Como a Igreja tratou a
heresia dos Albigenses
ou Cátaros
Os cátaros foram
responsáveis por duas
das mais
controvertidas atitudes
tomadas pela Igreja
Católica Romana em toda a sua existência
“... perdoem nem a
condição, nem sexo, nem
idade... Mate-os todos,
cátaros ou católicos...
O Senhor saberá
distinguir os seus!”
(1)
(Palavras proferidas por
Arnoldo Amauri, abade de
Citeaux, depois
arcebispo de Narbonne
(2), em
1209, quando seus
soldados lhe disseram
que não sabiam
distinguir entre
católicos e cátaros, no
cerco, invasão e
massacre da população
inteira, homens,
mulheres e crianças, da
cidade de Beziers,
durante a cruzada
empreendida pelo papa
Inocêncio III (foto) contra os
Albigenses ou Cátaros,
da região do Languedoc,
sul da França, citando a
2ª carta de Paulo a
Timóteo, 2:19.) |
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Uma visita a Carcassone,
cidade medieval
duplamente murada,
situada na província de
Aude, que pertence ao
Langue D’Oc francês,
alguns anos atrás,
despertou-me o interesse
pela heresia dos
Albigenses, também
chamados Cátaros (do
grego Kathares = Puros).
Alguns folhetos
distribuídos pela
municipalidade dessa
cidade traziam
informações curiosas,
sobre essa heresia, que
eu desconhecia na época.
Por que uma população
inteira e uma cultura
que floresceu nos
séculos 10 a 13 de nossa
era, localizada no que
hoje é parte da França,
entre os Pirineus e a
fronteira com a Itália,
o que conhecemos hoje
como Aude e Provença,
foi dizimada durante os
anos de 1208 a 1245?
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Os cátaros foram
responsáveis por duas
das mais controvertidas
atitudes tomadas pela
Igreja Católica Romana
em toda a sua
existência. Contra eles
foi decretada uma
cruzada pelo papa
Inocêncio III em 1207,
(3) e por
causa deles se deve a
criação em 1215, pelo
mesmo papa, do dito
Santo Ofício, mais
comumente conhecido como
Inquisição, e nomeado
para exercer esse ofício
o fanático padre
espanhol Domingos de
Gusmão,(4)
criador da Ordem dos
Dominicanos.
Os Occitanos (pessoas
que falavam a “língua d’oc
ou provençal”) possuíam
na época (primeira
década de 1200) uma
civilização muito mais
avançada do que o resto
da Europa. Sua capital
era a cidade de
Toulouse. Com as cidades
de Beziers, Carcassone,
Albi, Narbonne, entre
outras, havia um grande
intercâmbio cultural,
ligando grande parte da
Europa. Cultura essa
transportada pelos
Trovadores (Troubadors),
cantores populares que
iam de cidade em cidade,
transferindo a cultura
evoluída da região. Os
judeus eram aceitos e
podiam praticar sua
religião em sinagogas
sem serem molestados, o
que não acontecia no
resto da Europa, onde
eram sistematicamente
perseguidos.
O que mais chamava
atenção era que todos
eram convidados a
aprender a ler,
inclusive as mulheres; o
índice de analfabetismo
era quase nulo. Existia
terra e trabalho para
todos. As artes eram
estimuladas e os
artistas valorizados. A
alimentação na região
era abundante, e
dividida entre todos.
Todo esse progresso
tinha um motivo: a
religião professada no
local. Desde o fim do
século X, os occitanos
professavam a filosofia
cátara, uma religião
cristã de raízes
gnósticas, dos primeiros
anos do Cristianismo.
Os princípios
fundamentais dessa
religião se baseavam em
que:
– O mundo material, a
Terra, era um lugar mau,
um lugar de expiações.
– Os homens haviam sido
aqui postos por causa do
pecado do Orgulho.
– Por isso deviam aqui
passar por diversas
encarnações, para se
purificar.
– Homens e mulheres eram
iguais, com mesmos
direitos e deveres e, ao
reencarnar, poderiam
fazê-lo como um ou
outro.
– Possuíam pregadores,
chamados Parfaits, ou
Bonhommes, tanto homens
como mulheres, que se
dedicavam a educar as
pessoas, principalmente
crianças em escolas, que
eram abertas a toda a
população, e não somente
aos nobres ricos, onde
alfabetizavam e
ensinavam sua doutrina.
– Esses pregadores se
mantinham solteiros por
opção, porém costumavam
caminhar sempre em
duplas, de ambos os
sexos, indistintamente.
– Eles tinham que prover
seu próprio sustento,
trabalhando, porque
diziam que ninguém era
obrigado a sustentá-los.
–
Como trabalho, eram
especialistas em fazer
papel, para confecção de
livros e artes.
–
Um dos seus lemas
maiores era “O trabalho
é uma prece”.
–
Traduziram e ensinavam
os evangelhos na língua
d’oc ou provençal, pois
diziam que Deus não
sabia só latim.
–
Não acreditavam no Velho
Testamento, pois o Deus
ali representado é cruel
e vingativo,
representando o Mal,
porém aceitavam alguns
de seus livros.
(5)
–
Seguiam o Novo
Testamento,
principalmente o
Evangelho de João, os
Atos dos Apóstolos e as
Epístolas de Paulo.
–
Diziam que eram a
verdadeira Igreja de
Cristo, pois seguiam a
sua doutrina, dos
evangelhos e dos seus
apóstolos, em palavras e
obras.
Reinerius Saccho,
inquisidor dominicano,(6)
enumera alguns dos erros
dos cátaros, o que
diziam e faziam, segundo
ele:
–
Todos os vícios e
pecados estão na igreja
católica, e só eles (os
cátaros) vivem
corretamente.
–
São eles os legítimos
pobres de Espírito, e
sofrem perseguição por
sua retidão e fé.
–
Desprezam os estatutos
da igreja por sua
inutilidade.
–
O Papa e todos os bispos
são homicidas por causa
de suas guerras.
–
Os prelados são escribas
e os monges, fariseus.
–
Não se deve obedecer a
bispos, só a Deus.
–
Ninguém é maior ou
melhor que outro na
igreja (“...vós todos
sois irmãos” - Mateus,
23:8).
–
Ninguém deve ajoelhar-se
perante um padre: (...
vê, não faças isso.
Apocalipse, 19:10)
–
Dízimos não devem ser
pagos, porque os
primeiros frutos não
serão dados à igreja.
–
O sacerdote não devera
ter posses. Os
sacerdotes e toda a
tribo de Levi não devem
ter parte ou herança,
porque eles comem o
sacrifício, e não
deverão receber mais
nada. (Deuteronômio,
18:1-2)
–
Os clérigos, monges,
bispos e abades não
deveriam ter prebendas
ou direitos reais.
–
As terras do povo não
deverão ser divididas em
partes.
–
É mau fundar ou
patrocinar igrejas e
mosteiros.
–
Não se deve fazer
coletas em favor da
igreja.
–
Ninguém deve ser forçado
a qualquer crença.
–
Abominam os padres por
sua preguiça, dizendo
que deveriam trabalhar
com suas mãos, como
faziam os apóstolos.
–
Reprovam títulos
dignitários, como Papa,
Bispo, etc.
–
Não aceitam privilégios
eclesiásticos.
–
Desprezam a imunidade da
igreja, do clero e suas
coisas.
–
Condenam concílios,
sínodos e assembléias.
–
Dizem que direitos
paroquiais são invenção.
–
Que regras monásticas
são tradição dos
fariseus.
–
Que a mulher, depois de
parir seu filho, não
precisa ser purificada e
bendita, já o sendo pela
maternidade.
–
Que a igreja peca ao não
permitir o casamento de
seus padres, visto que a
igreja do Oriente
(ortodoxa) o permite e
promove.
–
Que a ordenação
sacerdotal nada vale,
que cada bom homem é um
sacerdote, como os
apóstolos foram simples
bons homens.
–
Que a prece de um mau
sacerdote nada vale, e
ridicularizam a igreja
quando nomeia conhecidos
pecadores e criminosos
para cargos eminentes.
–
Que o latim não é mais
querido a Deus que seu
vulgar (sua língua).
–
Que cada bom cidadão, e
mesmo as mulheres, podem
pregar. (Eu queria que
vós falásseis outras
línguas e pregassem,
para que a igreja
pudesse ser edificada -
I Coríntios, 14:5)
–
Que a doutrina do Cristo
e dos apóstolos é
suficiente para a
salvação, sem os
estatutos da igreja.
–
Que existe mais
transgressão na tradição
humana que na lei de
Deus. (Por que
transgredis vós também a
lei de Deus, por causa
de vossas tradições? -
Mateus, 15:3)
Outro inquisidor, o
cardeal Raynaldus,(7)
escreveu em seus “Annales”
(começo do século 13):
... “dizem (os Cátaros)
existir dois Criadores.
Um benevolente, que é o
do Novo Testamento,
outro malévolo e
mentiroso, também
homicida, que é o do
Velho Testamento.
Mentiroso, porque
afirmou que se o homem
comesse do fruto da
árvore do conhecimento
por certo morreria,
porém isso não
aconteceu, somente ficou
sujeito à miséria da
morte. Homicida, por ter
destruído as cidades de
Sodoma e Gomorra, além
de devastar o mundo pelo
dilúvio e afogar os
soldados do Faraó no Mar
Vermelho, e malévolo por
dizer que se arrependia
de ter criado o homem,
embora o tenha criado à
sua imagem e
semelhança.”
...”dizem também que o
Cristo, nascido em
Belém, e crucificado em
Jerusalém, era somente
um homem, embora tivesse
uma alma divina, e que
Maria Madalena era
sua concubina...”.
...que a Igreja Católica
era um covil de ladrões,
e era a grande meretriz
do Apocalipse de João
(Apocalipse, 17:1 a 4).”
“Dos mandamentos da
Santa Igreja, dizem que
a Santa Água do batismo
não é mais que água de
rio, que a Hóstia
Consagrada não é mais
que pão. Confissões,
consideram também vãs e
frívolas...”
...”negando também a
Ressurreição da Carne,
postulam algumas noções
jamais ouvidas, que
nossas almas são de
espíritos angelicais,
tendo sido expulsos do
Céu pelo pecado do
Orgulho. Que depois de
sucessivamente habitar
sete corpos terrenos
para cumprir sua
penitência, essas almas
retornarão ao seu estado
angelical.”
... “também costumam
fazer imposição de mãos
sobre os simples,
dizendo que com isso
podem curar males do
espírito e do corpo,
perdoando seus
pecados.”
“Chamam aos que seguem
rigorosamente sua
doutrina ”Perfeitos”,
que podem ser tanto
homens como mulheres,
com direitos
absolutamente iguais.
Esses se ocupam de
difundir essa doutrina
pelo exemplo da
perfeição de sua
conduta, não se
submetendo a nenhuma
autoridade da Santa
Igreja Católica, sejam
padres, bispos ou
superiores, dizendo que
esses são corruptos,
ladrões, blasfemos e
pecadores!...
O dominicano Bernardo
Guidone, ou Bernardo Gui,
como era comumente
chamado, talvez o mais
famoso dos Inquisidores,
cita os mesmos pecados
praticados pelos
Cátaros, somente de
maneira mais didática:(8)
“... dizem de si mesmo,
que são bons cristãos,
que não juram, mentem,
ou falam mal de outros.
Não matam homem ou
animal ou nada que tenha
o sopro da vida, pois
são vegetarianos. Que
sustentam a fé de Cristo
e seus evangelhos, como
ensinado por seus
apóstolos. Ocupam hoje o
lugar dos apóstolos, e
por causa disso os da
Igreja Romana, prelados,
curas e monges, e
especialmente os
inquisidores de heresias
os perseguem e chamam de
hereges embora sejam
bons cristãos, e que são
perseguidos como Cristo
e os apóstolos o foram
pelos fariseus”.
“...falam das vidas
laicas dos sacerdotes e
prelados da Igreja, da
sua cupidez, lassidão,
avareza e vida pouco
honesta, que todo o povo
conhece. Esses prelados,
curas e monges são
fariseus e falsos
profetas, pois não fazem
o que pregam.
“... batismo, comunhão,
unção são maneiras de
vender caro água, óleo e
farinha, e que, sendo
pecadores, os padres não
têm poder de ligar e
religar e, não sendo
limpos, não podem limpar
outros pela confissão”.
“...que a cruz de Cristo
não deveria ser
venerada, porque ninguém
veneraria a forca na
qual seu pai, parente ou
amigo fosse enforcado”.
“Além disso tudo, lêem
os Evangelhos e as
Epístolas em sua língua
vulgar (occitano),
contrariando as normas
da Igreja e expondo-a a
que seja vilipendiada, e
aplicando-as em seu
favor.”
Quando o Papa Eugênio
III enviou, em 1147, o
monge cluniacence
Bernardo de Claivaux
(São Bernardo), famoso
pelas palavras “Pela
persuasão, não pela
violência, os homens são
vencidos para a fé”, e
reconhecidamente um dos
maiores pregadores que a
igreja teve, de conceito
moral reconhecido, para
converter esses ímpios
cátaros, o mesmo,
espantado com a
devassidão, corrupção e
lassidão existente em
todo o clero local,
contrastando com a vida
correta e regrada dos
ditos hereges, desistiu
da missão e voltou,
comunicando que para
conseguir algum êxito
seria necessário
destituir todas as
autoridades católicas da
região, e que não havia
encontrado pecado grave
nos cátaros.
O papa Inocêncio III
decretou indulgência
plena para quem fosse
dizimar os cátaros no
Langue D’Oc. Os cruzados
podiam matar, violentar
e roubar todos, sem
distinção de sexo, idade
ou ordem, que seus
pecados seriam
imediatamente perdoados.
Teve nesta cruzada o
grande auxílio dos reis
Felipe Augusto e depois
Luís VIII e seus nobres
do norte da França,
interessados nas terras
e riquezas desta região.
Os historiadores estimam
que mais de quinhentas
mil pessoas foram ali
assassinadas nos pouco
mais de 20 anos de
duração dos combates.
Anotações:
(1) Caesarius of
Heisterbach em seu
Dialogus Miraculorum
(Medieval Sourcebook).
(2) Dele
Inocêncio III disse anos
depois -“...não conhece
outro deus que o
dinheiro, tem uma bolsa
no lugar do coração.
Seus monges e curas têm
amantes e vivem de
usura... São objeto de
riso e desprezo da
comunidade laica em toda
a região.”
(3) Herbert
George Wells diz em seu
livro “Crux
Ansata”
- “A história desta
cruzada é um capítulo
que os historiadores da
Igreja Católica têm
feito o máximo para
obliterar”.
(4) Domingos de
Gusmão morreu em 1221, e
foi por seus serviços à
causa da Igreja,
canonizado logo após, em
1234.
(5) Aceitavam os
livros de Salomão,
Provérbios, Eclesiastes
e Cântico dos Cânticos,
Juízes, Jó e Salmos.
(6) Em seu livro
“Das seitas dos modernos
hereges” (cerca 1250).
(7)
Cardeal Odoricus
Raynaldus, em “Annales
ca. 1331”.
(8) Em seu livro
“O Manual do Inquisidor
(Practica Officii
Inquisitionis Hereticae
Pravitatis ou Do
trabalho prático do
inquisidor nas
depravações heréticas)”
escrito em 1331.