A família como
instrumento
de redenção
espiritual
No âmbito da família vem
desaguar
um volume incalculável
de conseqüências
mais ou menos penosas
resultantes
de desacertos anteriores
O casamento é
compromisso espiritual
previamente negociado e
acertado, ainda que nem
sempre aceito de bom
grado pelas partes
envolvidas. São muitos
os que se unem na
expectativa de muitos
anos de turbulência e
mal-entendidos, porque
estão em débito com o
parceiro escolhido,
precisamente, para se
conciliarem, se
ajustarem, se
pacificarem e, caso não
se amem, pelo menos se
respeitem e estimem. |
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Numa
situação
dessas, mais
freqüente do
que
poderíamos |
Deolindo
Amorim,
autor do
texto ao
lado |
|
supor, a
indissolubilidade
absoluta a que se refere
a Codificação seria, em
tais casos, uma lei
antinatural. Se um dos
parceiros da união,
programada com o
objetivo de promover uma
retificação de
comportamento,
utiliza-se
insensatamente da sua
faculdade de livre
escolha, optando pelo
ódio e a vingança,
quando poderia
simplesmente recolher o
que lhe é devido por um
devedor disposto a
pagar, seria injusto uma
lei que recusasse ao seu
cônjuge, alvo do
tormento, o direito de
recuar do compromisso
acordado, modificar seus
termos, ou adiar a
execução, assumindo, é
claro, todas as
responsabilidades
decorrentes de seus
atos. |
A lei divina não
contempla a violência
que um parceiro se
disponha a praticar
sobre o outro. Além do
mais, a dívida não é
apenas relativa ao
indivíduo prejudicado,
mas também condiz com o
teor da própria lei
divina desrespeitada.
Ora, no momento em que
arruinamos ou
assassinamos alguém,
cometemos, claro, um
delito pessoal da maior
gravidade. É preciso
lembrar, contudo, que a
vítima também se
encontra envolvida com a
lei, que,
paradoxalmente, irá
exigir a reparação da
falta cometida, não para
vingá-la, mas para
desestimular o faltoso,
mostrando-lhe que cada
gesto negativo cria sua
matriz de reparação.
"O divórcio é admissível
em situações de
grave conflito, nas
quais a separação legal
assume a condição de mal
menor"
O Cristo foi enfático e
preciso ao ligar sempre
o erro à dor do resgate.
“Vai e não peques mais,
para que não te aconteça
coisa pior”, disse Ele.
Não há sofrimento
inocente, nem cobrança
injusta ou indevida.
Assim, a própria vítima
de um gesto criminoso é
também um ser endividado
perante a lei, por
alguma razão concreta
anterior, ainda que
ignorada. Se, em lugar
de reconciliar-se, ela
se vingar, estará
reabrindo sua conta com
novo débito em vez de
saldá-la.
A lei natural, portanto,
não prescreve a
indissolubilidade
absoluta do casamento,
como a caracterizou
Kardec na sua pergunta.
Conseqüentemente, a lei
humana não deve ser mais
rigorosa do que a lei
natural, que lhe é
superior; deve ser
flexível, abrindo espaço
para as opções
individuais do
livre-arbítrio.
Contudo, tal
flexibilidade está longe
de significar uma
atitude de complacência
ou de estímulo à
separação dos casais em
dificuldades. O divórcio
é admissível em
situações de grave
conflito, nas quais a
separação legal assume a
condição de mal menor,
em confronto com opções
potencialmente mais
graves que projetariam
ameaçadoras tragédias e
aflições imprevisíveis:
suicídios, assassinatos
e conflitos outros que
destroem famílias e
acarretam novos e
pesados compromissos, em
vez de resolver os que
já participam da chamada
auto-herança.
Convém, portanto,
atentar para todos os
aspectos da questão e
não ceder
precipitadamente ao
primeiro impulso
passional ou à
solicitação do comodismo
ou do egoísmo.
Dificuldades de
relacionamento são
esperadas na grande
maioria das uniões que
se processam em nosso
mundo ainda imperfeito.
Não deve ser desprezado
o importante aspecto de
que o casamento foi
combinado e aceito com a
necessária antecipação,
precisamente para
neutralizar diferenças e
dificuldades que
persistem entre dois ou
mais Espíritos.
O que a lei divina
prescreve para o
casamento é o amor, na
sua mais ampla e
abrangente conotação, no
qual o sexo é apenas a
expressão física de uma
profunda e serena
sintonia espiritual.
Entretanto, estas uniões
são ainda a exceção e
não a regra geral. Elas
se perfazem entre
aqueles que, na
expressão de Jesus,
Deus juntou, de
acordo com a imutável
perfeição de suas leis.
Que ninguém os separe,
mesmo porque, atingida
essa fase de sabedoria,
entendimento e
serenidade, os Espíritos
se comportam segundo a
vigência da lei divina,
que já os uniu pelo
vínculo supremo do
amor.
"O trabalho de
reconciliação com
Espíritos
que prejudicamos com o
descontrole
de nossas paixões nunca
é fácil"
Em suma, recuar ante uma
situação de desarmonia
no casamento, de um
cônjuge difícil ou de
problemas aparentemente
insolúveis, é gesto de
fraqueza e covardia de
graves implicações.
Somos colocados em tais
situações precisamente
para resolvermos
conflitos emocionais que
nos barram os passos no
caminho evolutivo.
Estaremos recusando
exatamente o remédio
prescrito para curar
mazelas persistentes que
se arrastam, às vezes,
por séculos ou milênios,
pois aderidas a nossa
estrutura espiritual.
A separação e o divórcio
constituem, assim,
atitudes que não devem
ser assumidas sem a
prévia e profunda
análise ou uma demorada
meditação que nos levem
à plena consciência das
responsabilidades
envolvidas.
Como escreveu Paulo, com
admirável lucidez e
poder de síntese: “Tudo
me é licito, mas nem
tudo me convém”.
O Espiritismo não é
doutrina do não, mas sim
da responsabilidade.
Viver é escolher, é
optar, é decidir. E a
escolha é sempre livre
dentro de um leque
relativamente amplo de
alternativas. A
semeadura, costumamos
dizer, é voluntária; a
colheita, por sua vez, é
sempre obrigatória.
É no contexto da família
que vem desaguar um
volume incalculável de
conseqüências mais ou
menos penosas,
resultantes de
desacertos anteriores,
de decisões tomadas ao
arrepio das leis
flexíveis e, ao mesmo
tempo, severas, que
regulam o universo ético
no qual estamos
inseridos.
Para que um dia possamos
desfrutar o privilégio
de viver em comunidades
felizes e harmoniosas,
aqui ou no mundo
póstumo, temos de
aceitar, ainda que
relutantemente, as
regras do jogo da vida.
O trabalho de
reconciliação com
Espíritos que
prejudicamos com o
descontrole de nossas
paixões nunca é fácil e,
por isso, o comodismo
nos empurra para o
adiamento das lutas e
renúncias, afastando-nos
do caminho da vitória.
Como foro natural de
complexos problemas
humanos e núcleo
inevitável das
experiências
retificadoras, a
família, pela qual somos
responsáveis, é
instrumento da redenção
individual e, por
extensão, do equilíbrio
social. Logo, não
exigiria nenhuma outra
razão para ser estudada
com seriedade e
preservada com firmeza
nas suas estruturas e
nos seus propósitos
educativos.
O saudoso confrade
Deolindo Amorim,
jornalista, escritor e
professor, natural da
Bahia, já desencarnado,
é autor de "O
Espiritismo e os
Problemas Humanos", de
onde foi extraído o
texto acima.