônia. Esperamos que
tal situação perdure
para sempre e que o
malfadado exemplo do
“casamento espírita” não
sirva de estímulo para
missas, batizados,
crismas e outros
sacramentos!
A segunda, no entanto,
interessa de perto ao
Espiritismo, pois se
refere ao diálogo
inter-religioso, que
constitui uma de suas
preocupações.
Entendemos, com o devido
respeito aos que pensam
em contrário, que o
Espiritismo não deve ser
visto como uma religião,
nos termos que essa
palavra significa. É
esse o pensamento de
Allan Kardec expendido
na Codificação, na
Revista Espírita de
1859, 1862, 1863, 1864,
e principalmente na de
1868, quando esclareceu
de vez a polêmica que se
formara a respeito da
questão. O seu aspecto
religioso, que forma
juntamente com o
científico e o
filosófico, a tríade
sobre que se apóia, não
pode ser confundido ou
identificado com uma
Religião Espírita, uma
vez que, a existir, tal
religião implicaria,
necessariamente, a
existência de hierarquia
eclesiástica, liturgia,
dogmas, sacramentos
etc., perfeitamente
dispensáveis e
comprovadamente
desnecessários.
2. Na mencionada
Revista Espírita de
1868, ele afirma que “o
verdadeiro objetivo das
assembléias religiosas
deve ser a comunhão
de pensamentos; é
que, com efeito, a
palavra religião
quer dizer laço.
Uma religião, em sua
acepção nata e
verdadeira, é o laço que
religa os homens
numa comunidade de
sentimentos, de
princípios e de
crenças”. Prossegue
dizendo que “o laço
estabelecido por uma
religião, seja qual for
o seu objetivo, é, pois
um laço essencialmente
moral, que liga os
corações, que identifica
os pensamentos, as
aspirações, e não
somente o fato de
compromissos materiais
que se rompem à vontade,
ou da realização de
fórmulas que falam mais
aos olhos do que ao
espírito. O efeito desse
laço moral é o de
estabelecer entre os que
ele une, como
conseqüência da
comunidade de vistas e
de sentimentos, a
fraternidade e a
solidariedade, a
indulgência e a
benevolência mútuas. É
nesse sentido que também
se diz: a religião da
amizade, a religião da
família” ( REVISTA
ESPÍRITA, Edicel,
SP, s/d, dezembro de
1968, pp 356/357).
Somente sob esse ângulo
é que ele aceita que se
atribua ao Espiritismo a
característica de uma
religião.
3. Na sua concepção
tradicional e vulgar, a
religião dificilmente
atende a tais
requisitos. Torna-se
difícil a coexistência
deles em seu âmago,
porquanto, via de regra,
um sempre elimina o
outro, em face do
sentimento de exclusiva
detentora da verdade de
que cada uma se julga
possuidora.
Daí a triste verdade que
se acha contida no
desabafo de Jonathan
Swift, mais conhecido no
Brasil por ser o autor
de Viagens de
Gulliver: “Nós temos
religião suficiente para
nos odiarmos, mas não o
suficiente para nos
amarmos”.
A atitude do papa,
reforçando seu ponto de
vista já externado no
texto Dominus Jesus
, publicado em 2000,
quando era o senhor todo
poderoso da Congregação
para a Doutrina da Fé
(nome moderno da
Inquisição ), revela o
elevado grau de
intolerância e de
radicalismo que ainda
impera na sua igreja.
Naquele documento, como
na sua recente
ratificação, ficou
expressamente explicito
que Roma ainda se
considera em nível de
absoluta superioridade
em relação a ortodoxos,
protestantes e
evangélicos. Na sua
abertura, o último
documento afirma,
jesuiticamente, que
reconhecia a existência
de “muitos elementos de
santificação e verdade”
nas demais denominações
cristãs, mas salienta
que só o catolicismo tem
todos os elementos para
ser a igreja plena de
Cristo. Num retorno
evidente ao passado,
proclama a existência de
uma grande ferida
nessas religiões, por
não reconhecerem a
autoridade papal!
Isso reforça a tese de
que, no seio do próprio
Cristianismo, em que
pesem os esforços de
alguns poucos, os homens
ainda não se entenderam.
O que dizer, então,
quando a questão foge
dos seus limites e diz
respeito, por exemplo,
às religiões orientais
que não se originaram
dele?
4. O tema poderia
parecer ao menos avisado
que nada tem a ver com o
Espiritismo. Todavia,
Kardec, em O LIVRO
DOS MÉDIUNS
(Cap.XXIV,in fine),
traçou os
verdadeiros objetivos do
Espiritismo, ao dizer:
“...podem, desde já,
formar o núcleo da
grande família espírita,
que um dia consorciará
todas as opiniões e
unirá os homens por um
único sentimento: o da
fraternidade, trazendo o
cunho da caridade
cristã”.
Note-se que ele falou em
“grande família
espírita” e não em
“grande religião
espírita”. Enfatizou e
deu primazia à
fraternidade, uma vez
que somente ela permite
compreender e conviver
com o outro, respeitar
suas opiniões, pontos de
vistas e sentimentos, ao
contrário dos que, por
desconhecê-la ou não
praticá-la, insistem em
impor suas idéias a
todos
indiscriminadamente.
Disso se conclui, sem
muita dificuldade, que a
fraternidade não é
atributo exclusivo do
Espiritismo e que o
homem pode ser fraterno,
amar o seu próximo e
respeitá-lo, até mesmo
sem professar nenhuma
religião. Trata-se da
hoje tão discutida e
decantada
espiritualização, que
Leonardo Boff afirma
existir
independentemente de o
seu possuidor ser, ou
não, membro de alguma
igreja ou confissão
religiosa.
O Espiritismo é o
portador da mensagem da
fraternidade universal,
fato que, embora alguns
apressados confrades já
chegaram até a marcar a
data de sua implantação
no planeta, somente o
correr dos séculos e a
conseqüente reforma
interior da humanidade
transformarão em
realidade. A sua
proposta compreende,
mais do que qualquer
iniciativa social ou
filosófica, a plena e
total convivência entre
todas as denominações
religiosas, cristãs ou
não. É indiscutível que
um dos óbices ao
estabelecimento dessa
fraternidade é o que
apresenta conotações
religiosas, em face de
suas notórias e
conhecidas implicações.
Sob esse particular
aspecto, não se pode
mais desconhecer ou
ignorar o profundo
conteúdo ético, por
exemplo, do Hinduísmo,
do Budismo ou mesmo do
Islamismo, cujas
distorções não passam de
meras criações humanas,
a exemplo do que ocorreu
e ocorre no
Cristianismo.
Enquanto perdurar o
extremismo ou o
sectarismo, enquanto a
filiação religiosa for
motivo de exclusão ou
sinônimo de status
social, enquanto ela
servir de pretexto para
ações bélicas, para as
guerras santas que se
estendem das Cruzadas à
Jihad, incluindo-se aí
os atos de terrorismo, a
humanidade não se
libertará dos seus
vícios, erros e mazelas,
por maior que seja o
esforço que o
Espiritismo e os bem
intencionados membros de
algumas religiões, das
quais fazem parte ativa
as não cristãs,
desenvolvam nesse
sentido. E,
lamentavelmente, ele
encontra dificuldades em
seu próprio seio,
porquanto muitos já
enveredaram pelas
sendas tortuosas do
indesejável radicalismo
e das disputas
doutrinárias, das que se
reportam à ânsia de
inovação, numa
incontestável repetição
do que ocorreu com o
Cristianismo primitivo,
que inovou e trouxe para
suas fileiras todas as
excentricidades dos
chamados cultos pagãos.
É verdade que esse
procedimento pode ser
justificado como uma
extrema medida de
sobrevivência. No
entanto, no que diz
respeito ao Espiritismo,
tal situação, passados
os primeiros momentos de
sua evolução,
especialmente aqui no
Brasil, já não mais se
verifica, e sua
ocorrência parece ser
explicada pela
necessidade que alguns
sentem de aparecer.
Esses, Kardec, com a
franqueza que o
caracterizava,
classificaria como
“espíritas mais de nome
que de fato” (O LIVRO
DOS MÉDIUNS, nº 335,
O EVANGELHO SEGUNDO O
ESPIRITISMO, cap.
17, item 4, e REVISTA
ESPÍRITA, nov. de
1861).
Finalmente, como que a
comprovar que muitos
líderes ou dirigentes
religiosos ainda não
alcançaram o cerne das
religiões que seguem e
dirigem, é de todo
válido relembrar as
palavras de Gandhi
acerca da absoluta
necessidade de todas
elas conviverem entre si
e de se aceitarem
mutuamente: “Se um homem
atinge o coração de sua
religião, ele atinge
igualmente o coração das
outras religiões”.
Nota de esclarecimento:
Em que pese o apreço que
temos pelo autor deste
artigo, queremos deixar
claro que a direção da
revista O Consolador
entende o Espiritismo
como Religião, da mesma
forma que assim o
entendem Bezerra de
Menezes, Emmanuel, André
Luiz, Carlos Imbassahy,
Herculano Pires, Chico
Xavier, Divaldo Franco e
tantos outros vultos que
já se manifestaram a
respeito do assunto.
(Astolfo Olegário de
Oliveira Filho – Diretor
de Redação.)